26 dezembro 2009
heiner müller / anjo sem sorte 2
Entre cidade e cidade
Depois do muro o abismo
Vento nos ombros a mão
Estrangeira na carne solitária
O anjo ainda o ouço
Mas já não tem rosto a não ser
O teu que não conheço
heiner müller
o anjo do desespero
trad. joão barrento
relógio d´ água
1997
23 dezembro 2009
raul brandão / tudo o que me podes dizer
Olhava este momento que ia desaparecer, com saudade – porque nunca mais se repetiria no mundo. Nunca mais outro segundo igual nem na luz, nem na vibração, nem na ternura…
O momento em que me sorriste, baloiçado entre o nada e o nada, nunca mais se voltaria a repetir, idêntico e completo, em todos os séculos a vir! Estava ali a morte… está aqui a vida. Agora pergunto a mim mesmo se te deixo morrer; e a pergunta obsidia-me e exige resposta imediata. Sei tudo, tudo o que me podes dizer – já eu o disse a mim próprio. Até hoje falava a alguma coisa que me ouvia, hoje só interrogo a mudez, só a mim próprio me interrogo.
raul brandão
húmus
(novas máximas)
frenesi
2000
20 dezembro 2009
kenneth koch / a magia dos números
A MAGIA DOS NÚMEROS - 1
Que estranho era ouvir a mobília no andar de cima!
Vinte e seis anos eu, e tu vinte e dois.
A MAGIA DOS NÚMEROS - 2
Perguntaste-me se queria correr; disse-te que não e fui andando.
Tinha eu dezanove e tu sete.
A MAGIA DOS NÚMEROS - 3
Sim, mas gostará X realmente de nós?
Ambos tínhamos vinte e sete anos.
A MAGIA DOS NÚMEROS - 4
Pareces-te com o Jerry Lewis ( 1950 )
A MAGIA DOS NÚMEROS - 5
O avô e a avó querem que vás jantar a casa deles.
Eles tinham sessenta e nove anos e eu dois e meio.
A MAGIA DOS NÚMEROS - 6
Um dia, eu vinte e nove anos, encontrei-te e nada aconteceu.
A MAGIA DOS NÚMEROS - 7
Não, é claro que não fui eu que fui à biblioteca!
Olhos castanhos, faces coradas, cabelo castanho. Eu tinha vinte e nove anos e tu
dezasseis.
A MAGIA DOS NÚMEROS - 8
Uma noite em Rockport, depois de nos amarmos, saí e beijei a estrada,
Tão transportado me sentia. Tinha vinte e três e tu dezanove.
A MAGIA DOS NÚMEROS - 9
Eu tinha vinte e nove e tu também. Foi um tempo muito apaixonado.
Tudo o que lia se convertia numa história sobre tu e eu, tudo o que fiz se converteu num poema.
kenneth koch
a magia dos números e outros poemas
trad. antónio franco alexandre
quetzal
1992
16 dezembro 2009
luís miguel nava / paisagens
São outras as paisagens quando alguém
as vê pelas janelas do seu próprio coração ou quando
com esse coração
a própria estrada está comprometida.
luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
rebentação
publicações dom quixote
2002
13 dezembro 2009
mário cesariny / barricada
Quando já não pudermos mais chorar e as palavras forem pequeninos suplícios e olhando para trás virmos apenas homens desmaiados, então alguém saltará para o passeio, com o rosto já belo, já espontâneo e livre, e uma canção nascida de nós ambos, do mais fundo de nós, a exaltar-nos!
Tu sabes se te quero e se fomos os dois abandonados, abandonados para uma bandeira, para um riso que sangre, para um salto no escuro, abandonados pelos lúgubres deuses, pelo filme que corre e desaparece, pela nota de vinte e um pedais, pela mobília de duas cadeiras e uma cama feita para morrer de nojo. Minha criança a quem já só falta cuspir e enviar corpo e bens para a barricada, meu igual, tu segues-me; tu sabes que o caminho é insuportavelmente puro e nosso, é um duende gritando no telhado as ervas misteriosas, é um rapaz crescendo ao longo dos teus braços, é um lugar para sempre solene, para sempre temido! E o Rossio é uma praça para fazer chorar. Salvé, ó arquitectos! Mas choremos tanto que será um dilúvio. Automóveis-dilúvio. Sobretudos-dilúvio. Soldadinhos-dilúvio. E quando essa água morna inundar tudo, então, ó arquitectos, trabalhai de novo, mas com igual requinte e igual vontade: vinde trazer-nos rosas e arame, homens e arame, rosas e arame.
Tu sabes se te quero e se fomos os dois abandonados, abandonados para uma bandeira, para um riso que sangre, para um salto no escuro, abandonados pelos lúgubres deuses, pelo filme que corre e desaparece, pela nota de vinte e um pedais, pela mobília de duas cadeiras e uma cama feita para morrer de nojo. Minha criança a quem já só falta cuspir e enviar corpo e bens para a barricada, meu igual, tu segues-me; tu sabes que o caminho é insuportavelmente puro e nosso, é um duende gritando no telhado as ervas misteriosas, é um rapaz crescendo ao longo dos teus braços, é um lugar para sempre solene, para sempre temido! E o Rossio é uma praça para fazer chorar. Salvé, ó arquitectos! Mas choremos tanto que será um dilúvio. Automóveis-dilúvio. Sobretudos-dilúvio. Soldadinhos-dilúvio. E quando essa água morna inundar tudo, então, ó arquitectos, trabalhai de novo, mas com igual requinte e igual vontade: vinde trazer-nos rosas e arame, homens e arame, rosas e arame.
mário cesariny
pena capital
assírio & alvim
1982
pena capital
assírio & alvim
1982
10 dezembro 2009
gil t. sousa / na curva do rio
11/
na curva do rio é que tudo nos espera, é que tudo morre. levam-nos na corrente invisível do tempo, levam-nos no silêncio para nunca mais chegarmos.
ninguém nos há-de esperar no fim da viagem. nunca mais nos havemos de libertar da solidão dos retratos.
gil t. sousa
falso lugar
2004
08 dezembro 2009
alejandra pizarnik / um sonho onde o silêncio é de ouro
O cão do inverno ferra o meu sorriso. Foi na ponte.
Eu estava nua e levava um chapéu com flores e
arrastava o meu cadáver também nu e com um
chapéu de folhas secas.
Tive muitos amores – disse – mas o mais formoso foi
o meu amor pelos espelhos.
alejandra pizarnik
antologia poética
trad. alberto augusto miranda
edit. o correio dos navios
2002
06 dezembro 2009
albano martins / não são apenas os relógios
Também se pode
regressar sem partir. Não são apenas
os relógios que se atrasam, às vezes
é o próprio tempo. E todos
os cuidados são
então necessários. Há sempre
um comboio que rola
a nosso lado sem luzes
e sem freios. E pode
faltar-nos o estribo ou já
não haver lugar
na carruagem da frente.
albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999
04 dezembro 2009
jorge gomes miranda / o que nos protege
Às vezes tenho medo de esquecer tudo:
a casa onde nasci, o recreio
da escola, essas vozes
que lembram um copo de água
no verão.
jorge gomes miranda
o que nos protege
pedra formosa
1995
02 dezembro 2009
josé miguel silva / já os pesadelos
What a perfect day to think about myself.
The The
Os sonhos dos homens assemelham-se entre si.
Já os pesadelos, cada um tem o seu.
Durante muitos anos eu fui hóspede do frio.
Enrolava cigarros para depois da chuva
e não tinha sonhos, somente pesadelos.
O mais recorrente era o do nevoeiro:
ninguém me via, era inútil mandar vir
uma caneca de cerveja, no café.
O meu dinheiro ninguém o aceitava,
ficava parado, fazia de mim um acumulador.
Como nunca saía de casa, não sabia falar
senão com mortos. Parecia-me magia
saber responder boa tarde como vai
à saudação dos vizinhos, pedir do vazio
ao homem do talho, perguntar as horas.
Tempos amargos esses, e hoje,
a mesma coisa, a mesma solidão.
Com a diferença de que sou mais forte agora,
vou à piscina duas vezes por semana,
escrevo poemas para não adormecer.
josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d´água
2003
29 novembro 2009
jorge melícias / iniciação ao remorso
Procurou de entre todos aquele que mais amava.
Fê-lo em silêncio, afagando os cães
que envelheciam aos seus pés,
enquanto as mulheres iam cerzindo nos gestos
um rosário de sal.
Onde está o meu discípulo dilecto
que não o vejo, inquiriu.
Um homem lembrou-lhe então que partira
há muitas luas atrás,
carregando aos ombros um navio em chamas.
Desde esse dia a memória
não mais deixou de rondar a casa,
e o velho recolheu-se no jardim onde as estátuas
subiam às árvores com os olhos tão próximos da loucura.
jorge melícias
iniciação ao remorso
a mar arte
1998
26 novembro 2009
konstandinos kavafis / páginas íntimas
Nunca vivi no campo. Como outros, nem sequer a planície visitei, a não ser por curtos períodos de tempo. Não obstante escrevi um poema sobre o campo e dei-lhe aquilo que os meus versos lhe devem. Esse poema pouco vale. Nada existe menos sincero do que ele; uma total mentira.
Agora ocorre-me, porém, o seguinte: tratar-se-á, realmente, de uma falta de sinceridade? Não estará a arte sempre a mentir? Melhor dizendo, não será ela tanto mais criativa quanto mais mente? Quando escrevi aqueles versos, não estariam a ser produto da arte? (Não serem perfeitos talvez se não deva a uma falta de sinceridade, pois muitas vezes falhamos tendo por matéria-prima a mais sincera das impressões.) Na altura em que fiz aqueles versos haveria em mim sinceridade artística? Não estaria eu a pensar de uma forma que era como se vivesse, de facto, no campo?
konstandinos kavafis
kavafis páginas íntimas
trad. joão carlos chainho
hiena editora
1994
Agora ocorre-me, porém, o seguinte: tratar-se-á, realmente, de uma falta de sinceridade? Não estará a arte sempre a mentir? Melhor dizendo, não será ela tanto mais criativa quanto mais mente? Quando escrevi aqueles versos, não estariam a ser produto da arte? (Não serem perfeitos talvez se não deva a uma falta de sinceridade, pois muitas vezes falhamos tendo por matéria-prima a mais sincera das impressões.) Na altura em que fiz aqueles versos haveria em mim sinceridade artística? Não estaria eu a pensar de uma forma que era como se vivesse, de facto, no campo?
konstandinos kavafis
kavafis páginas íntimas
trad. joão carlos chainho
hiena editora
1994
24 novembro 2009
jean genet / e a tua ferida, onde está?
E a tua ferida, onde está?
Pergunto onde fica,
em que lugar se oculta a ferida secreta
para onde foge todo o homem
à procura de refúgio
se lhe tocam no orgulho, se lho ferem?
Esta ferida
— que fica assim transformada em foro íntimo —
é que ele vai dilatar, vai preencher.
Sabe encontrá-la, todo o homem,
ao ponto de ele próprio ser a ferida,
uma espécie de secreto
e doloroso coração.
Se observarmos o homem ou a mulher
que passam com olhar rápido e voraz
— e também o cão, o pássaro, uma panela —
a velocidade do olhar é que nos mostra,
ela própria e com rigor máximo,
que ambos são a ferida
onde se escondem mal sentem o perigo.
O quê?
Já lá estão, já os conquistou
— deu-lhes a sua forma —
e para ela a solidão:
lá estão inteiros no retesar de ombros
em que passam a concentrar-se,
com toda a vida a confluir na ruga maldosa da boca,
e contra a qual nada podem nem querem,
pois dela é que sabem esta solidão absoluta,
incomunicável — este castelo da alma —
para serem a própria solidão.
È visível no funâmbulo que refiro,
no olhar triste
que deve reportar-se às imagens de uma infância miserável,
inesquecível,
em que ele teve consciência
de ser abandonado.
(...)
jean genet
o funâmbulo
trad. de aníbal fernandes
hiena editora
1984
Subscrever:
Mensagens (Atom)