25 abril 2014
24 abril 2014
paul éluard / liberdade
Nos meus cadernos de escola
no banco dela e nas árvores
e na areia e na neve
escrevo o teu nome
Em todas as folhas lidas
nas folhas todas em branco
pedra sangue papel cinza
escrevo o teu nome
Nas imagens todas de ouro
e nas armas dos guerreiros
nas coroas dos monarcas
escrevo o teu nome
Nas selvas e nos desertos
nos ninhos e nas giestas
no eco da minha infância
escrevo o teu nome
Nas maravilhas das noites
no pão branco das manhãs
nas estações namoradas
escrevo o teu nome
Nos meus farrapos de azul
no charco sol bolorento
no lago da lua viva
escrevo o teu nome
Nos campos e no horizonte
nas asas dos passarinhos
e no moinho das sombras
escrevo o teu nome
No bafejar das auroras
no oceano nos navios
e na montanha demente
escrevo o teu nome
Na espuma fina das nuvens
no suor do temporal
na chuva espessa apagada
escrevo o teu nome
Nas formas mais cintilantes
nos sinos todos das cores
na verdade do que é físico
escrevo o teu nome
Nos caminhos despertados
nas estradas desdobradas
nas praças que se transbordam
escrevo o teu nome
No candeeiro que se acende
no candeeiro que se apaga
nas minhas casas bem juntas
escrevo o teu nome
No fruto cortado em dois
do meu espelho e do meu quarto
na cama concha vazia
escrevo o teu nome
No meu cão guloso e terno
nas suas orelhas tesas
na sua pata desastrada
escrevo o teu nome
No trampolim desta porta
nos objectos familiares
na onda do lume bento
escrevo o teu nome
Na carne toda rendida
na fronte dos meus amigos
em cada mão que se estende
escrevo o teu nome
Na vidraça das surpresas
nos lábios todos atentos
muito acima do silêncio
escrevo o teu nome
Nos refúgios destruídos
nos meus faróis arruinados
nas paredes do meu tédio
escrevo o teu nome
Na ausência sem desejos
na desnuda solidão
nos degraus mesmos da morte
escrevo o teu nome
Na saúde rediviva
aos riscos desaparecidos
no esperar sem saudade
escrevo o teu nome
Por poder de uma palavra
recomeço a minha vida
nasci para conhecer-te
nomear-te
Liberdade.
paul éluard
trad jorge de sena
23 abril 2014
thom gunn / o mensageiro
Transforma-se
este homem num anjo quando fixa
Uma flor
vermelha cujo nome ele desconhece.
A face de veludo, os cabelos de pontas
negras?
Os seus
olhos dilataram-se como os de um gato à noite.
Os seus
lábios entreabrem-se mas não fala
Daquilo que vê e que assim o completa.
O seu corpo
prepara-se para imitar a flor,
Ajoelhando-se
e enterrando os dedos dos pés no solo,
A origem crua, granulosa e acre.
A sua
quietude responde como um espelho,
O da flor;
ela é a serenidade da chama em botão
Que abriga dentro de si a plenitude da
erva.
Mais tarde
as notícias, para se ramificarem de sentido em sentido,
Trazendo as
suas versões da flor numa pequena
Aparência exterior até à sua
compreensão.
Entretanto,
silencioso e expandindo-se como uma chama,
Ele inclina-se
contemplando apenas o exterior:
Caule firme e rosto sem nome.
thom gunn
a destruição do nada e outros
poemas
trad. maria
de lurdes guimarães
relógio
d´água
1993
22 abril 2014
edgar lee masters / sónia, a russa
Eu, nascida em Weimar
de mãe francesa
e pai alemão, um homem muito culto, professor,
fiquei órfã aos catorze anos,
e tornei-me na dançarina que em todas as avenidas de Paris
era conhecida como Sónia, a Russa.
Fui amante, no início, de vários duques e condes
e, mais tarde, de artistas pobres e poetas.
Aos quarenta, passée, rumei a
Nova Iorque
e conheci no navio o velho Patrick Hummer,
forte e de rosto corado, apesar dos seus sessenta anos,
que regressava após ter vendido um carregamento
de gado em Hamburgo, na Alemanha.
Vim com ele para Spoon River e aqui vivemos
durante vinte anos ─ todos
pensavam que éramos casados!
Este carvalho junto à minha campa é o retiro favorito
dos gaios azuis que palram e palram, todo o dia.
E por que não, se até as minhas cinzas se riem
quando pensam nessa coisa tão cómica a que chamam vida?
edgar lee masters
spoon river
tradução josé miguel silva
relógio d´água
2003
21 abril 2014
luís filipe parrado / partes de um todo
Esta tarde, sentado num banco do jardim,
tentava ler um livro difícil
enquanto esperava por ti.
O livro tornava mais dura, mais penosa, a espera.
Então levantei os olhos das páginas,
pousei o livro, vi um homem novo
aproximar-se e passar à minha frente
com um saco de plástico
com maçãs vermelhas numa das mãos
e uma caixa de cartão, com ovos, na outra.
O saco de plástico era transparente
e revelava nitidamente o esplendor e a forma
perfeita das maçãs, todas muito juntas
como partes de um todo.
Não consegui deixar de as olhar,
e tu chegaste logo de seguida.
Só agora, depois de jantar
e da loiça lavada, me lembrei do livro
que ficou no banco do jardim.
luís filipe parrado
resumo
a poesia em 2011
assírio & alvim
2012
19 abril 2014
álvaro de campos / cruz na porta
Não sei qual é o sentimento, ainda inexpresso,
Que subitamente, como uma sufocação, me aflige
O coração que, de repente,
Entre o que vive, se esquece.
Não sei qual é o sentimento
Que me desvia do caminho,
Que me dá de repente
Um nojo daquilo que seguia,
Uma vontade de nunca chegar a casa,
Um desejo de indefinido.
Um desejo lúcido de indefinido.
Quatro vezes mudou a 'stação falsa
No falso ano, no imutável curso
Do tempo consequente;
Ao verde segue o seco, e ao seco o verde,
E não sabe ninguém qual é o primeiro,
Nem o último, e acabam.
álvaro de
campos
18 abril 2014
hans-ulrich treichel / minotauro I
Quando eu ara novo errava
errava pelos longos corredores sem sombra
do meu palácio e uivava como o vento
nas florestas. Agora estou aqui, neste
chão arenoso, à espera: há-de vir alguém,
de machado à cintura, para me rachar a cabeça.
Mas eu só ouço a minha respiração arrastada e
às vezes um restolhar entre as pedras.
Cansado da espera e cego, como hei-de
encontrá-lo, a esse único hóspede?
hans-ulrich treichel
como se fosse a minha
vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994
17 abril 2014
josé miguel silva / esconde-esconde
A nossa vida, libertada, pode agora
começar, dissemos, com o optimismo
de quem inaugura um abrigo decente
e se pretende a salvo das cargas
do mundo. A salvo? Lá mais para
diante se verá que não é bem assim.
Mas por enquanto não pensemos nisso.
Apreciemos a herança de cada tarde,
quando o oiro do crepúsculo acumula
sentimento sobre muros tão perfeitos
que podiam estar no British Museum
e nenhuma convulsão nos prende a vista.
josé miguel silva
serém, 24 de março
averno
2011
16 abril 2014
luis muñoz / esta
Esta é a
noite
com seu
dorso de iguana.
Não penso
ter medo dela
nem pelo que
conjura
nem pelo que
ilumina.
Teu medo não
acaba sem o meu
quando são
uma força.
luís muñoz
trípticos espanhóis vol. III
trad.
joaquim manuel magalhães
relógio
d´água
2004
15 abril 2014
paul éluard / ela está de pé nas minhas pálpebras
Ela está de pé nas minhas pálpebras
com os dedos nos meus entrelaçados.
Ela cabe toda em minhas mãos,
ela tem a cor dos meus olhos
e desaparece na minha sombra
como uma pedra sobre o céu.
Tem sempre os olhos abertos
e não me deixa dormir.
Os sonhos dela à luz do dia
fazem os sóis evaporar-se,
fazem-me rir, chorar e rir,
falar sem ter nada a dizer.
paul éluard
algumas palavras (antologia)
tradução antónio ramos rosa e luiza neto jorge
dom quixote
1977
14 abril 2014
konstandinos kavafis / desideri
1
DESEJOS
Como corpos belos dos que morrem sem ter envelhecido
— e são guardados, em lágrimas, num mausoléu magnífico,
com rosas na fronte e com jasmins aos pés —
assim os desejos são, desejos que esfriaram
sem serem consumados, sem que um só fruísse
uma noite de prazer, ou uma aurora que a lua inda ilumina.
constantino cavafy
90 e mais poemas
trad Jorge de Sena
edições asa
2003
13 abril 2014
miguel martins / provavelmente
Provavelmente, a próxima vez que ouvires falar de mim
será quando te disserem que morri
e que morri por minhas próprias mãos
(isso acontece).
Isso acontece do outro lado da ternura,
onde ela é demasiada e coisa rara,
vermelha e branca, ou seja, cor-de-rosa
quase transparente.
São coisas explicáveis e que não carecem de explicação
(já não),
como os incêndios, a fadiga extrema
ou o cheiro agreste da benzina.
São coisas da natureza dos comboios que passam
a alta velocidade
sem se importarem com os ratos e as flores
que nos carris fazem a sua lida.
È a morte,
uma coisa que tudo simplifica.
miguel martins
resumo
a poesia em 2012
documenta
2013
12 abril 2014
maria alberta menéres / queria dizer-te
Queria dizer-te que não sei
que há qualquer coisa
talvez desperdiçada talvez não
Tu sentiste-a disseste que era
como
qualquer uma outra coisa que
esqueci
A tarde era talvez já fosse
tarde
e a noite não vinha
─ como sempre
Queria dizer-te mas não sei se agora
me saberás ouvir
maria alberta menéres
os mosquitos de suburna
1967
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