15 maio 2012

antoni clapés / era a luz, era a forma de uma luz





Era a luz, era a forma de uma luz
Interior, um rumor como um véu
que cobria o silêncio e as palavras.
Era um (espaço) deserto
dilacerado em infinitos sinais fragmentados.
Era o tempo que volvia, fulgor do relâmpago
no vazio, no próprio relâmpago.
Era o poema, era o poeta do poeta.

Era a poesia habitada




antoni  clapés
poemas                                      
tradução de egito gonçalves




14 maio 2012

guy goffette / fica se vens para ficar





(...)
Não fales ainda. Escuta o que foi
lâmina na minha carne: cada passo, um riso ao longe,
o latir do cachorro, o bater da portada
e este comboio que não acaba de passar

sobre os meus ossos. Fica sem palavras: não há nada
a dizer. Deixa a chuva tornar a ser a chuva
e o vento esta maré sob as telhas, deixa

o cão gritar o seu nome na noite, a portada
bater, ir-se embora o desconhecido neste lugar nenhum
onde morro. Fica se vens para ficar.






guy goffette
l'attente
la vie promise
paris
2000



12 maio 2012

manuel antónio pina / It's allright, ma...









Está tudo bem, mãe,
estou só a esvair-me em sangue,
o sangue vai e vem,
tenho muito sangue.
 
Não tenho é paciência,
nem tempo que baste
(nem espaço, deixaste-me
pouco espaço para tanto existência).

Lembranças a menos
faziam-me bem,
e esquecimento também
e sangue e água a menos.

Teria cicatrizado
a ferida do lado,
e eu ressuscitado
pelo lado de dentro.

Que é o lado
por onde estou pregado,
sem mandamento
e sem sofrimento.

Nas tuas mãos
entrego o meu espírito,
seja feita a tua vontade,
e por aí adiante.

Que não se perturbe
nem intimide
o teu coração,
estou só a morrer em vão



manuel antónio pina




11 maio 2012

yehuda amichai / a escola onde estudei



  


Passei pela escola onde estudei enquanto rapaz
e disse do fundo do coração: aqui aprendi certas coisas
e não aprendi outras. Toda a minha vida amei em vão
as coisas que não aprendi. Estou coberto de conhecimento,
sei tudo sobre o crescimento da árvore do conhecimento,
a forma das suas folhas, a função do seu sistema de raízes, os seus insectos parasitas.
Sou um especialista na botânica do bem e do mal,
e ainda estou a estudá-la, e continuarei a estudá-la até ao dia em que morrer.
De frente para o edifício, olhei para o seu interior. Esta é a sala
onde nos sentámos e aprendemos. As janelas de uma sala de aulas sempre
abertas
para o futuro, mas na nossa inocência pensávamos que era apenas paisagem aquilo que víamos da janela.
O recreio era estreito, pavimentado com pedras largas.
Relembro o breve tumulto de nós os dois
junto dos frágeis degraus, o tumulto
que era o início de um primeiro grande amor.
Agora ele existe para além de nós, como num museu,
como tudo o resto em Jerusalém.




yehuda amichai
(alemanha, 1924 – israel, 2000)
tradução de miguel gonçalves




10 maio 2012

herberto helder / os olhos luciferinos dos anjos





Os olhos luciferinos dos anjos.

Quero dizer: têm uma luz — possuem a qualidade
veemente mas fria da espera, da promessa: sim?, da anunciação.

Penso nas estátuas brancas,
com seus olhos desprovidos de pupilas.
Colocadas assim nas trevas, essas estátuas
ressaltam com uma doçura dolorosa e intempestiva
e parecem indicar outro tempo: a luz, ou a treva maior,
aquela que nem somos capazes de presumir.

Deste modo é que ela surgira no pórtico,
e havia os pequenos e fortes cornos
que irrompiam ao cimo da testa,
acompanhando com maligna e rápida subtileza
o movimento da cabeleira.

Aérea, a cabeleira.
Existia ainda uma boca para todo o silêncio.
Porque se tratava de silêncio, evidentemente.
Era esse o tema — é esse o tema das aparições.

Além do longo vestido, o tema branco — que obliquamente se insinuava,
como se insinuam os múltiplos planos — no tema das trevas.

Ah, sim: era o tema branco,
e as mãos não traziam nenhum lírio pictórico,
a haste comprida, a corola consagrada à alta e luminosa
representação do angelismo.

Os braços caíam ao longo do vestido
e as mãos estavam coladas às pernas.

Era quase um emblema ambíguo — sê-lo-ia,
se o tempo houvesse parado antes,
e eu apenas tivesse ali chegado
como se chega à história antiga, ao facto de pedra:
um monumento, uma capela, um túmulo,
a casa do príncipe que criara a concentração dos seus mitos tumultuosos
na matéria adormecida.

Porque andava, eu, andava de um lado para outro,
na penumbra em que se erguia a sobreposição de cilindros,
de diâmetro cada vez menor,
conforme se levantava a vista até ao cimo — e no cimo,
no último pequeno cilindro, estava um longo mastro nu,
sem bandeira de cidade ou nação.

Era difícil pôr-se a imaginar o serviço de todos os pórticos
abertos à roda de cada cilindro — não se esperasse,
como seria possível, que em cada pórtico surgisse uma árvore
assim direita, uma figura, aquela mensagem silenciosa e vibrante
coisa mineral, vegetal: o coração dos dias desabitados.

Uma diferente figura em cada pórtico,
ou a proliferação, numa momento inflacionista,
de imagens todas iguais, como múltiplos avisos,
múltiplos sinais da trepidação interior?

Por quantos lados ressuscita a vida enterrada?

Ë apenas para que se saiba:
há muitos pórticos,
e em cada pórtico tu próprio podes aparecer,
para o primeiro passo em direcção ao teu lugar de trevas
ou à cidade de Deus.

Mas ela era só uma e tinha para si um só pórtico,
e ali estava, e a sua beleza contraditória e veloz
acabava agora mesmo de ferir-me no que eu andava:
por que eu andava de cá para lá, à frente do edifício.

Acorda-se, há um dia em que se acorda
— e então a gente põe-se a andar.

(…)


  




herberto helder
apresentação do rosto
editora ulisseia
1968





09 maio 2012

josé antónio almeida / ao anoitecer






Sou um velho rato celibatário
─ a lei não me permite casamento.

Outros encontram sem dificuldade
o universo pronto a vestir
  
logo de manhã, desde que nasceram.
Depois trajam todas as convenções

─ que lhes assentam bem, do colarinho
às mangas, até parece que Deus

é um alfaiate por conta deles.
A nós, a melhor roupa fica mal

─ em nenhuma loja vendem sapatos
que nos deixem ir noutra direcção,

nem anel que não faça propaganda
à ordem sempre «natural» do mundo.






josé antónio almeida
rumo
a poesia em 2009
assírio & alvim
2010



08 maio 2012

fiama hasse pais brandão / pequeno uso para a dor






Até a dor
já tem palavras certas
expressão pequena
seja ou não seja breve


Seja ou não
por mais palavras
postas
não cede a dor
ao som

Mas dizem-se palavras
uma expressão pequena
a dor não sendo já
ou até deixar de ser




fiama hasse pais brandão
o texto de João zorro
nome lírico
editorial inova
1974



  




07 maio 2012

samuel beckett / aquela vez


  

ou à janela no escuro a ouvir a coruja de cabeça vazia até ser difícil acreditar cada vez mais difícil de acreditar que alguma vez tivesses jurado amor a alguém ou alguém a ti até se tornar numa daquelas coisas que tu ias inventando para conter o vazio uma daquelas histórias para impedir que o vazio se viesse embrulhar num lençol




samuel beckett
aquela vez e outros textos
trad. luis miguel cintra e diogo dória
quasi
2003






06 maio 2012

e.e. cummings / a função do amor é fabricar desconhecimento






a função do amor é fabricar desconhecimento

(o conhecido não tem desejo; mas todo o amor é desejar)
embora se viva às avessas, o idêntico sufoque o uno
a verdade se confunda com o facto, os peixes se gabem de pescar

e os homens sejam apanhados pelos vermes(o amor pode não se
importar
se o tempo troteia, a luz declina, os limites vergam
nem se maravilhar se um pensamento pesa como uma estrela
─ -o medo tem morte menor; e viverá menos quando a morte acabar)

que afortunados são os amantes(cujos seres se submetem
ao que esteja para ser descoberto)
cujo ignorante cada respirar se atreve a esconder
mais do que a mais fabulosa sabedoria teme ver

(que riem e choram)que sonham, criam e matam
enquanto o todo se move; cada parte permanece quieta:




e.e. cummings
livrodepoemas
trad. cecília rego pinheiro
assírio & alvim
1999





05 maio 2012

carlos oquendo de amat / mãe






O teu nome chega devagarinho como as músicas humildes
e das tuas mãos esvoaçam pombas brancas

Na minha recordação vestes sempre de branco
como as crianças no recreio que os homens olham de longe

Nos teus braços morre um céu e outro nasce da tua ternura

Quando estou pensando o carinho abre-se a teu lado como uma flor

Entre ti e o horizonte
a minha palavra é primitiva como a chuva e os hinos

Porque ante ti se calam as rosas e as canções.


  


carlos oquendo de amat
(puno-peru,1905 - navacerrada-espanha,1936)
tradução de nicolau saião






04 maio 2012

rené char / juventude


  


Longe da emboscada dos imprevistos
e da esmola dos calvários,
gerais-vos a vós próprias,
reféns dos pássaros,
fontes.
A queda do homem feita da agonia das suas cinzas,
do homem
que se debate com a sua vingativa providência,
não basta para vos desencantar.

Louvor, aceitámo-nos mutuamente.

"Se eu tivesse sido muda como a marcha da pedra,
fiel ao Sol,
que ignora a sua ferida cerzida de hera,
se eu tivesse sido criança como a árvore branca
que acolhe os pavores das abelhas,
se as colinas tivessem vivido o Verão,
se o relâmpago me tivesse aberto as suas grades,
se as tuas noites me tivessem perdoado..."

Olhar,
vergel de estrelas,
as giestas,
a solidão,
distinguem-se de vós!
O cântico põe cobro ao exílio.
A brisa dos cordeiros traz a vida nova.





rené char
furor e mistério
(grafia adaptada)
tradução margarida vale de gato
relógio de água
2000




03 maio 2012

gil t. sousa / invisível





1

as mãos roçam a noite como árvores nuas e tudo o que deixam nas janelas fechadas é um canto de pedra, um canto negro que sobe e desce os telhados de ruas desconhecidas e desertas, que se esconde em corações solitários, como gárgulas de sangue, por onde escorrem vozes, gritos secos e antigos, gritos de medo, gritos de raiva, de homens que sufocaram no tempo, estrangulados de mentira e de lama.

sou tão invisível, hoje! nenhuma ponte me apanha no abismo de acordar.




gil t. sousa
água forte
2005




02 maio 2012

mário-henrique leiria / evocação






Pegada na areia
recortada ainda
como o sinal distante
que espera apenas
a prevista vinda
do mar em maré cheia
barco oscilante
vazio como o búzio
abandonado
entre os escombros
a recordar
um rosto perdido
de mulher
envolto em algas
com manchas solares
até aos teus ombros
num tempo já esquecido
sorriso de mulher
a desaparecer suavemente
atrás da duna
como a leve escuna
que parte
ao sol poente

todos os demónios
cantando em tua mão
o mar
a solidão




mário-henrique leiria
contos do gin tonic
editorial estampa
1973