04 outubro 2010

j. m. g. le clézio / diego & frida



















“na saliva
no papel
no eclipse
em todas as linhas
em todas as cores
em todas as jarras
no meu peito
fora, dentro
no tinteiro na dificuldade de escrever na maravilha dos meus olhos, nas últimas luas do sol (mas o sol não tem luas) em tudo e dizer em tudo é estúpido e magnífico DIEGO na minha urina DIEGO na minha boca no meu coração na minha loucura no meu sonho no mata-borrão na ponta da caneta nos lápis nas paisagens na alimentação no metal na imaginação nas doenças nas montras nas suas astúcias nos seus olhos na sua boca nas suas mentiras. “

frida kahlo






j.m.g. le clézio
diego & frida
trad. manuel Alberto
relógio d´água
1994




29 setembro 2010

violeta c. rangel / pôde ter sido ontem ou há um verão






Pôde ter sido ontem ou há um verão,
numa tarde dessas idiotas
em que andava aos saltos dos comboios
ou bebia rum com esses turistas.

Mas não, fazes questão de vir
precisamente a esta hora,
quando nem chove nem está frio,
e estou triste, e já não tenho
vontade de abrir o meu sangue a ninguém.

Enfim, é precisamente agora,
com a vida de rastos
e uma vontade de morrer
a qualquer preço, que escuto
os teus passos na erva,
e chamas, chamas… deus!,


e corro a abrir-te.






violeta c. rangel
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000






27 setembro 2010

maria do rosário pedreira / chegam cedo de mais







Chegam cedo de mais, quando ainda não podem escolher
nem decidir. Vêm carregados de espectros, de memórias
e de feridas que não souberam sarar; mas trazem a confiança
da cura nas palavras. Convencem-se de que amam outra vez


quando nos tocam os pequenos lugares, esquecendo-se do rumo
incerto dos seus passos nas estradas tortuosas que os
trouxeram. Abafam-se num cobertor de mentiras sem saber e
falam de injustiça quando tentamos chamá-los à verdade.


Dormem de vez em quando nas nossas camas e protegemo-los
da dor como aos filhos que não iremos ter nunca
porque não nos resignamos a perdê-los. E, um dia, partem, vão


culpados, não chegam a explicar o que os arrasta. Escrevem
cartas mais tarde – uma ou duas palavras para se aliviarem dessa espada.
E nós ficamos, eternamente, sem vergonha, à espera que regressem.








maria do rosário pedreira
a casa e o cheiro os livros
gótica
2002




25 setembro 2010

cristovam pavia / não fugir







ao Nuno





Não fugir. Suster o peso da hora
Sem palavras minhas e sem os sonhos,
Fáceis, e sem as outras falsidades.
Numa espécie de morte mais terrível
Ser de mim despojado, ser
abandonado aos pés como um vestido.
Sem pressa atravessar a asfixia.
Não vergar. Suster o peso da hora
Até soltar sua canção intacta.






cristovam pavia
poesia
dom quixote
2010




22 setembro 2010

antónio gancho / mostras-me o fim do mundo






*


MOSTRAS-ME O FIM do mundo
o Inferno de Dante
onde o Diabo nos arde na sua fogueira
com os demónios todos juntos
mesmo assim quero ir contigo
vou contigo para o fim do mundo
para o fim da Terra
para o Céu ou o Inferno
vou contigo para a fogueira do Inferno
lá quero-me arder contigo
e ardemos os dois
ao mesmo tempo trespassados pela faca do amor.




antónio gancho
poemas digitais
jun. / jul. 89
o ar da manhã
assírio & alvim
1995





20 setembro 2010

amadeu baptista / cúmplices





20.

Este será o coração da partida, o olhar
que em silêncio incendeia a árvore
e faz a pedra pulsar. A eterna carícia
e o último despojamento
quando a luz inaugura a doçura, esse rumor
inquieto na solidão, o corpo extenuado
que se rende à terra e cede ao enigma
do fogo e à magia do vento.

Neste vocábulo planto um arbusto de sangue, a mais secreta
gruta em que me despeço das aves, a extensa brancura
do primeiro fascínio da tua pele
a que regressarei para sempre
após a faca lentíssima no peito
e os veleiros imponderáveis de Aland
onde me encontro e me perco
para a extrema cumplicidade do amor e da morte.







amadeu baptista
cúmplices
nova renascença vol. XVI
inverno / outono de 1996
fundação eng. antónio de almeida
1996







17 setembro 2010

chico buarque / choro bandido







mesmo que os cantores sejam falsos como eu
serão bonitas, não importa
são bonitas as canções
mesmo miseráveis os poetas
os seus versos serão bons
mesmo porque as notas eram surdas
quando um deus sonso e ladrão
fez das tripas a primeira lira
que animou todos os sons
e daí nasceram as baladas
e os arroubos de bandidos como eu
cantando assim:
você nasceu para mim
você nasceu para mim

mesmo que você feche os ouvidos
e as janelas do vestido
minha musa vai cair em tentação
mesmo porque estou falando grego
com sua imaginação
mesmo que você fuja de mim
por labirintos e alçapões
saiba que os poetas como os cegos
podem ver na escuridão
e eis que, menos sábios do que antes
os seus lábios ofegantes
hão de se entregar assim:
me leve até o fim
me leve até o fim

mesmo que os romances sejam falsos como o nosso
são bonitas, não importa
são bonitas as canções
mesmo sendo errados os amantes
seus amores serão bons





edu lobo - chico buarque
para a peça “O corsário do rei de Augusto Boal
1985






15 setembro 2010

sylvia plath / medalhão








Junto ao portão com a estrela e a lua
trabalhadas em pau de laranjeira descascado
jazia ao sol a serpente de bronze

inerte como um cordão de sapatos, morta
mas ainda flexível, a mandíbula
sem articulação e um esgar retorcido,

a língua como uma seta cor-de-rosa.
Suspendi-a sobre a minha mão.
O seu pequeno olho escarlate

inflamado era uma chama vidrada
quando o voltei para a luz,
ao partir um dia uma pedra,

assim ardiam os pedaços de granada.
O pó dava ao seu dorso uma tonalidade ocre
do mesmo modo que uma truta exposta ao sol.

Mas o seu ventre conservava o fogo
que avançava sob a cota de malha,
e as velhas jóias, ali, ardiam lentamente

em cada escama opaca do ventre:
o pôr-do-sol visto através de um vidro leitoso.
E vi larvas brancas serpear,

finas como alfinetes na ferida negra
onde as suas vísceras inchavam como se
estivesse a digerir um rato.

Quase tão casta como uma faca,
puro metal de morte. O tijolo arremessado
pelo trabalhador completou o seu esgar.






sylvia plath
pela água
tradução de maria de lurdes guimarães
assírio & alvim
1990





13 setembro 2010

gil t. sousa / é verão




25/


é Verão no meu sangue e o corpo é o quadrante dum relógio mágico onde todas as horas são marcadas com sinais de fogo.

nas veias queimadas, só o carinho da Lua – essa velha surda e cega ! – que na sua bondade de fêmea me transforma os pecados em paixão e faz dos meus gritos orações poderosas que os deuses escutam e aceitam.




gil t. sousa
falso lugar
2004



11 setembro 2010

steve mccaffery / poema de jornal







levante-se e desça as escadas.

apanhe o jornal e folheie imediatamente
a necrologia

se o seu nome não aparecer
volte para a cama.







steve mccaffery
pullll lllllll
poesia contemporânea do canadá
trad. john havelda, isabel patim & manuel portela
antígona
2010





09 setembro 2010

josé agostinho baptista / o tempo e o mar








Era um homem, a sombra de um homem e
caminhava para o mar.
Estas pegadas
são o obscuro rumor do tempo
e o tempo é uma vara oblíqua nas mãos de deus.
Que fará um homem com as dores do mundo,
com a última gota dos cálices ao lado da noite?
Reconstruir o teu rosto da amada
dar vida à sua silenciosa vida?
Matar,
no súbito ardil do Outono, os vestígios de uma
palavra secreta?
Há uma cidade profunda onde em profunda água
ela o esquece.
Quem para o mar caminha
leva consigo a maldição das ilhas com um
lírio quebrado, uma ânfora de pólen,
um adeus.






josé agostinho baptista
paixão e cinzas
biografia

assírio & alvim
2000






07 setembro 2010

samuel beckett / três poemas de amor






cascando



1

fosse apenas o desespero da
ocasião da
descarga de palavreado

perguntando se não será melhor abortar que ser estéril

as horas tão pesadas depois de te ires embora
começarão sempre a arrastar-se cedo de mais
as garras agarradas às cegas à cama da fome
trazendo à tona os ossos os velhos amores
órbitas vazias cheias em tempos de olhos como os teus
sempre todas perguntando se será melhor cedo de mais do
que nunca
com a fome negra a manchar-lhes as caras
a dizer outra vez nove dias sem nunca flutuar o amado
nem nove meses
nem nove vidas


2

a dizer outra vez
se não me ensinares eu não aprendo
a dizer outra vez que há uma última vez
mesmo para as últimas vezes
últimas vezes em que se implora
últimas vezes em que se ama
em que se sabe e não se sabe em que se finge
uma última vez mesmo para as últimas vezes em que se diz
se não me amares eu não serei amado
se eu não te amar eu não amarei

palavras rançosas a revolver outra vez no coração
amor amor amor pancada da velha batedeira
pilando o soro inalterável
das palavras

aterrorizado outra vez
de não amar
de amar e não seres tu
de ser amado e não ser por ti
de saber e não saber e fingir
e fingir

eu e todos os outros que te hão-de amar
se te amarem


3

a não ser que te amem












samuel beckett
trad. miguel esteves cardoso
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990




06 setembro 2010

luís vaz de camões / correm turvas as águas deste rio







Correm turvas as águas deste rio,
que as do Céu e as do monte as enturbaram;
os campos florecidos se secaram,
intratável se fez o vale, e frio.

Passou o verão, passou o ardente estio,
umas coisas por outras se trocaram;
os fementidos Fados já deixaram
do mundo o regimento, ou desvario.

Tem o tempo sua ordem já sabida;
o mundo, não; mas anda tão confuso,
que parece que dele Deus se esquece.

Casos, opiniões, natura e uso
fazem que nos pareça desta vida
que não há nela mais que o que parece.





luís vaz de camões
sonetos