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(…)
No porto, olhai da nave a panda vela:
E além os negros mares. Meus marinheiros,
Meus sócios nas ideias e trabalhos,
Que sempre alegremente recebestes
Trovões e Sóis, e que expusestes livres
O peito e a frente, estamos velhos todos:
Ora a velhice tem seu brio honrado;
A morte acaba tudo; mas, no fim,
Algo de nobre poderá ser feito,
Digno dos homens que enfrentaram Deuses.
As luzes já se acenderam pelas serras:
O longo dia esvai-se: e a lenta lua
Sobe: e as profundas multivárias uivam.
Ainda não é tarde, meus amigos,
Para buscarmos um mais novo mundo.
Façamo-nos ao mar, ao remo assentes,
Arai as fundas vagas. Meu propósito
É ir além do Poente e dos caminhos
Dos astros do Ocidente, até que eu morra.
Provável é que abismos nos engulam:
Ou que nos surjam as Afortunadas,
E o grande Aquil´s vejamos, que estimámos.
Muito se perde, e muito fica; embora
Não tenhamos a força que, outros tempos,
Tudo movia – quanto somos, somos:
Uma igual têmpera do peito heróico,
Ao tempo e fado frágil, mas bem forte
Para buscar, achar, e não perder.
alfred tennyson
ulisses
poesia de 26 séculos
2º volume / de bashô a nietzsche
trad. jorge de sena
editorial inova
1972
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05 abril 2011
03 abril 2011
clarice lispector / a paixão segundo g. h.
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Dá-me a tua mão:
Vou agora te contar
como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta.
De como entrei
naquilo que existe entre o número um e o número dois,
de como vi a linha de mistério e fogo,
e que é linha sub-reptícia.
Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir
- nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo
que é a respiração do mundo,
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos
e chamamos de silêncio.
clarice lispector
a paixão segundo g. h.
relógio d´água
2000
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Dá-me a tua mão:
Vou agora te contar
como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta.
De como entrei
naquilo que existe entre o número um e o número dois,
de como vi a linha de mistério e fogo,
e que é linha sub-reptícia.
Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir
- nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo
que é a respiração do mundo,
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos
e chamamos de silêncio.
clarice lispector
a paixão segundo g. h.
relógio d´água
2000
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01 abril 2011
paul éluard / tristeza de ondas de pedra
Tristeza de ondas de pedra.
Lâminas apunhalam lâminas
Vidros quebram vidros
Lâmpadas apagam lâmpadas.
Tantos laços quebrados.
A flecha e a ferida
O olho e a luz
A ascensão e a cabeça.
Invisível no silêncio.
paul éluard
algumas palavras (antologia)
tradução antónio ramos rosa e luiza neto jorge
dom quixote
1977
Lâminas apunhalam lâminas
Vidros quebram vidros
Lâmpadas apagam lâmpadas.
Tantos laços quebrados.
A flecha e a ferida
O olho e a luz
A ascensão e a cabeça.
Invisível no silêncio.
paul éluard
algumas palavras (antologia)
tradução antónio ramos rosa e luiza neto jorge
dom quixote
1977
29 março 2011
ernesto sampaio / no tarot…
No Tarot, há uma correspondência exacta entre os primeiros termos do 2.º e do 5.º ternários, representados pelos arcanos IV e XII. O arcano IV (Imperador) representa o enxofre dos alquimistas, o fogo interior, princípio activo da vida individual. Ao arder, este fogo consome reservas que se vão esgotando, de onde a diminuirão gradual do seu ardor e a sua extinção final naquilo a que chamamos a Morte (arcano XIII), a qual , na realidade, não extingue nada, mas liberta as energias sufocadas sob o peso de uma matéria cada vez mais inerte. Longe de matar, a morte revivifica, dissociando o que já não pode continuar a viver. Sem a sua intervenção, tudo desfalecia, de tal modo que a vida, finalmente, já não se distinguiria da imagem que o vulgo tem da morte.
ernesto sampaio
fernanda
fenda
2005
27 março 2011
joan margarit / primeiro amor
Na Gerona triste dos meus sete anos
onde as vitrinas do pós-guerra
tinham uma cor cinzenta de penúria
a cutelaria era um estalido
de luz nos pequenos espelhos de aço.
Com a fronte descansando no vidro
olhava uma navalha longa e fina
bela como uma estátua de mármore.
Como não queriam armas em minha casa
comprei-a em segredo e no bolso
batia-me, ao caminhar, na coxa.
Por vezes abria-a devagar
e aparecia a folha fina e direita
com a conventual frialdade da arma.
Silenciosa presença do perigo:
nos trinta primeiros anos escondi-a
atrás de livros de versos e depois
numa gaveta entre as tuas cuecas
e entre as tuas meias.
Agora, prestes a fazer os cinquenta e quatro
volto a vê-la aberta na palma da mão
tão perigosa como na infância.
Sensual, fria. Mais perto do pescoço.
joan margarit
quinze poetas catalães
tradução de egito gonçalves
ed. limiar, porto
1994
22 março 2011
pedro oom / poema
Os camaradas
saíram para a rua
com os bolsos cheios de serpentinas
(o calendário
estava trocado
e de Entrudo
nicles
nem um só cabeçudo
ou máscara
até o polícia de giro
com a dignidade sui generis
dos pequenos autocratas
participou na patuscada
depois do jogo
- o Benfica foi eliminado)
Os camaradas
compraram fatos novos
nos alfaiates dernier-cri
e botaram as serpentinas
no lixo
para não deformar
os bolsos (novos).
pedro oom
sacavém, março de 1973
21 março 2011
vinícius de moraes / a rosa de hiroxima
Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroxima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa, sem nada
vinícius de moraes
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001
19 março 2011
william carlos williams / estas
--------ESTAS
são as semanas desoladas, sombrias
em que na sua aridez a natureza
rivaliza com a estupidez humana.
O ano despenha-se na noite
e o coração é um abismo
mais fundo que a noite
nesse vazio varrido pelo vento
sem sol, sem lua nem estrelas
apenas uma estranha luz do pensamento
que lança um tenebroso fogo -
rodando sobre si mesma até
no frio incendiar-se
e revelar ao homem algo que ele
desconhece, não a solidão
em si - não um espectro
ainda que o pudesse abraçar - vazio,
desespero - (gemendo
soluçando) entre
as chamas e os estrondos da guerra;
casas em cujos aposentos
o frio ultrapassa o imaginável,
aqueles que se foram e que amávamos
vazias as camas, húmidos os
sofás, as cadeiras sem uso -
Oculta-os algures
longe do pensamento, deixa-os criar
raízes e crescer, salvo de olhos e ouvidos
ciosos - por si somente.
A esta mina chegam para escavar - todos.
Será isto o contraponto da música mais
suave? A fonte da poesia que
ao ver o relógio parado, diz:
Parou o relógio
que ontem trabalhava tão bem?
e ouve o som das águas do lago
salpicando - agora petrificadas.
william carlos williams
antologia breve
tradução josé agostinho baptista
assírio & alvim
1993
fotografia urs stooss
14 março 2011
walt whitman /a um estranho
Estranho que por mim passas! não sabes com que
anseio meus olhos te fitam.
Porque és aquele que eu procuro, aquela que eu
procuro (como se fora um sonho),
Tenho a certeza que, nalguma parte, alegremente
vivi contigo,
Recordo, ao nos cruzarmos, tudo, fluido, afectuoso,
casto, calmo,
Cresceste comigo, foste comigo um rapaz, comigo
foste rapariga,
Comi contigo, dormi contigo, o teu corpo não ficou só
teu, nem o meu corpo só meu,
Deste-me o prazer dos teus olhos, do rosto, da carne,
ao nos cruzarmos levas da minha
barba, peito, mãos, em troca.
Não me cumpre falar-te, eu sou quem existe para
pensar em ti, quando fico sozinho
ou de noite acordo,
Eu sou quem deve esperar, seguro de voltar a
encontrar-te,
Eu sou quem deve cuidar de te não perder para
sempre.
walt whitman
poesia de 26 séculos
vol. II de bashô a nietzche
trad. jorge de sena
editorial inova
1972
09 março 2011
léon-paul fargue / fases
O garoto arrisca-se a morrer
Pois muito se cansa a correr
Por entre os objectos amados
Nessa demanda sentimos
Ir o pobre em correria
No grande silêncio do dia
E o barulho do dia freme.
E como que em oração rara
A hora passa lenta e clara
Sobre o largo sonolento
Sob o céu do Inverno que treme
E a vida é como um lamento.
Ah como ela faz sofrer!
Sem censura, voz calada
Por um prazer, por um nada...
léon-paul fargue
"tancrède" (revista "pan",1895)
trad. de nicolau saião
07 março 2011
flor campino / dias há de doçura insuportável
Dias há de doçura insuportável
As páginas do livro
volvem os dedos água.
O sopro das palavras
gasta os vasos
por onde, insuportável, a doçura
consuma o espaço.
flor campino
(a aresta das folhas, afrontamento, porto 2000)
da outra margem
antologia de poesia de autores portugueses
instituto camões
2001
05 março 2011
gil t. sousa / esse dom de cegar
32
quisera tão só esse dom de cegar,
de luz trespassar as noites
e no ventre do mundo correr mansamente
como se os navios chamassem
e um oceano morresse no vazio dos passos,
como se fosse a hora de me transformar numa ilha
onde só tu naufragasses
gil t. sousa
falso lugar
2004
03 março 2011
jean cocteau / par lui-même
Aproveitei-me, confesso, de certos acidentes
Do mistério e de erros de cálculos celestes.
Aí está toda a minha poesia: eu decalco
O invisível (o que para vós é invisível).
Ao crime disfarçado em trajo desumano,
«Mãos ao ar!», gritei eu, «É inútil reagir»;
A encantos informes tratei de dar contorno;
Das astúcias da morte a traição informou-me;
Com tinta azul fiz aparecer, de súbito,
Fantasmas transformados em árvores azuis.
Será louco dizer que é simples ou sem perigo
Empresa semelhante. Incomodar os anjos!
Descobrir o acaso em flagrante delito
De batota, e as estátuas a tentarem andar!
Por cima de cidades que pareciam desertas,
Nos mirantes aonde somente chega a voz
Dos galos, das escolas, buzinas de automóveis
(Os únicos ruídos que das cidades sobem),
Surpreendi, provindos dos subúrbios do céu,
Assombrosos rumores, gritos de outra Marselha.
«Par lui-même», vv 1-20, Opera (1927)
jean cocteau
vozes da poesia europeia – III
traduções de david mourão-ferreira
colóquio letras número 165
setembro - dezembro 2003
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