I
Vem, que os sinos não tocaram
e ainda fez pouco tempo desde que me vesti de orquídeas,
sinto a folha nítida à flor da pele
e tenho o corpo entorpecido da chuva.
Isto não é medo dos barcos, mas antes um olhar arrefecido
por um momento de silêncio são horas de voltarmos ao cais azulado
e fazermos as despedidas de verdade.
Vem, que te encontrarei em qualquer pedaço de rua,
ou nos poços que povoam a cidade: é de ti que falarei
a vida inteira até quando abrir o jornal e encontrar um velho a sorrir,
hão-de subir-me as lágrimas ao pescoço e correrei à aldeia de terra
batida,
no caminho levo águas e umbrais para que as gaivotas se não sintam sós:
então será um desfiar de rosários eternos,
como o choro de minha mãe. Quando chegar
todos estarão em fila com os olhos pregados no horizonte
(será inútil lembrar-lhes os heróis antigos)
à espera dos meus sonhos que ouviram contar.
É por isso que as casas são de granito
e a lenha não chega para tantas ilusões.
Terei que ir devagar e pensar na janela que ficou do lado das sombras,
terei que resolver as entranhas dos mortos para descobrir uma rosa
terei que fechar a porta com cabelos loiros
e então dizer-lhes
que não tenho mãos.
É quando os homens vão gritar pelos espelhos
e as mulheres ajoelhar frente ao sol,
mesmo assim conseguirei rodear-me de tojo,
fingir que tenho o mar ali ao virar das cruzes,
que os amigos não me abandonaram.
Será supremo o trigo quente e o sabor dos frutos
como se tivesse comigo um homem para afagar os olhos, ou então chorar.
Viverei das cores que me arrepiam os sentidos
porque isso bastará para curar cicatrizes, a face esfregá-la-ei com
urtigas
para que os lábios não tenham tempo de secar.
Com a maior das solenidades cairei por terra:
— que me atirem ao vento para poder finalmente voar
e amar sem grilhetas nos gestos
Mas a primavera ainda não voltou,
Vem, que tenho muitas viagens por fazer.
Porto, 1980
ângela marques
circulares
nova renascença
abril/junho
primavera de 1985