08 julho 2013

ângela marques / circulares


I

Vem, que os sinos não tocaram
e ainda fez pouco tempo desde que me vesti de orquídeas,
sinto a folha nítida à flor da pele
e tenho o corpo entorpecido da chuva.
Isto não é medo dos barcos, mas antes um olhar arrefecido
por um momento de silêncio são horas de voltarmos ao cais azulado
e fazermos as despedidas de verdade.
Vem, que te encontrarei em qualquer pedaço de rua,
ou nos poços que povoam a cidade: é de ti que falarei
a vida inteira até quando abrir o jornal e encontrar um velho a sorrir,
hão-de subir-me as lágrimas ao pescoço e correrei à aldeia de terra batida,
no caminho levo águas e umbrais para que as gaivotas se não sintam sós:
então será um desfiar de rosários eternos,
como o choro de minha mãe. Quando chegar
todos estarão em fila com os olhos pregados no horizonte
(será inútil lembrar-lhes os heróis antigos)
à espera dos meus sonhos que ouviram contar.
É por isso que as casas são de granito
e a lenha não chega para tantas ilusões.
Terei que ir devagar e pensar na janela que ficou do lado das sombras,
terei que resolver as entranhas dos mortos para descobrir uma rosa
terei que fechar a porta com cabelos loiros
e então dizer-lhes
que não tenho mãos.
É quando os homens vão gritar pelos espelhos
e as mulheres ajoelhar frente ao sol,
mesmo assim conseguirei rodear-me de tojo,
fingir que tenho o mar ali ao virar das cruzes,
que os amigos não me abandonaram.
Será supremo o trigo quente e o sabor dos frutos
como se tivesse comigo um homem para afagar os olhos, ou então chorar.
Viverei das cores que me arrepiam os sentidos
porque isso bastará para curar cicatrizes, a face esfregá-la-ei com urtigas
para que os lábios não tenham tempo de secar.
Com a maior das solenidades cairei por terra:
— que me atirem ao vento para poder finalmente voar
e amar sem grilhetas nos gestos
Mas a primavera ainda não voltou,
Vem, que tenho muitas viagens por fazer.

Porto, 1980



ângela marques
circulares
nova renascença
abril/junho
primavera de 1985



07 julho 2013

luis muñoz / plano de fuga



Fechar algumas portas de saída.
À rua de seda, ao pátio concentrado em si,
à sombra generosa que fareja nos jasmins,
à facilidade, à dificuldade,
à neve enlameada que dorme no teu desejo.



luís muñoz
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004



05 julho 2013

eduarda chiote / o corpo e a primavera



Ouço
o corpo
da primavera.

Na brisa
segura macias flores.
Dir-se-ia o delicioso rubor
dos seios.
Não sei se surgindo
da vergonha
de alguns botões ainda
por abrir.

Terno enredo
o de escutá-lo no sobressalto e despontar
do sexo: sentado
conserva os joelhos apertados
contra o queixo,
furtando-o
a invisíveis e furiosas
abelhas.
Talvez por medo
de que o mel desabe
e o tempo tenha de acolher-se,
abrasado de cio,
na delícia e destreza
de uma ingenuidade em absoluto
efémera.
De que as rosas
breve
percam o engano e o frescor
da voz.

Deixemo-lo, pois, entregue
ao claro som e asseio
do seu respirar.


eduarda chiote
a celebração do pó
asa
2001



04 julho 2013

miguel torga / corografia


(Bofinho, Alvaiázere, 9 de Fevereiro de 1975)


Meu Portugal eterno
De cabras e carrascos!
É no teu chão dorido
Que gasto, em paz, os cascos
De fauno envelhecido...



miguel torga
diário XII



03 julho 2013

rené char / não se entende



ao longo da luta tão negra
e da imobilidade tão negra,
o terror cegando o meu reino,
eu ocupava-me dos leões alados da colheita
até ao grito frio da anémona.

vim ao mundo na deformidade das cadeias de cada criatura.
tornávamo-nos livres os dois.

de uma moral compatível, extraí irrepreensíveis recursos.
apesar da sede de desaparecer,
fui pródigo na espera, a fé constante.

sem renunciar.



rené char
furor e mistério
tradução margarida vale de gato
relógio de água
2000



02 julho 2013

amalia bautista / perguntas e respostas




Eu sempre perguntava coisas tontas,
é certo. Perguntava, por exemplo,
se voltarias a amar-me tanto
como nos dias do amor mais jovem,
ou mesmo mais, ou mesmo mais que nunca,
mesmo mais que a ninguém, e se serias
capaz de confessá-lo ante qualquer.
É certo, perguntava coisas tontas,
não merecia uma resposta séria.
Aquele ser, mais escuro que a noite
mais escura da alma, respondia
sem olhar-me nos olhos: «Nunca mais.»



amalia bautista
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004


01 julho 2013

jorge de sousa braga / passara quarenta anos


  
Passara quarenta anos de binóculos assestados, a seguir
as migrações das aves  e a tomar  estranhos apontamen-
tos num caderno.  A  última vez  que  foi  visto  voava  a
meia altura em direcção ao sul.



jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991



30 junho 2013

daniel faria / explicação da ausência



Desde que nos deixaste o tempo nunca mais se transformou
Não rodou mais para a festa não irrompeu
Em labareda ou nuvem no coração de ninguém.
A mudança fez-se vazio repetido
E o a vir a mesma afirmação da falta.
Depois o tempo nunca mais se abeirou da promessa
Nem se cumpriu
E a espera é não acontecer - fosse abertura -
E a saudade é tudo ser igual. 


daniel faria
poesia
últimas explicações
quasi
2003




29 junho 2013

alberto caeiro / ah! querem uma luz melhor



AH! QUEREM uma luz melhor que
a  do Sol!
Querem prados mais verdes do que estes!
Querem flores mais belas do que estas
que vejo!
A mim este Sol, estes prados, estas flores contentam-me.
Mas, se acaso me descontentam,
O que quero é um sol mais sol
que o Sol, 
O que quero é prados mais prados
que estes prados,
O que quero é flores mais estas flores
que estas flores -
Tudo mais ideal do que é do mesmo modo e da mesma maneira!




alberto caeiro



28 junho 2013

rui knopfli / verso e anverso



Diria palavras altas como amor,
palavras lentas como ternura,
ou duráveis como amizade.

Desceu um véu de luto sobre o amarelo
esmaecido da savana, lá onde dormem
os corpos mutilados e onde cresta,
rente à terra, o sangue derramado.

Baixou sobre a serenidade das coisas
um sono obscuro e terrível.
Poluiu o teu sorriso, o meu desejo;
intercala os gestos e as vozes ciciadas.

Cerramos os olhos para a penumbra
donde brotam, nítidas, as imagens:
Há uma criança no fogo,
o pavor de um soluço estrangulado,
fulgurantes, rápidas chamas.

Direi palavras insuportáveis como morte.



rui knopfli
memória consentida : 20 anos de poesia 1959-1979
imp. nac. casa da moeda
1982




27 junho 2013

antónio barahona / o amoroso quotidiano



A juventude é transparente,
é bom olhar através dessa transparência
(esta palavra já foi conspurcada pela
maralha repugnante dos políticos)

*

Excursões por livrarias, templos, jardins,
almoços, jejuns, faltas de dinheiro,
 dores de dentes, jornais com anúncios luminosos,
amigos que morrem mal e ressuscitam bem impressos

*

A minha morte, o meu nome, o meu trabalho:
escutar-te, todos os dias, à distância de muitos tiros,
calhandra toda lábios, em vôos coloridos



antónio barahona 
resumo, a poesia em 2012
documenta
2013



26 junho 2013

jorge luís borges / as coisas




A bengala, as moedas, o chaveiro,
a dócil fechadura, essas tardias
notas que não lerão meus poucos dias
que restam, o baralho e o tabuleiro,
um livro e dentro dele a esmagada
violeta, monumento de uma tarde
por certo inolvidável e olvidada,
o rubro espelho ocidental em que arde
uma ilusória aurora. Quantas coisas,
limas, umbrais, atlas, copos, cravos,
nos servem como tácitos escravos,
cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão para além do nosso olvido
e nunca saberão que já nos fomos.




jorge luís borges


25 junho 2013

adília lopes / portugueses



Portugueses:
gente ousada
gente usada

Brandos usos:
abusos grandes
e pequenos



adília lopes
sete rios entre campos
caras baratas
antologia
relógio d´água
2004