27 novembro 2012

antonio gamoneda / um bosque abre-se…


  

Um bosque abre-se na memória e o cheiro a resina é útil
ao meu coração. Vi as esferas do suor e os
insectos na doçura;


depois, o crepúsculo em seus olhos;


mais tarde, o cardo a ferver perante o centeio e a fadiga
dos pássaros perseguidos pela luz



antonio gamoneda
livro do frio
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999


26 novembro 2012

fernando pessoa / já não me importo




Já não me importo
Até com o que amo ou creio amar.
Sou um navio que chegou a um porto
E cujo movimento é ali estar.

Nada me resta
Do que quis ou achei.
Cheguei da festa
Como fui para lá ou ainda irei

Indiferente
A quem sou ou suponho que mal sou,

Fito a gente
Que me rodeia e sempre rodeou,

Com um olhar
Que, sem o poder ver,
Sei que é sem ar
De olhar a valer.

E só me não cansa
O que a brisa me traz
De súbita mudança
No que nada me faz.



fernando pessoa


25 novembro 2012

josé tolentino mendonça / quatro tiros no coração





Certas manhãs chegava
esmagado pela luz
longo, frívolo, ofensivo
qualquer gesto aludia
a uma espécie de tremor
a tristeza daqueles que não pertencem
a lugar algum

vivia tudo num instante
a solidão, os rancores
as alegrias dos outros
o silêncio do Outono

nunca o amor tocara o seu corpo
com a intensidade do medo
tornou-se parte de um rito
nem perto, nem longe
da palavra justa

ele só pedia
«não me digam nada»




josé tolentino mendonça
baldios
assírio & alvim
1999



24 novembro 2012

antónio barbedo / alexitimia




A dor cessa pelas quatro da manhã.
Acorda mais tarde com
vómitos, borras de café. Em maca,
num quarto diferente. O sangue AB negativo.
Agulha descartável, máscara
de oxigénio. A luz de presença

torna legível – uma existência sem
afectos, a poesia sem  metáforas



antónio barbedo  
encontros de talábriga
festival internacional de poesia de aveiro
1999/2003




23 novembro 2012

fernando alves dos santos / ode



Levantar um homem dum túmulo desprezado;
deixá-lo à minha imagem
tocar no ventre das estátuas
justificando para sempre a queda mitológica das cidades.
Procurar coisa tão pouca
como a minha invenção deserta e ágil
num cigarro de acaso a própria manhã
que entre os dedos levo à minha boca.
Deixar que doa uma gota do meu sangue
e correr
correr
até que os pulsos me rebentem;
tiritar de silêncio
ter raízes que ultrapassem os regaços das mães
fazer de novo a morte no seio das montanhas abertas
e beijar na própria epiderme
a nossa lucidez amatória de universo.




fernando alves dos santos
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998

22 novembro 2012

antónio franco alexandre / agora estou na beira do penhasco...


  
8

agora estou na beira do penhasco e não vou voar
como o sublime bicho estratosférico brilhante
de plumas esmeraldas tentativos braços
apenas eu baço de nenhuma asa debruçado
sobre o vidro de água e em baixo
os corredores, dispostos à partida
em músculos compactos, e deles o mais jovem (vestido

de improváveis azagaias) exclama: é esta
a fonte do trovão!, e aponta
um buraco azul mudo nas paredes da pedra. por fora
de mim regresso ao som silencioso da cidade
onde todos os rostos são o papel com linhas de inventário
e as patas dos homens pousam na larga secretária
e ficam, em relevo, caminhando no sangue, e eu queria
para ti, uma cidade sem mistério,

o gelo transparente onde mergulha a imagem
dos corredores, lançados no velocíssimo sossego sem repouso
das palavras trocadas, das bocas e dos braços misturados
pela luz, que é uma areia movediça,
este saber de nós sem ócio e sem negócio, iguais
às portas do trovão, onde o mais sábio
se lança nu compacto deus do fogo e ri




antónio franco alexandre
poemas
assírio & alvim
1996


21 novembro 2012

antónio gancho / sintaxe




Aonde a planície já não tiver um sentido
e os campos forem já só o horizonte
aí o teu vestido há-de ser cor esmaecido
e sobre ti a minha fronte.
Por te sobre os joelhos uma flor rubra
por te no lugar das pernas o mais amor que me houver
aí onde a flor deixa o pólen
aí o sémen mulher.
Por te sobre o sémen o gemido do teu acto
por te sobre o gemido
a planície sem sentido
aí o teu vestido há-de ser cor esmaecido
por te sobre as pernas me dilato.




antónio gancho
o ar da manhã
assírio & alvim
1995




20 novembro 2012

vinícius de moraes / poema do natal




PARA ISSO fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos ─
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será a nossa vida
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos ─
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai ─
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação na poesia
Para ver a face da morte ─
De repente nunca mais esperaremos…
Hoje a noite é jovem: da morte, apenas
Nascemos, imensamente.




vinicius de moraes
o poeta apresenta o poeta
cadernos de poesia
publicações dom quixote
1969


19 novembro 2012

sandro penna / cinco breves poesias





1
Talvez a juventude seja isto:
sem arrependimento amar sempre os sentidos.

2
Este corpo que aperto (e me aperta!)
tem um sabor de estrelas e de lodo.
E eu não sei quem agora me tinge
(profundíssimo jogo) de vermelho
as estrelas.

3
Era no cinema, onde as portas
se abrem e fecham continuamente.
Àquele rumor ela pensou
que ele voltasse;
mas não voltou.

4
Fazer do verde prado
um jogo proibido.
Já o tenho tentado.
Sem o conseguir.

5
«Poeta exclusivo do amor»
me chamaram. E era talvez certo.
Mas o vento aqui sobre a erva e os rumores
da cidade longínqua
não são eles também amor?
Sob nuvens quentes
não são ainda o som
de um amor que arde
e não mais se afasta?



sandro penna
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003



18 novembro 2012

guillevic / subúrbio


  

A custo de pé se mantêm os muros
Ao longo desta rua
Íngreme, cheia de curvas.

Dir-se-ia que vieram todos, os do bairro,
Enxugar as mãos gordurosas no rebordo das janelas,
Antes de em conjunto penetrarem na festa
Onde parecia cumprir-se o seu destino.

Vê-se um comboio a arrastar-se por cima da rua,
Vêem-se luzes a acender-se,
Vêem-se quartos sem espaço.

Por vezes uma criança chora
Na direcção do futuro.



guillevic
faubourg, terraqué (1942)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003



17 novembro 2012

alexandre o´neill / ao rosto vulgar dos dias




Monstros e homens lado a lado,
Não à margem, mas na própria vida.

Absurdos monstros que circulam
Quase honestamente.

Homens atormentados, divididos, fracos.
Homens fortes, unidos, temperados.

*

Ao rosto vulgar dos dias,
A vida cada vez mais corrente.
As imagens regressam já experimentadas,
Quotidianas, razoáveis, surpreendentes.

*

Imaginar, primeiro, é ver.
Imaginar é conhecer, portanto agir.




alexandre o'neill
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998



16 novembro 2012

gil t. sousa / nirvana


  

9

segue
o sujo marfim
das horas


e chegarás
à loucura dos
santos



gil t. sousa
água forte
2005 





15 novembro 2012

miguel serras pereira / sobre as ervas



Vem sobre as ervas do silêncio
E desperta a tua mão
─  É apenas o espaço sem dedos entre os dedos
de outra mão ausente

na tua mão de silêncio sobre as ervas
no espaço sem mão entre os teus dedos.



miguel serras pereira
trinta embarcações para regressar devagar
relógio d´água
1993