03 junho 2014

frank o´ hara / porque não sou um pintor



Eu não sou um pintor, sou um poeta.
Porquê? Penso que preferia ser
um pintor, mas não sou. Bom,

Mike Goldberg, por exemplo,
está a iniciar um quadro. Eu apareço.
«Senta-te e toma uma bebida» diz
ele. Eu bebo; nós bebemos. Reparo
«Tu tens SARDINHAS aí.»
«Sim, precisava de qualquer coisa ali.»
«Oh.» Eu saio e os dias passam
e eu apareço de novo. O quadro
avança, e eu saio, e os dias
passam. Eu apareço. O quadro está
terminado. «Onde estão SARDINHAS?»
O que resta são apenas
letras. «Era demasiado», diz Mike.

E eu? Um dia estou a pensar numa
cor: laranja. Escrevo uma linha
acerca de laranja. Em breve é uma
página que está cheia, não de linhas, de palavras.
Depois outra página. Deveria haver
muitíssimo mais, não laranja,
palavras, como é terrível o laranja
e a vida. Os dias passam. Acontece ser
em prosa, sou um verdadeiro poeta. O meu poema
está terminado e ainda nem sequer mencionei
o laranja. São doze poemas, chamo-lhes
LARANJAS. E um dia numa galeria
vejo o quadro de Mike, chamado SARDINHAS.



frank o'hara
vinte e cinco poemas à hora do almoço
trad. josé alberto de oliveira
assírio & alvim
1995





02 junho 2014

sandro penna / devo estar a ficar velho



Devo estar a ficar velho, se fiz uma longa viagem
sempre sentado, se nada vi
senão a chuva, se um débil raio
de vida silenciosa… (os operários
entravam e saíam do comboio,
levando de uma aldeia para um lago tranquilo
o sono e as ferramentas de trabalho).
Quando cheguei à cama também gritei:
somos homens, mais cansados que cobardes.


sandro penna
no brando rumor da vida
tradução de maria jorge vilar de figueiredo.
assírio & alvim
2003




01 junho 2014

valerio magrelli / eu sou aquilo que falta



Eu sou aquilo que falta
ao mundo em que vivo,
aquele que entre todos
jamais encontrarei.
Rodando sobre mim mesmo agora coincido
com o que me foi tirado.
Eu sou o meu eclipse
a revelia, o desconsolo
o objecto geométrico
a que para sempre deverei renunciar.



valerio magrelli
a espinha do p
trad. rosa alice branco
poetas em mateus
quetzal
1993




31 maio 2014

cesare pavese / os mares do sul



                                                    (para Monti)

Caminhamos uma tarde pela encosta dum monte,
em silêncio. Na sombra do lento crepúsculo,
o meu primo é um gigante vestido de branco,
de andar pausado, rosto bronzeado,
taciturno. Calar é a nossa força.
Um antepassado nosso deve ter-se sentido muito só
— um grande homem entre imbecis ou um louco coitado —
para ensinar aos seus tanto silêncio.

Esta tarde, o meu primo falou. Perguntou-me
se queria ir com ele: do alto vê-se,
em noites serenas, o reflexo do farol
ao longe, de Turim. "Tu que vives em Turim..."
disse-me "... tu é que tens razão. A vida é para se viver
longe da terra: um homem aproveita, goza
e depois, quando volta, como eu aos quarenta,
encontra-se tudo novo. As Langas não fogem daqui".
Disse-me isto tudo e não fala italiano,
mas serve-se, pausado, do dialecto que, como as pedras
deste mesmo monte, é tão áspero
que vinte anos de línguas e oceanos diversos
lho não arranharam. E sobe a encosta
com o olhar contido que vi, menino,
em camponeses um pouco cansados.

Vinte anos correu mundo, sem parança.
Abalou era eu ainda um menino ao colo das mulheres
e deram-no como morto. Depois ouvi falarem dele
as mulheres, às vezes, como uma fábula;
mas os homens, mais sérios, esqueceram-no.
Num Inverno, para o meu pai já falecido chegou um postal
de grande selo esverdeado com navios num porto
e desejos duma boa vindima. O espanto foi grande,
mas o menino crescido explicou avidamente
que o postal vinha duma ilha chamada Tasmânia,
rodeada por um mar muito azul, feroz de tubarões,
no Pacífico, a sul da Austrália. E acrescentou que o primo
de certeza pescava pérolas. E arrancou o selo.
Deram todos a sua opinião, mas todos concluíram
que, se ainda não morrera, havia de morrer.
Depois esqueceram-no e passou muito tempo.

Oh, quanto tempo passou desde que brinquei
aos piratas malaios. E desde a última vez
em que fui nadar para um sítio perigoso
e persegui um companheiro por uma árvore acima,
quebrando-lhe os belos ramos, e rachei a cabeça
a um rival e me deram uma tareia,
quanta vida passou. Outros dias, outros jogos,
outros abalos do sangue frente a rivais
mais esquivos: os pensamentos e os sonhos.
A cidade ensinou-me infinitos medos:
uma multidão, uma rua fizeram-me tremer,
às vezes um pensamento, espreitado num rosto.
Sinto ainda nos olhos a luz escarninha
dos milhares de candeeiros sobre o tropel dos passos.

Acabada a guerra, o meu primo voltou,
gigantesco, entre uns poucos. E tinha dinheiro.
Os parentes diziam em voz baixa: "Daqui a um ano, e já é muito,
está tudo comido e abala outra vez.
Os desesperados morrem assim".
O meu primo tem um ar decidido. Comprou um rés-do-chão
na aldeia e fez prosperar aí uma garagem de cimento
com a bomba da gasolina à frente, flamejante,
e um cartaz-reclame na curva da ponte, bem à vista.
Depois meteu um mecânico para receber o dinheiro
e deu a volta às Langas, de cigarro na boca.
Entretanto, tinha-se casado na aldeia. Escolheu uma rapariga
esguia e loura como as estrangeiras
que sem dúvida encontrara um dia por esse mundo.
Mas continuou a sair sozinho. Vestido de branco,
de mãos atrás das costas e rosto bronzeado,
batia as feiras de manhã e com ar manhoso
negociava cavalos. Explicou-me depois,
quando tudo se gorou, que a sua intenção
fora limpar o vale de bestas de carga
e obrigar a gente a comprar-lhe os motores.
"Mas a besta maior de todas" dizia "fui eu,
quando tive a ideia. Devia saber
que aqui bois e pessoas é tudo a mesma raça".

Caminhamos há mais de meia hora. O cume está próximo,
à nossa volta o vento ruge e assobia cada vez mais forte.
O meu primo para de repente e volta-se: "Este ano
vou pôr no cartaz: — O Santo Estêvão
foi sempre o primeiro nas festas
do vale de Belbo — e que o digam
os de Canelli". E depois retoma a subida.
Um perfume de terra e vento envolve-nos na escuridão,
ao longe algumas luzes: quintas, automóveis
que mal se ouvem; e eu penso na força
que me devolveu este homem, arrancando-o ao mar,
às terras longínquas, a este longo silêncio.
O meu primo não fala das viagens que fez.
Diz simplesmente que esteve em tal ou tal sítio
e pensa nos seus motores.

Só um sonho
lhe ficou no sangue: cruzou os mares, uma vez,
como fogueiro dum pesqueiro holandês, o Cetáceo,
e viu os pesados arpões voarem ao sol,
viu fugirem baleias no meio duma espuma de sangue
e perseguirem-nas e as caudas erguerem-se, e a luta das baleeiras.
Às vezes fala-me disto.

Mas quando lhe digo
que ele é um dos afortunados que viram a aurora
nas mais belas ilhas da terra,
sorri ao lembrar-se e responde que quando o sol
nascia, já o dia era velho para eles.


cesare pavese
diVersos n° 1
trad.carlos leite
edições sempre em pé
1996



30 maio 2014

antónio franco alexandre / corto viaggio sentimentale, capriccio italiano


27

venho dormir junto de ti
e o meu corpo é uma coisa diferente
do que se vê ou toca ou sente;
é, fora de mim, essa coluna de ar onde respiro,
olhos que beijam o teu corpo exacto,
as muitas mãos que dobram o teu rosto.
Um deus que dorme, um deus que dança, e mais
que um mero deus, o breve amor do tempo.




antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999




29 maio 2014

kostas kariotákis / préveza



São de morte estes corvos ao voarem
De encontro aos negros muros, ao telhado,
São de morte as mulheres ao amarem
Como quem preparasse um refogado.

De morte as ruas sujas e mesquinhas
Com nomes tão sonantes e tão fortes,
O olival, que abraça o mar, as vinhas,
E até o próprio sol, morte entre as mortes.

De morte o inspector que quer levar
Para análise a dose ..."ilegal".
Na varanda os jacintos a espreitar
E o mestre escola lendo o seu jornal.

Da guarda o pelotão no forte branco,
Domingo toca a banda no coreto.
Com "dracmas trinta" abri conta no banco,
Fui hoje lá buscar a caderneta.

Vais pelo molhe e pensas devagar:
"Será que sou?" E dizes: "Não, não és."
Chega o barco, a bandeira a tremular.
Vem decerto o prefeito no convés.

Ai se ao menos por tédio um habitante
Se deixasse morrer neste desterro,
Para toda a gente ir, grave o semblante,
Negro o luto, entreter-se no enterro.




kostas kariotákis
tradução de manuel resende




28 maio 2014

giánnis ritsos / a outra cidade


Há muitas solidões cruzadas - diz - em cima e em baixo
e outras no meio; diferentes e semelhantes, forçadas e
impostas
ou como que escolhidas, como que livres - mas sempre
cruzadas.
Mas no fundo, no centro, há apenas uma solidão - diz;
uma cidade vazia, quase esférica, sem quaisquer
anúncios luminosos multicores, sem lojas, sem motocicletas,
com uma luz branca, vazia, brumosa, interrompida
por centelhas de desconhecidos semáforos. Nesta cidade
habitam desde há anos os poetas. Caminham silenciosos de
braços cruzados,
recordam factos imprecisos, esquecidos, palavras,
paisagens,
estes consoladores do mundo, sempre inconsolados,
perseguidos
pelos cães, pelos homens, pelos vermes, pelos ratos, pelas
estrelas,
perseguidos até pelas suas próprias palavras, ditas ou não
ditas.



giánnis ritsos
antologia
tradução de custódio magueijo
fora do texto
1993


27 maio 2014

antónio reis / depois das 7



Depois das 7
as montras são mais íntimas

A vergonha de não comprar
não existe
e a tristeza de não ter
é só nossa

E a luz
torna mais belo
e mais útil
cada objecto


antónio reis
novos poemas quotidianos
edição do autor
1959



26 maio 2014

jean-arthur rimbaud / frases



Lancei cordas de campanário a campanário; guirlandas de janela a janela; cadeias de ouro de estrela a estrela, e danço.



jean-arthur rimbaud
iluminações
uma cerveja no inferno
trad. mário cesariny
estúdios cor
1972



25 maio 2014

guillevic / canção



Minha filha, o mar,
Já o adivinhaste,
Não é uma prenda
Que te possam dar.

Minha filha, a onda
É um outro mundo
Onde o pé se afunda
E ninguém responde.

O horizonte, filha,
É um grão-vizir
Que há-de receber-te
Quando o fores abrir.

Minha filha, o espinho,
Bem o viste já,
Só se torna amigo
Se nos maltratar.

Minha filha, a dança
Que posso ensinar-te
Nos teus olhos brilha
E hás-de segui-la.

E, filha, a esperança,
Mais forte que o mar,
Mais forte que o espinho,
A onda e a dança.



guillevic
chanson, gagner  (1949)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003






23 maio 2014

vasco costa marques / último poema do amor ausente



Todo o corpo lhes dói de acertar os relógios
De momento a momento às vantagens do tempo
Meu amor meu amor tem por vezes o gosto
Do veneno sorvido ao desabar das pontes

A mais frágil aragem os confunde
O espaço aberto enreda-lhes os passos
O convívio da vida esboroa as palavras
A liberdade é um peso enorme nos seus ombros

«Tudo quanto perdi na violência do tempo
Veio hoje até mim como o espinho da flor
Como o operário morto entre o ferro e o cimento
Da construção do amor

Foi um lento e incógnito perfume
Foi um lago sem margens intransposto
Foi uma pedra vermelha de lume
O mais belo sorrir de desgosto»



vasco costa marques
poesia dos dias úteis
1956



22 maio 2014

antónio maria lisboa / comutador



Ergo-me de ti no zimbório
de folhas na penedia do castelo medieval
de limos na humidade da praia
de cristais entre os rochedos do Cabo Horn

Caminho de gelo na floresta
de sôfrego na vastidão do deserto
de louco na brancura do hospício

Eu abismo, eu cratera
inclinei-me e vi um espectáculo caprichoso: uma unha branca
uma unha branca a viver assim despreocupada

OGIVA-BORBOLETA
Arco-de-Cor caldo muito triste
Casulo de quem ninguém falou
Teia-de-Aranha exposta à loucura e ao tempo
Andorinha-Azul de chapéu mole e baratas na cama
VENTOINHA.




antónio maria lisboa



21 maio 2014

paul celan / com brancusi, a dois



Se destas pedras uma
anunciasse
o que a faz silêncio:
aqui, muito perto,
na bengala deste velho,
isso se abriria, como uma ferida
em que terias que mergulhar,
solitário,
longe do meu grito, ele também já
talhado pelo cinzel, branco.


paul celan
trad. joão barrento
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990