06 fevereiro 2012

antónio osório / augúrio





Não antecipes a tristeza
de morrer: não queiras muito
às lágrimas: consola-te
bebendo-as. E sê grato ao dia
em que, vivo, as tragaste.



antónio osório
casa das sementes
décima aurora
assírio & alvim
2006




04 fevereiro 2012

fiódor dostoiévski / cadernos do subterrâneo




6

Oh, se eu não fizesse nada só por preguiça! Meu Deus, que respeito teria por mim. E teria esse respeito, precisamente, porque era capaz, pelo menos, de ter preguiça; haveria em mim, pelo menos, a certeza de uma característica definida. Se perguntassem de mim: quem é? E respondessem: um mandrião — isso ser-me-ia extremamente agradável de ouvir. Quer dizer que tinha uma característica determinada, logo, era possível dizer algo de mim. «Mandrião!» — mas isso é um título, um cargo, uma carreira. Não é brincadeira, é verdade. Nesse caso, seria membro de pleno direito de um clube de primeira e passava a vida a respeitar-me. Conheci um sujeito que toda a vida se orgulhou de ser perito em champanhe Laffite. Considerava isso uma grande qualidade sua e nunca duvidava de si mesmo. Morreu, não só de consciência tranquila, mas de consciência triunfante, e tinha absoluta razão. Quanto a mim, escolheria uma carreira de mandrião e glutão, mas não de um simples e corriqueiro mandrião e glutão, antes, por exemplo, de adepto de tudo o que é belo e sublime. Que tal, na vossa opinião? Tive esta ideia há muito tempo. Muito esse «belo e sublime» me oprimiu a nuca, chegado aos meus quarenta anos; mas isso foi aos quarenta — se fosse antes, teria sido outra coisa! Teria também achado para mim, com toda a certeza, a minha correspondente actividade, como seja: beber brindando à saúde de tudo o que é belo e sublime. Não deixaria passar qualquer ocasião de verter, primeiro, uma lágrima no copo e, depois, de o emborcar em honra de tudo o que é belo e sublime. Tornar-me-ia lacrimejante como uma esponja embebida. Por exemplo, um artista pintava um quadro de Gay (1).Imediatamente eu brindava à saúde do artista que pintava um quadro de Gay, porque gosto de tudo o que é belo e sublime. Um autor escrevia que «cada um faz o que lhe dá na gana»; de imediato brindo pela saúde de «quem me dá na gana» porque gosto de todo o «belo e sublime». Exigiria que me respeitassem por isso mesmo, perseguiria quem não me mostrasse respeito. Vivo sossegado, morro solenemente — mas é uma maravilha, uma verdadeira maravilha! E que barriga deixaria crescer, que papo triplo cultivaria, que nariz de sândalo elaboraria; e qualquer um diria olhando para mim: «Este tem pinta! Tem algo de verdadeiramente positivo!» Seja como for, é extremamente simpático ouvir características destas no nosso século negativo, meus senhores.


(1) Esta frase sarcasticamente invertida refere-se ao pintor russo Nikolai Gay (1831-1894) e ao seu quadro  Última Ceia, que Dostóievski  achava transmitir uma ideia falsa.





fiódor dostoiévski
cadernos do subterrâneo
trad. nina guerra e filipe guerra
assírio & alvim
2000


03 fevereiro 2012

patrick lane / transformando-se em tempestade





Sei que é um homem branco.
Entra de lado no vento
Permitindo ao seu lado esquerdo

esquecer o que o direito
conhece como frio. Os seus ouvidos
transformam em morte o que

os seus olhos não podem ver. O dia inteiro
ele afasta-se do sol
transformando-se em tempestade. Não

o tomes pelo uivo que ouves
ou pelo rasto que pensas estar
a seguir. Encontrar um homem branco

na neve é procurar os mortos.
Ele tem sido queimado pelo vento.
Tem deixado demasiada

carne no cascalho branco do inverno
para que deixe a sua cor como sinal.
Branco frio. Carne fria. Ele encosta-se

Ao vento de lado; mata sem
piedade tudo o que esteja ao seu lado esquerdo
entrando como a loucura na neve.





patrick lane
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
tradução de cecília rego pinheiro
assírio & alvim
2001




02 fevereiro 2012

marguerite yourcenar / solidão





solidão...

não creio como eles crêem,
não vivo como eles vivem,
não amo como eles amam...

morrerei
como eles morrem.


  


marguerite yourcenar
fogos
trad. de maria da graça morais sarmento
difel
1995


01 fevereiro 2012

gil t. sousa / recado





45

amei-vos

como uma árvore
ama os seus pássaros



gil t. sousa
falso lugar
2004




31 janeiro 2012

jorge velhote / acqua

   

                                                           para António Osório


                                                                          Ora passa e declina
                                                                          in quest'autunno che inced
                                                                          con lentezza indicibille,
                                                                          il miglior tempo della nostra vita     
                                                                                                                              
                                                                               Cardarelli


1.

eu não tinha relógio
nem húmidos dedos para habitar
de palavras
apenas lentíssimos olhos
sobre a chuva
como fogo

mas como contemplar teu rosto
crepitando
se das cinzas do vinho e do mel
cresciam as aves
que ocultavas
como música

como invadir a casa
de silêncio
se nas  pálpebras da água

e sobre a terra
um ofício de segredos
como láagrimas

me perturba


2.

eu começara perdendo fascinado
o outono
a azul respirado límpido

mas gravando
o corpo desses agudos
nomes
na loucura da água
recomeço rente às pedras
il miglior tempo della nostra vita







jorge velhote
1979



30 janeiro 2012

caio resende / meninos e bruxas



I

Hoje tenho a mão mais leve,
cansei de pesar sobre as coisas
o que meu peito e alma não puderam.
Levo inda, por baixo de um segredo,
um par de coisas de que tenho medo,
são coisas bobas de menino,
como, por exemplo, ficar de ponta cabeça
e ver alguém se aproximando  – parece bobo,
mas o que esperar de gente com a cabeça tão no céu?
E tenho medo dos caminhos mais seguros,
desde muito, muito menino,
pois lá é que sempre as coisas ficam chatas,
ficam como se sempre fossem a mesma coisa.
Lá, os rios pararam de correr e os meninos
chovem para dentro




caio resende
meninos e bruxas
2011



29 janeiro 2012

michális ganas / porta



Porta cheia de nós
remorsos da nogueira.
Gravas as tuas iniciais a canivete,
vais para a escola atrasado.
O professor que bata,
tens na boca
o gosto da imortalidade.

Diz-me se encontraste o canivete.
A porta, sei que a mudaram.





michális ganas
akáthistos deipnos
atenas, 1985.
tradução de manuel  resende


28 janeiro 2012

rui costa / autobiografia






Não preciso mas tu sabes como eu sou
Encaminho-me pouco divirto-me assim nas copas
Das árvores soprando pensamentos para o mundo que há de noite.
As pessoas quando acordam são outras, já sabias,
Essa névoa contemporânea do medo miudinho
Que perdemos nas cidades e nos corpos, tu entraste
Antes de mim nos jogos, o enxofre da música e o
Lago do feitiço, inocente homem breve que sonha
Tu bem sabes.
Depois aluguei a bruxa por uma vasta noite.
E a minha vida mudou, a noite cresceu,
A vertigem ardeu-me nos braços até a sangria
Do tédio quando para sempre julguei que te perdia.
Na luta perdi um ou dois braços,
Mais do que o que tinha. Mas esta memória é um palácio,
São corais no pensamento. Jardins e fantasmas,
O gume nas mãos sorvendo, criança estratosférica
E profunda: sem braços e agora sem mais nada.
Não me percebeste, enchi-me de fúria.
É uma arte, queria eu dizer, matar sem retrocesso e
Atraso   –  ah aqueles braços para apoiar as mãos  ─  ,
Ceifando. Saturno e o vento na proa erguendo.
O  navio no mar parado, parado: completamente.
Parado como dizer? Não dizer, eu sou uma vida
Medonha e múltipla. E agora descanso
Deitado nestas mãos que mexem
Sem apoio, sabes, nascendo dos teus olhos
P’la manhã.





rui costa
a nuvem prateada das pessoas graves
quasi
2005



27 janeiro 2012

eugénio de andrade / da ignorância




A mão
que entregava à tua
os primeiros sinais do verão
já não sabe o caminho ─  é como se
em vez de aprender fosse cada vez mais
e mais ignorante. Ou ignorar
fosse todo o saber.




eugénio de andrade
poesia
rente ao dizer
fundação eugénio de andrade
2000





26 janeiro 2012

al berto / crepúsculo




(…)

Chegava a qualquer cidade e alugava dois ou três quartos, distantes uns dos outros, mas nunca pernoitava duas vezes de seguida no mesmo.

Em todos eles simulava viver há muito tempo. Num, espalhava bugigangas de plástico, compradas aos vendedores ambulantes, sobre os poucos desengonçados móveis. Noutro, pendurava roupa nos pregos que tinham servido para pendurar estampas baratas, e que alguém se dera ao incómodo de roubar.

Por vezes, deitado, olhava para os pregos espetados nas paredes e tentava perceber o que levava alguém a roubar aquelas arrumadinhas paisagens suíças que, infalivelmente, decoravam os quartos das pensões. E adormecia a pensar que no outro quarto cobrira as paredes com fotografias, e era nesse quarto que lhe apetecia estar.

(…)





al berto
lunário
assírio & alvim
1999




25 janeiro 2012

ted hughes / fidelidade




Era um lugar para viver. Andava
só a ver passar o tempo, a namorar-te,
a flutuar na maré da manhã com as confusas sensações
dos meus vinte e cinco anos. Esvaziada e redecorada
À la mode, a Alexandra House
tinha-se tomado a sopa dos pobres. Estes eram os dias
anteriores à moda vanguardista dos cafés.
A ruidosa cantina do Restaurante Britânico,
uma das marcas deixadas pela guerra,
era um lugar para retemperar noitadas com pequenos-almoços.
Mas a Alexandra House era o lugar onde se ia para ser visto.
As raparigas que recebiam viviam no andar de cima,
acompanhadas por um grupo de perdidos, pessoas que só
  dormiam de dia,
exaustos de andarem pela noite. Nem sei como
consegui um colchão ali, num quarto do andar de cima,
com vista para Petty Cury. Um colchão
sem mais, em cima de umas tábuas nuas, num quarto vazio.
Era tudo o que eu tinha, o meu caderno e aquele colchão.
Sob os pegajosos ouriços dos castanheiros que se abriam,
pelo mês de Junho, abandonei o emprego, preocupava-me
só contigo, esbanjando tudo o que tinha poupado.
Livre da Universidade perdia-me
nas suas liberdades. Todas as noites
dormia naquele colchão, debaixo de uma manta,
com uma rapariga encantadora, que acabava de se escapar
ao marido para aquela experiência limite
de servir na sopa dos pobres. Que
cavalheirismo se apoderou de mim? Penso nisto tudo
como se tivesse acontecido num tempo que nunca passou,
que nunca usei, e ainda está, portanto, em meu poder.
Essa rapariga e eu dormimos nos braços um do outro,
nus e tranquilos como amantes, todas as noites, durante um mês,
sem nunca termos feito amor. Uma qualquer lei sagrada
tinha sido inventada só para mim.
Mas também ela lhe obedecia, como uma sacerdotisa,
delicada e meiga e completamente nua a meu lado.
Seguia com o dedo os arranhões que tu tinhas acabado
  de inscrever
a toda a largura das minhas costas, e até parecia que se queria
  juntar a mim
na minha obsessão, na minha concentração,
para manter a minha preocupação intacta.
Nem uma única vez me convidou, nunca tentou nada.
E eu nunca movi um dedo para além
de um consolo fraterno. Eu era como uma irmã,
e aquilo nunca me pareceu antinatural. Estava absorto,
tão fechado em ti, de uma forma tão cega,
que tudo o que não fosses tu não existia para mim.
E ainda hoje medito — embora já tenha dúvidas
se é motivo para me orgulhar, ou para me lamentar. A sua amiga
tinha um quarto maior, e era mais selvagem.
Mudámo-nos e ficámos no quarto dela. Aquele quarto enorme
transformou-se em dormitório e em quartel-general
alternativo a St Botolph’s. Bonita e roliça,
com um desenvergonhado riso de dentes ralos, esta
  sua amiga
fez tudo o que pôde para me ter dentro dela.
E nunca saberás da batalha
que eu travei para manter o sentido às minhas palavras,
no mundo que nós estávamos a construir.
Eu tinha medo que, se perdesse aquela luta,
alguma coisa nos abandonasse. Erguendo do solo uma
daquelas raparigas nuas, enquanto elas me sorriam
nos seus vinte e poucos anos, coloquei-as
no limiar do nosso improvável futuro
como aqueles que, precisando de proteger a sua casa
tinham por hábito sepultar, no limiar da nova casa,
uma criança inocente.





ted hughes
cartas de aniversário
trad. de manuel dias
relógio d´água
2000





24 janeiro 2012

leonardo chioda / um fausto




quanta vantagem
sobre o erro

tem o demônio
da certeza

no rolar do precipício
em carne