02 fevereiro 2013

helder moura pereira / uma caneta contra os vidros




Eras mesmo a fonte de tudo, pelo menos
naquele dia a que chamámos perfeito.
Os dias tinham-se entranhado nos dias,
a tal ponto que a vida era só dias, dias
a seguir uns aos outros. Apenas dias.
De olhos vendados e sem bater numa única
parede, pegados a isto, ao cheiro reconhecido
só quando um dos corpos se afasta.
Sente-se a falta, eu farejo como um cão
e depois sento-me triste a um canto
com um livro na mão. Mas naquele dia
que ambos classificámos de perfeito
eu pude ver a vida ali desdobrada em duas
à minha frente. E a tua inocência poderosa
a dizer-me uma vez sem exemplo faz
de mim o que quiseres, dobra o cabo
dos trabalhos e atira-te de cabeça.




helder moura pereira
uma caneta contra os vidros
relâmpago
revista de poesia 29-30
out 2011 abril 2012



01 fevereiro 2013

josé gomes ferreira / diário dos dias cruéis




2 de agosto

Nem luz, nem destroços
deixei de passagem…
Nem a minha imagem
no rumor dos poços.
Nem um risco aberto
na cal da parede.
Nem a minha sede
no sol deserto…



josé gomes ferreira
poesia II
diário dos dias cruéis 1939
portugália
1962



31 janeiro 2013

concha garcía / h. h. despede-se





Sou redonda e pouco bela.

A natureza concedeu-me
Uma leve camada de pele
Que se alegra de sol.

Esfolam os animais
dotados varões que nas suas mãos
contabilizam a sorte
num promontório de sábios.

A minha mãe é a mesma da fotografia.
Não se queixa do frio
E lamenta-se das escadas
Que sobe para a igreja
Húmida nos cânticos, lenços
Hasteados. Chora o quarto
Da fotografia. É um poeta
Com vários filhos. Diz
Que quando perdes alguém nunca
É exactamente
A mesma pessoa quem regressa.




concha garcía
la rambla
córdoba
1956
(versão minha)


30 janeiro 2013

salvatore quasimodo / e de repente é noite




Cada um está só sobre o coração da terra
Trespassado por um raio de sol:
E de repente é noite.




salvatore quasimodo 
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de ernesto sampaio
assírio & alvim
2001




29 janeiro 2013

carlos saraiva pinto / valerá a pena escrever a neve




valerá a pena escrever a neve
em carreiros de água,
como se a noite fosse o líquido
que obedece às películas da distância.

a impressão ágil da sombra
que produz o efeito das tílias
e o sossego longínquo
do nada iluminado.

sobre a boca encontrarás
o sinal do silêncio

a sua mãe terrestre
que esquece as ervas,
os socalcos leves
que chegam ao rio
mortos em verbo.

valerá a pena
a asa envolvente do jasmim
o anjo insubmisso do trigo,
ou o espelho sonoro
que guarda a metafísica dos caminhos.

como o céu e o carvalho milenar,
o leito é isento de mágoa,
e a porta dos peregrinos
busca a religião da luz.

ouve e repara a teimosia
do vinhático
em perfumar o ar.

é inútil o tacto da boca.

descerás
pelos campos subterrâneos da névoa
e crescerá em ti
o profano esquecimento de tudo.




carlos saraiva pinto
escrever foi um engano
o correio dos navios
2001



28 janeiro 2013

györgy somlyó / fábula da flor artificial





São tal e qual como as verdadeiras, seria de esperar que falassem.
Simplesmente não falam.
São belas como as verdadeiras rosas.
Mas um pouco mais belas.
Com mais plenitude.
Todas as espécies estão presentes. E cada qual a mais perfeita.
Do pénis do botão fechado aos lábios desabrochados das pétalas.
As que estão semiabertas, as que o estão totalmente.
E a gama das cores do amarelo profundo ao quase branco. 
Iguais hoje àquilo que foram ontem.
E ainda iguais amanhã.                                                                                                  
Ignorando o tempo e dele ignoradas.
Como elas zombam de ti, meu antigo desejo:
Anotar a álgebra de uma rosa do irradiar ao declínio.
 
Não se pode viver com uma rosa que não murcha.




györgy somlyó
poemas
tradução de egito gonçalves



27 janeiro 2013

marguerite yourcenar / e tu, vais-te embora?





e tu,
vais-te embora? vais-te embora?...

não,
não te vais embora: fico contigo…

deixas-me nas mãos a tua alma,
como um casaco.


  


marguerite yourcenar
fogos
trad. de maria da graça morais sarmento
difel
1995



26 janeiro 2013

gabriela mistral / uma palavra




Eu tenho uma palavra na garganta
e não a solto, não me livro dela
ainda que o coice do sangue me empurre.
Se a liberto, incendeia pastagens,
degola cordeiros, faz cair os pássaros.

Tenho que a desprender da minha língua,
encontrar um buraco de castores,
ou sepultá-la com cal e massa
para que não esconda como a alma, o voo.

Não quero dar sinais de que estou viva
enquanto circular pelo meu sangue
e suba e desça pelo meu louco fôlego.
Embora o meu pai Job, ardendo, a tenha dito,
não quero dar-lhe a minha pobre boca
para que não a encontrem as mulheres
que vão ao rio, e se prenda às suas tranças
ou se esfregue e abrace no pobre matagal.

Eu quero lançar-lhe violentas sementes
para que numa noite a cubram e afoguem
sem dela deixar o pó duma sílaba.
Ou cortá-la assim, como a víbora
a meio se corta com os dentes.

E voltar a minha casa, entrar, adormecer,
já cortada, já dela separada,
e acordar depois de dois mil dias,
recém-nascida de sono e esquecimento.

Sem saber mais que tive uma palavra
de iodo e alúmen entre os lábios,
nem me  poder recordar de uma noite,
de uma morada num país alheio,
da armadilha ou viga na porta,
da minha carne a andar sem a sua alma.

  



gabriela mistral
lagar
(versão minha)
santiago do chile
1954 


25 janeiro 2013

luís miguel nava / não muita vez




Não muita vez nos vemos, mas, se poucos
amigos há para falar
dos quais me sirvo de relâmpagos, de todos
é ele o que melhor vai com a minha fome.

Os dedos com que me tocou
persistem sob a pele, onde a memória os move.
Tacteiam, impolutos. Tantas vezes
o suor os traz consigo da memória, que não tenho
na pele poro através
do qual eles não procurem
sair quando transpiro. A pele é o espelho da memória.




luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
onde: a nudez
publicações dom quixote
2002



24 janeiro 2013

hans-ulrich treichel / recaída




De vez em quando uma recaída
na fumarada dos blues,
nos uivos do saxofone
de não sei quem.
De quando em quando um dos livros
que estão em cima do guarda-
-fato. Há dias Camus
caíu-me aos pés. Meu Deus,
que belos tempos, quando tudo
era ainda sem sentido e não
me doíam as cruzes.

  


hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994


23 janeiro 2013

cecília meireles / lua adversa




Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha


Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.


E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...



cecília meireles



22 janeiro 2013

antonio gamoneda / geórgica


  

Entre o estrume e o relâmpago escuto o grito do pastor.

Ainda há luz sobre as asas do gavião e eu desço às fogueiras húmidas.

Ouvi o sino da neve, vi o fungo da pureza, criei
o esquecimento.




antonio gamoneda
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de josé bento
assírio & alvim
2001



21 janeiro 2013

michális ganas / pancadas surdas


  

É obra conhecer as nossas dificuldades
articular a alma
num problema difícil de palavras-cruzadas,
umas vezes na vertical, outras na horizontal,
passando a cada passo
por uns grandes quadrados negros,
tropeçando em amigos esquecidos.
Circunspectos habitualmente
por vezes insinceros
cheios de marcas de pancadas surdas.
Perguntamos como foi
e uns dizem
que escorregaram na banheira
e outros dizem
que escorregaram na rua,
esta terra anda cheia de cascas de banana.




michális ganas
(n. 1943)
«akáthistos deipnos»
atenas, 1985
tradução de manuel resende