27 março 2011

joan margarit / primeiro amor





Na Gerona triste dos meus sete anos
onde as vitrinas do pós-guerra
tinham uma cor cinzenta de penúria
a cutelaria era um estalido
de luz nos pequenos espelhos de aço.
Com a fronte descansando no vidro
olhava uma navalha longa e fina
bela como uma estátua de mármore.
Como não queriam armas em minha casa
comprei-a em segredo e no bolso
batia-me, ao caminhar, na coxa.
Por vezes abria-a devagar
e aparecia a folha fina e direita
com a conventual frialdade da arma.
Silenciosa presença do perigo:
nos trinta primeiros anos escondi-a
atrás de livros de versos e depois
numa gaveta entre as tuas cuecas
e entre as tuas meias.
Agora, prestes a fazer os cinquenta e quatro
volto a vê-la aberta na palma da mão
tão perigosa como na infância.
Sensual, fria. Mais perto do pescoço.




joan margarit
quinze poetas catalães
tradução de egito gonçalves
ed. limiar, porto
1994

22 março 2011

pedro oom / poema






Os camaradas
saíram para a rua
com os bolsos cheios de serpentinas

(o calendário
estava trocado
e de Entrudo

nicles
nem um só cabeçudo
ou máscara
até o polícia de giro
com a dignidade sui generis
dos pequenos autocratas
participou na patuscada
depois do jogo
- o Benfica foi eliminado)

Os camaradas
compraram fatos novos
nos alfaiates dernier-cri
e botaram as serpentinas
no lixo
para não deformar
os bolsos (novos).






pedro oom
sacavém, março de 1973






21 março 2011

vinícius de moraes / a rosa de hiroxima




Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroxima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa, sem nada





vinícius de moraes
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001





19 março 2011

william carlos williams / estas



--------ESTAS

são as semanas desoladas, sombrias
em que na sua aridez a natureza
rivaliza com a estupidez humana.

O ano despenha-se na noite
e o coração é um abismo
mais fundo que a noite

nesse vazio varrido pelo vento
sem sol, sem lua nem estrelas
apenas uma estranha luz do pensamento

que lança um tenebroso fogo -
rodando sobre si mesma até
no frio incendiar-se

e revelar ao homem algo que ele
desconhece, não a solidão
em si - não um espectro

ainda que o pudesse abraçar - vazio,
desespero - (gemendo
soluçando) entre

as chamas e os estrondos da guerra;
casas em cujos aposentos
o frio ultrapassa o imaginável,

aqueles que se foram e que amávamos
vazias as camas, húmidos os
sofás, as cadeiras sem uso -

Oculta-os algures
longe do pensamento, deixa-os criar
raízes e crescer, salvo de olhos e ouvidos

ciosos - por si somente.
A esta mina chegam para escavar - todos.
Será isto o contraponto da música mais

suave? A fonte da poesia que
ao ver o relógio parado, diz:
Parou o relógio

que ontem trabalhava tão bem?
e ouve o som das águas do lago
salpicando - agora petrificadas.







william carlos williams
antologia breve
tradução josé agostinho baptista
assírio & alvim
1993

fotografia urs stooss





14 março 2011

walt whitman /a um estranho







Estranho que por mim passas! não sabes com que
anseio meus olhos te fitam.

Porque és aquele que eu procuro, aquela que eu
procuro (como se fora um sonho),
Tenho a certeza que, nalguma parte, alegremente
vivi contigo,
Recordo, ao nos cruzarmos, tudo, fluido, afectuoso,
casto, calmo,
Cresceste comigo, foste comigo um rapaz, comigo
foste rapariga,
Comi contigo, dormi contigo, o teu corpo não ficou só
teu, nem o meu corpo só meu,
Deste-me o prazer dos teus olhos, do rosto, da carne,
ao nos cruzarmos levas da minha
barba, peito, mãos, em troca.

Não me cumpre falar-te, eu sou quem existe para
pensar em ti, quando fico sozinho
ou de noite acordo,
Eu sou quem deve esperar, seguro de voltar a
encontrar-te,
Eu sou quem deve cuidar de te não perder para
sempre.





walt whitman
poesia de 26 séculos
vol. II de bashô a nietzche
trad. jorge de sena
editorial inova
1972





09 março 2011

léon-paul fargue / fases






O garoto arrisca-se a morrer
Pois muito se cansa a correr
Por entre os objectos amados

Nessa demanda sentimos
Ir o pobre em correria
No grande silêncio do dia

E o barulho do dia freme.
E como que em oração rara
A hora passa lenta e clara
Sobre o largo sonolento
Sob o céu do Inverno que treme

E a vida é como um lamento.
Ah como ela faz sofrer!
Sem censura, voz calada

Por um prazer, por um nada...








léon-paul fargue
"tancrède" (revista "pan",1895)
trad. de nicolau saião










07 março 2011

flor campino / dias há de doçura insuportável






Dias há de doçura insuportável

As páginas do livro
volvem os dedos água.
O sopro das palavras
gasta os vasos

por onde, insuportável, a doçura
consuma o espaço.






flor campino
(a aresta das folhas, afrontamento, porto 2000)
da outra margem
antologia de poesia de autores portugueses
instituto camões
2001







05 março 2011

gil t. sousa / esse dom de cegar




32


quisera tão só esse dom de cegar,
de luz trespassar as noites
e no ventre do mundo correr mansamente

como se os navios chamassem
e um oceano morresse no vazio dos passos,
como se fosse a hora de me transformar numa ilha
onde só tu naufragasses





gil t. sousa
falso lugar
2004





03 março 2011

jean cocteau / par lui-même






Aproveitei-me, confesso, de certos acidentes
Do mistério e de erros de cálculos celestes.
Aí está toda a minha poesia: eu decalco
O invisível (o que para vós é invisível).
Ao crime disfarçado em trajo desumano,
«Mãos ao ar!», gritei eu, «É inútil reagir»;
A encantos informes tratei de dar contorno;
Das astúcias da morte a traição informou-me;
Com tinta azul fiz aparecer, de súbito,
Fantasmas transformados em árvores azuis.


Será louco dizer que é simples ou sem perigo
Empresa semelhante. Incomodar os anjos!
Descobrir o acaso em flagrante delito
De batota, e as estátuas a tentarem andar!
Por cima de cidades que pareciam desertas,
Nos mirantes aonde somente chega a voz
Dos galos, das escolas, buzinas de automóveis
(Os únicos ruídos que das cidades sobem),
Surpreendi, provindos dos subúrbios do céu,
Assombrosos rumores, gritos de outra Marselha.

«Par lui-même», vv 1-20, Opera (1927)









jean cocteau
vozes da poesia europeia – III
traduções de david mourão-ferreira
colóquio letras número 165
setembro - dezembro 2003



02 março 2011

marcel proust / a última reserva do passado




Ora as lembranças de amor não constituem excepção às leis gerais da memória, também elas regidas pelas leis mais gerais do hábito. Como este enfraquece tudo, o que melhor nos recorda um ser é justamente o que esquecemos (porque era insignificante e lhe deixámos assim toda a sua força). Por isso é que a melhor parte da nossa memória está fora de nós, numa aragem pluviosa, no cheiro de um quarto fechado ou no cheiro de uma primeira labareda, em toda a parte onde encontramos de nós mesmos o que a nossa inteligência, por não o utilizar, pusera de lado, a última reserva do passado, a melhor, aquela que, quando todas as nossas lágrimas parecem esgotadas, nos sabe ainda fazer chorar.







marcel proust
em busca do tempo perdido
à sombra das raparigas em flor
trad. pedro tamen
relógio d´água
2003





28 fevereiro 2011

brian patten / é sempre a mesma imagem





é sempre a mesma imagem;
a tua, saindo nua dos rios do Outono,
o corpo envolto em vapor, coberto de chuva,
gotas azuis e cinzentas desprendem-se de ti,
quando falas
folhas caem e desintegram-se.

é sempre a imagem dos teus seios,
cheio da violência de plantas marinhas
que vibram quando tocadas; peixes
acasalam por debaixo de ti; o teu corpo azul, a tua
sombra seguindo-o,
ambos como espectros vistos de esplanadas distantes
por um público assustado.

a mesma imagem,
mas agora um lago cercado por fetos,
e, meio visíveis por entre a neblina,
mil amantes seguindo-te nus
sem deixar rasto nas esquinas da madrugada.






brian patten
leituras poemas do inglês
trad. joão ferreira duarte
relógio d'água
1993



25 fevereiro 2011

lawrence ferlinghetti / o mundo é um lugar maravilhoso







O mundo é um lugar maravilhoso
para se nascer
se as pessoas não se preocuparem demasiadamente
com o facto de a felicidade nem
sempre ser
muito divertida

se as pessoas não se ralarem muito com um
bocado do inferno
uma vez por outra

no preciso momento em que tudo está bem
porque mesmo no céu
não se canta
constantemente

O mundo é um lugar maravilhoso
para se nascer
se as pessoas não se ralarem com a morte de
outras pessoas
constantemente
ou talvez apenas a morrerem à fome
de vez em quando
o que não será mau de todo
se não for a nós que isso acontece

Oh o mundo é um lugar maravilhoso
para se nascer
se as pessoas não se ralarem muito
com alguns espíritos mortos
nos postos mais elevados
ou uma bomba ou duas
uma vez por outra
nos vossos rostos virados para
cima

ou outras inconveniências
como aquelas a que a nossa Sociedade
de Marca Registada
está sujeita
com os seus homens de grande
distinção
e os seus homens de grande extinção
e os seus sacerdotes
e outros serviços de patrulha

e as suas várias segregações
e comissões de investigação do congresso
e outras prisões de ventre
das quais a nossa carne tonta
é herdeira

Sim o mundo é o melhor lugar de todos
para fazermos uma porção de coisas como
consagrar-nos à alegria
consagrar-nos ao amor
e consagrar-nos à tristeza
e cantarmos canções graves
e termos inspirações
e nos passearmos
olhando para tudo
e cheirando as flores
e troçando das estátuas
e até pensando
e até beijando pessoas e
fazendo crianças e usando calças
e acenando com os chapéus e
dançando
e indo nadar para os rios
em piqueniques
no meio do verão
e de um modo geralmente geral
«gozando à bruta»


Sim
mas depois no meio de tudo isso
aparece o sorridente
cangalheiro








lawrence ferlinghetti
pictures of the gone world
trad. josé palla e carmo
cadernos de poesia
dom Quixote
1972





22 fevereiro 2011

paulo da costa domingos / travesti






Tivemos um quarto belo como nas casas de passe
Comigo a mirar-te nua no espelho do guarda-vestidos
À socapa
Tivemos um recinto belo como o pavilhão dos furiosos
de uma clínica psiquiátrica
Os teus olhos encovados dialogavam com a morte
24 sobre 24 horas
& afinal os teus cabelos oxigenados iam deixando ver
agora a cor real
& a tua bolsa estava vazia e eu tive de voltar a pé para
casa
Mas nunca deixaste de me sorrir, mesmo do lado de lá
Dos barbitúricos

(25.9.1977)







paulo da costa domingos
travesti
& etc
1979