19 agosto 2013

henri michaux / encontro na floresta



Ele começa a espiá-la através dos ramos.
Cheirula-a de longe, sacabéstia que é, nescional.
Ela: uma loira distraída um pouco sensaborida.

Aquilo coiceja-o, põe-o logo a babamar-se
Sacode-o todinho, por baixo, por cima, a tresfolegar.
Solusufoca. Não aguenta mais.

Aproxima-se pois à relucapa,
arraganha-a, e com violência e terror a derriba
no chão de folhas frias da floresta muda.

Dessaia-a; e já à vontade merexe-lhe,
apalpilha-a, enodoa-a e morteia-a
(tesa-lhe as unhas na varte, que martira).

Ébrio de imundo, doido pelo corpo doce,
sobre ele se zantira e o tramata.
Transpirando desvairado em grunhal derronco
— ronca! e treguincho —
ranhodeia-a e enrulha-a,
besbesunta-a, mordalha-a, reconcobrea-a e ferina-a.
E por fim, triunfante, enceleira-a!
Imensa cuba de um instante!
Floresta, mulher, terra, céu animal dos recônditos!
Beatamente ele lamafurda.

Ela ergue-se, esgazeada. Sórdido sonho, bem pior que
                                                           um sonho!
«Já passou, não tenha medo, sumiu-se já o vagabundo...
e leve como uma pena, minha senhora.»



henri michaux
o retiro pelo risco
tradução júlio henriques
fenda
1999



18 agosto 2013

dinis moura / atestado médico




Cursei medicina, aprofundei a anatomia,
Especializei-me em fisiologia.
Depois, meu adorado organismo
Composto de devaneios de primavera, conheci-te.
Deslumbrou-se o meu encéfalo,
O meu sistema endócrino desregulou-se de todo.
Resultado: tu bem sabes:
apaixonei-me por ti, desmedidamente,
O que mostra perfeitamente a medida
Daquilo que me é impossível medir.
Só para teres uma ideia, a admirável pigmentação
Das tuas íris de tal modo contaminou as minhas,
Que durante cinco dias tudo, tudo em meu redor
Ganhou tons de pôr de sol outonal.
Um daltonismo esplêndido.
Entretanto o meu coração, órgão vital
Com as suas duas válvulas, os seus dois ventrículos
E as suas duas aurículas,
Passou a contrair e a distender os seus compartimentos
De maneira mirífica, mais intensa, mais exaltada.
Nunca este músculo me tangeu assim tão irrequieto.
Perplexo, decidi analisar o inesperado fenómeno.
Não muito tempo depois, esbarrei,
Espanto de fogueira, com uma estranheza anatómica:
Ao contrário do que a medicina me ensinou,
Revelaram-me as minhas examinações, pasmei,
Que possuo um órgão vital a mais. Não quis crer.
Decidi reexaminar. Tal-qualmente o mesmo resultado:
No interior da minha cavidade torácica,
Os meus mestres não iriam acreditar,
Com um outro coração me deparei : o teu.
O teu, o teu colorido coração, meu adorado
organismo composto de devaneios de primavera.
Nas minhas artérias e nas minhas veias
Circula também o teu sangue,
Líquido vermelho e viscoso que nutre
Esse extraordinário órgão
Segregante de espantosas e eufóricas auroras,
Tão vital para mim quanto
Os demais órgãos do corpo humano.
Falo obviamente do amor,
Um órgão totalmente alheio à medicina.
De acordo com o mencionado,
Mais o quadro clínico apresentado,
Atesto que sou portador
De uma prodigiosa síndrome,
Vendaval vivificante, confluência de encantamentos,
O que me confere uma capacidade permanecente
De manobrar o leme da burocracia das estrelas,
As rédeas do canto das aves, a alavanca das ambições das flores.



dinis moura



17 agosto 2013

fiama hasse pais brandão / o podador



Devagar a tesoura poda o arbusto
tornando-o de realidade em desejo
da forma. O que me atrai, a flor,
a folha de fuligem, os troncos curvos
para  os pardais escuros e ocultos.

Devagar os ramos caem e os que o
podador despreza vão entrar na gé-
nesse da nova terra. É inevitável
que tudo isto me crie nostalgia.
Não há um estalido simples, corte só,

nem morte só, a morte daqueles
ramos estendidos pelo gradeamento
a viver naturalmente entretanto.
O podador escolhe assim a aparên-
cia da obra que devagar executa,

na ordem e no capricho da folhagem
para sempre jovem e ágil.



fiama hasse pais brandão
três rostos
âmago II (nova natureza) 1985-1987
assírio & alvim
1989



16 agosto 2013

antónio ramos rosa / oiço os murmúrios do sol



“Oiço os murmúrios do sol. Saboreio o que sou.
Sou renovado pelo espaço, nasço num espaço verde.
O que eu amo está perto entre a terra e o ar."




antónio ramos rosa
« o obscuro», de volante verde, 1986



15 agosto 2013

alejandra pizarnik / poema



Eleges o lugar da ferida
onde falamos o nosso silêncio
Fazes da minha vida
esta cerimónia demasiado pura

  

alejandra pizarnik




14 agosto 2013

al berto / vestígios



noutros tempos
quando acreditávamos na existência da lua
foi-nos possível escrever poemas e
envenenávamo-nos boca a boca com o vidro moído
pelas salivas proibidas - noutros tempos
os dias corriam com a água e limpavam
os líquenes das imundas máscaras

hoje
nenhuma palavra pode ser escrita
nenhuma sílaba permanece na aridez das pedras
ou se expande pelo corpo estendido
no quarto do zinabre e do álcool - pernoita-se

onde se pode - num vocabulário reduzido e
obsessivo - até que o relâmpago fulmine a língua
e nada mais se consiga ouvir

apesar de tudo
continuamos a repetir os gestos e a beber
a serenidade da seiva - vamos pela febre
dos cedros acima - até que tocamos o místico
arbusto estelar
e
o mistério da luz fustiga-nos os olhos
numa euforia torrencial



al berto
horto de  incêndio
assírio & alvim
1997



13 agosto 2013

alberto augusto miranda / organon das profecias



  1

  Do século em seus espaços e tempos eu via
  Para lá do eixo funcional dos limites
  Animal de quinta dimensão mantido
  Ao choro unido sem quebra, cabra
  Indomável palavra em figura perpassando
  Sua digna continuada emoção.
  Subia a hortícola saia para me garantir
  Fazedora do esquecido vento em cada pulo


  2

  Passeava a cegueira pelo meu sorriso de fé
  Eu hostiava as sombras para as contentar de luz
  E tinha tanta verdade em meus olhos esplendida
  Que já nada temia do ameaçador espelho
  Afinal meu consolo, meu feito ser.
  Assim o levo nos meus bolsos e peitilhos
  Como documento de firmeza sempre preparado
  A saltar às conversas desditosas e às dúvidas
  A mim própria saltando. Mais do que a prece
  O espelho, o construído espelho, inquebrável
  Salvação, a minha alegria do divino.


  3

  Procurava os perdidos de nome e uma traviata
  Reconhecidos de mim nas águas dos extremos
  Arca de Noé, eu seria aparição no desespero
  Até no esquecido desespero de uma apática entrega
  Ao tridentino dono, industrial da lavoura dos nervos.
  Mais e melhor entrega eu lhes era dizer na boca
  O amor que nenhum lupanário conhece à vontade
  De Deus corpo no corpo do corpo sou e aos homens
  De membro em riste apenas os cerco de imagens
  As coxas, os seios, o sexo, deitados em mãos de nuvem
  E chuva do futuro em cada abandonante do presente
  O ósculo sagrado, o beijo da comunhão.


  4

  Não há verbo nacarado que consiga
  O aroma dos meus braços voantes e abertos
  À recolha da solidão e do desastre, os meninos
  Todos para mim, explosão de afecto em minha ara.
  Não há verbo, precisamos do silêncio para dizer
  Precisamos de sentir para falar em cada dedo
  Sulcando o meu ventre pelo escuro da origem
  Viajando até ao luar dos olhos compreendidos
  Sinais de todos os músculos e de outras forças
  De que me faço e me fazem embarcação
  Dos nautas que não desistiram do infinito.


  5

  Não faço todas estas coisas por Ele ou para Ele
  Em soma vos quero dizer: Ele não é meu
  Chulo! É por mim que tudo faço até na renúncia
  De omitir à cidade e a mim mesma omitir
  A minha sensualidade que julgo ser muita mas não quero
  Saber, tenho medo, tenho medo, tenho muito medo
  Da sua Revelação, não aguentaria a dupla fatalidade:
  Ser agnóstica sensual ou vulgar ninfeta
  Incapaz de ser única, tal a Vida seria.
  Tenho medo, tenho medo, tenho muito medo
  De a mim própria me nomear pássaro e não voar.
  Ó mãe, ó meu resíduo: é a parte do pai que fala.


  6

  Por inteiro, sem parábolas me prontifico
  A lavar-me de manchas para nos outros as lavar.
  Um primeiro quente me acaricia o rosto
  Na missão de ligar as almas ao Supremo
  Ao inacreditável, ao impossível, a todos os signos
  Prefixados de negação: sou-vos afirmativa,
  De mim corre e escorre tudo o que é meu
  Fonte vossa, nosso resultado, espiral
  Penteando os cabelos dos acessos difíceis
  Meu máximo gosto, minha máxima razão é
  Minha máxima culpa, meu máximo ser
  Clareando em perigo uma pequenina célula
  Locatária do escuro e meu máximo triunfo.


  7

  Algures, em retiro, sentava-me no areal
  E soprava na flauta de bisel edulcorantes sons
  Como virtuosa hameline seduzindo
  Pequenas multidões prontas de brancura atrás
  De mim, oásis em regaço sem miragem
  Hamsters abandonando o jogo da caça
  Alegres do Sol, primevas claridades
  Agora recuperadas na água baptismal
  Todo o passado apagando por esta tigela de alumínio
  Com que os faço nascer, lhes confiro um nome
  E pelo livre arbítrio os torno diferentes
  Em seus corpos inscrevendo
  Uma oração comum no discurso da semelhança.


  8

  Talvez seja assustador o meu extra-vento
  O tranquilo golpe da minha mirada
  O desafio de desafiar sem combate expresso
  Porque todos têm medo, muito medo
  De abandonar o refúgio do seu caos
  E saberem nas narinas o que lhes era sabido:
  O lado mordente da natureza de cada um,
  O lugar de árvore e fruto que era o seu
  O céu que queriam e a que nunca chegaram
  Por muito exercício e conquista em jejum
  Seus metaquímicos transes pudessem ser
  A palavra iniciática do profeta.


  9

  Eu de vento-rindo meu desmusculado segredo
  Pura e transparente mão do milagre ou
  Outro membro vos unte esses alimentos
  Onde cozinhais em transmitida receita
  Vosso mito por salgar
  Que hoje aprendi no organon das profecias
  Ser do profeta irredutível dever
  Falar ao ouvido das setas
  Em olhos reviravoltados.




  alberto augusto miranda
  semântica do olhar
   ed. fenda
   1997




12 agosto 2013

albano martins / cedo ou tarde



Devias saber
que é sempre tarde
que se nasce, que é
sempre cedo
que se morre. E devias
saber também
que a nenhuma árvore
é lícito escolher
o ramo onde as aves
fazem ninho e as flores
procriam.



albano martins
assim são as algas
campo das letras
2000



11 agosto 2013

bertolt brecht / há homens que lutam um dia



Há homens que lutam um dia, e são bons;
Há outros que lutam um ano, e são melhores;
Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons;
Porém há os que lutam toda a vida
Estes são os imprescindíveis

  

bertolt brecht



10 agosto 2013

gil t. sousa / amarração


20

todos os dias te amarro numa palavra
e quando me olho na esgotante loucura dos dias

leio-te
o infinito passo
que me transporta aos desertos maiores

mas
fico tão pobre
de já nem me chegar o infinito dos verbos!…




gil t. sousa
água forte
2005



09 agosto 2013

william carlos williams / flores à beira do mar



Quando sobre a nítida, florida orla da
pastagem, o oceano invisível e salgado

ergue a sua forma - chicória e margaridas
atadas, soltas, quase não parecem flores

mas somente cor e movimento - ou talvez a
forma - do desassossego, enquanto

fechado em círculo o mar se move tranquilamente
como uma planta sobre o caule



william carlos williams
antologia breve
tradução josé agostinho baptista
assírio & alvim
1993



08 agosto 2013

alexandre o'neill / doceiras de amarante



Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para ó meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.

Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...

  
alexandre o'neill
feira cabisbaixa



07 agosto 2013

edmundo de bettencourt / horas




Gelava o tempo branco do relógio.
Fundiu-se um dia o mostrador
aberto para dentro
num foco por onde as horas negras fugiram enlouqueci-
                                 das!
Lá para longe na faixa rósea da distância
recuaram ante o incessante alarido dos sinos
e logo regressaram
desesperadamente procurando em vão
o maquinismo do relógio.

Via-se o dia fechado de silêncio
num quadrado de luz amarelada
 e de novo preso o pé do jovem
quando ia para sair.


   
edmundo de bettencourt
poemas surdos
assírio & alvim
1981