23 dezembro 2008

marguerite yourcenar / estações alciónicas...







Estações alciónias,
solstício dos meus dias ...

Longe de embelezar, à distância,
a minha felicidade,
devo lutar para lhe não turvar a imagem;
a sua própria recordação
é hoje demasiado forte para mim.

Mais sincero que a maioria dos homens,
confesso sem rodeios
as causas secretas dessa felicidade:
aquela calma tão propícia aos trabalhos
e às disciplinas
parece-me um dos mais belos efeitos
do amor.


E espanto-me
de que estas alegrias tão precárias,
tão raramente perfeitas no decorrer de uma vida humana,
sob qualquer aspecto
além de que nós os tenhamos procurado
e recebido,
sejam consideradas com tanta desconfiança
por pretendidos sábios,
que eles receiem o seu hábito e excesso
em vez de temer a sua falta e perda,
que passem a tiranizar os sentidos
um tempo que seria mais bem empregado
a ordenar ou a embelezar a alma.

Naquela época
punha em fortalecer a minha felicidade, apreciá-la,
e também em julgá-la,
a atenção que sempre dispensara aos mais pequenos pormenores
dos meus actos;
e que é a própria voluptuosidade
senão um momento de atenção apaixonada do corpo?

Toda a felicidade é uma obra-prima:
o menor erro falseia-a,
a menor hesitação altera-a,
a menor deselegância desfeia-a,
a menor estupidez embrutece-a.


A minha
não é responsável em coisa alguma por aquelas
das minhas imprudências
que mais tarde a quebraram.

Julgo ainda
que teria sido possível a um homem mais hábil que eu
ser feliz até à morte.









marguerite yourcenar
memórias de adriano
trad. maria lamas
ulisseia
1974







15 dezembro 2008

raul brandão / papéis do gabiru

.
.



klavdij sluban








chove um dia, outro dia, sempre.
amanhece um dia nublado,
outro dia alvorece áspero e negro.
o vento abala a pedra
sobre que é construído o casebre.
o inverno tem a sua voz própria,
a sua cor, o seu vestido em farrapos
com que agasalha os montes
deixando-lhe os ossos de fora.
mas o inverno é sonho.
só agora o compreendo.
é sonho concentrado:
sob esta casca ressequida
está uma primavera intacta.
esta voz clamorosa é a voz dos mortos.
uma pausa,
a prostração da tempestade,
e depois redobra o clamor...
andam aqui as suas lágrimas...
na sufocação
reconheço esta voz que me chama.
e depois a tempestade,
novos gritos,
a escuridão profunda...

lá andaremos todos não tarda!
lá andaremos todos não tarda!

"que frio o outro mundo!
que impassibilidade a do outro mundo

saudade, saudade de tudo, até do fel,
saudade de te não sentir ao pé de mim.
tenho saudade da vida.
só poder aquecer-me ao lume,
só sentir o lume neste inverno sem limites,
neste frio de morte - sem outra primavera!


o que a vulgaridade sabe bem! o que a matéria sabe bem!

não vejo. ceguei.

disperso-me, e por mais esforços que faça,
sinto-me desagregar:
perco pouco e pouco a consciência de mim mesma.
sou ainda ternura e pouco mais.
já não tenho lágrimas.

quem me dera a desgraça!

e uma pena da vida! uma saudade da vida!
uma tristeza de não poder misturar-me à vida!
a vida - e um cantinho do lume,
a vida banal, a vida comezinha...
tenho saudades do muro a que costumava queixar-me.

vive devagarinho.
aquece-te à réstea do sol
como quem nunca mais tornará a aquecer-se;
perde todas as horas a trespassar-te da vida.

deixa que sobre ti caia o pó de oiro. vive-a.

tu és a nuvem, tu és a árvore.
enche a consciência de todas estas coisas,
porque não tardarás a perdê-la.

vive - não tornas a viver.
põe de acordo a tua alma com a pedra,
extrai encanto do céu e da miséria.
pudesse eu gritar! pudesse eu ter fome!

só agora dou pelo sabor das lágrimas.

sorri, esquece, dorme, sonha..."







raul brandão
húmus
(grafia adaptada)
frenesi
2000









10 dezembro 2008

alexandre moreira / o cão continua coxo








Nasce o dia de ideias políticas e de finanças
percebe a malta do leste ou a leste da malta se
contentam estatísticas e marinheiros próprios
do sábio descendente,

com isso se incute a perversão no
chefe da sua armadilha
no homem permitido ao morcego rotinando
os lagos
e os lembretes

afinal quem se recorda do dia em que a luz se fez luz ?
E que textos destrinçam os astronautas na visibilidade do espaço?

Não se lembram nem se afogam sem um limiar
e das finanças que a malta concebe
não se conjura o semblante de cada livro editado;

o cão continua coxo
o automóvel continua roxo
o ardil continua um mocho
e a estatística entende-se como própria dos encontros à beira-mar,
senta-se na areia
desenha para que o mar entenda o que se esvai

e a cada dia mais dias nascem e novas estatísticas
multiplicam outras tantas,
a malta do leste cada vez mais percebe
o leste da malta cada vez menos se inverte pela
tradição oral,

a língua condiciona o ardente ciúme
de quem fez lume por se lembrar
houve, afinal, um dia em que a luz se fez luz

mas era microscopicamente visível nos corpos distantes
e logo se condenaram as ampliações em marasmos
insignificantes de salões de chá

os astronautas dizem livros editados,
são flores cozinhadas pelo rubro medo do espaço
em que se plantam tanto finanças
como estatísticas, dicionários e solfejos arquejando
um abutre nos símbolos

o médium é agora o nome
onde a criança preenche o tédio civilizado
e nem do espaço é visível
a lembrança do lume ampliado

tudo é um livro editado
sem que isso fume a maior devoção
pois dentro de si amam os novíssimos amantes,
com claves de Fá inspiram com
abecedários expiram

e reluzir o oxigénio seria o novo circuito do receio mãos ao alto pés para dentro
- encoste-se à parede - é a nova fotografia
de quem procura esquecer o dicionário
o solfejo que nada semeia,

a simples reminiscência do nada que inventa,
inventa,
ofusca e anseia.






alexandre moreira




08 dezembro 2008

heiner müller / as imagens








As imagens significam tudo a princípio. São sólidas. Espaçosas.
Mas os sonhos coagulam, fazem-se forma e desencanto.
Já o céu não há imagem que o fixe. A nuvem vista do
Avião: um vapor que nos tira a vista, o grou, um pássaro, mais
nada
Até o comunismo, a imagem final, sempre refrescada
Porque lavada com sangue tantas vezes, o dia-a-dia
Paga-lhe um salário modesto, sem brilho, cego de suor,
Escombros os grandes poemas, como corpos muito tempo
amados e
Postos de lado agora, no caminho da espécie exigente e finita
Nas entrelinhas lamentos

sobre ossos feliz o carregador de pedra

Porque o belo significa o fim provável dos terrores.





heiner müller
o anjo do desespero
trad. joão barrento
relógio d´ água
1997





06 dezembro 2008

novalis / os hinos à noite



4

Sei agora quando será a manhã derradeira - quando a luz não afugentar mais a noite e o Amor – quando o sono for eterno e um sonho só inesgotável. Sinto em mim uma fadiga celeste – Longa e penosa foi a minha peregrinação ao Sepulcro Santo, opressiva a minha Cruz. A onda de Cristal, imperceptível aos vulgares sentidos, que jorra no seio obscuro do montículo de cujo sopé o terrestre caudal irrompe, quem dela alguma vez provou, quem esteve no cume das montanhas que delimitam o mundo e olhou para Além, para a nova terra, a morada da Noite – em verdade, esse não regressará jamais aos trabalhos deste mundo, à terra onde a Luz habita em eterna agitação.
Esse é o que levantará no alto as tendas da Paz, o que sente a ânsia e o amor e que olha para Além até que a hora entre todas bendita o faça descer ao imo da nascente – por cima, flutua o que é eterno, reflui ao sabor de tormentas; mas tudo aquilo que o contacto do amor santificou escorre dissolvido, por ocultas vias, para a região do Além e aí se mistura, como os aromas, com os seres amados para sempre adormecidos.
(…)




novalis
os hinos à noite
tradução de fiama hasse pais brandão
assírio & alvim
1998





04 dezembro 2008

pedro s. martins / aranha rainha







atirei uma caneta ao ar para que ela escrevesse na cortina do sonho:
" não preciso do teu pulso para desenhar letras". era aranha
rainha que tecia a tinta preta este poema na sua teia. não
estava à espera de apanhar insectos,
apenas alegorias à pessoa.
sempre que uma ficava presa, com as patas, não a matava, estimulava
o fim precoce dos sentimentos. dos bons dos maus e quando havia nuvens
no céu florido dos perversos.
manta de emoções, retalhos de vidas, sonhos eternos, rostos estacados
em corpos que não lhes pertenciam.

agora,
que acordo para nunca mais adormecer,
pressinto que me capturaste tudo que tinha e o deglutes na
paz do teu sono obreiro.
não queria ser eu a ter que te dizer isto, mas:
sou pele de cobra dos mil fôlegos: regenero-me sazonalmente. renasço
do que capturaste e renascerei as vezes que estender a tua
teia manto de razão errada em mim.





pedro s. martins





01 dezembro 2008

herberto helder / eles construiram...








Eles construíram
e os anos destruíram,
e eles reconstruíram as coisas gastas
e construíram
outras novas.

Que é isto?

Quer dizer
que a carne renasce,
e é essa a tarefa?

A noite vem sempre,
mas talvez trabalhem também
de noite.

Às vezes
ouvem-se as picaretas e os martelos,
à distância,
durante certas noites.

E depois é manhã,
e apercebemo-nos de que existe
uma coisa nova,
um corpo que se organiza para o dia,
e isso
foi um secreto trabalho nocturno.

Eles acreditam, então
— será verdade que ousam acreditar?

Pode-se avançar nas trevas.

Uma,
duas vezes,
foi-nos indicada uma luz fugitiva
e depois sabemos.

Talvez ainda mais nítida,
a topografia marcou-se na nossa cegueira,
e então caminhamos,
caminha ele com o seu cigarro
por acender,
a sua perseguição ao fogo.

Não é uma admirável virtude do fogo,
não será até um milagroso
talento das trevas que,
aqui e ali,
durante um segundo,
o fogo abra a sua pequena
rosa trémula,
e o homem possa respirar
na cega atmosfera
dos séculos?

É
— eis que ele o diz para si,
com uma força maior
do que ele próprio,
o inventado poder da sua
vertiginosa,
momentânea fé.

Caminha pelos anos pétreos,
com os pés a decifrarem
o empedrado
e os degraus do bairro.

Ouve os próprios passos,
porque sempre ouviu as
pancadas do coração
— por aí é que reconhece estar vivo,
embora isso seja violento demais
e demasiado precipitado
para a verdadeira harmonia que,
possivelmente,
seria o estar vivo.

Mas respira,
isso sim,
o sangue corre pelas veias e artérias,
corrompe-se e purifica-se
dentro da confusa massa
da sua dor de homem,
e anda,
ele anda,
sobe,

Contudo,
os passos que ouve,
como se fossem as pancadas fortes
do seu sangue,
parecem distanciar-se.

Pára.

E os passos continuam,
afastando-se.

Mais longe,
aparece a brasa do cigarro.

O outro foge.

Porque foge?

Que medo inspira assim
o desejo do conhecimento,
ou o desejo do amor?

É a caça?

Existem aqui o desígnio,
o jogo,
o ritual — e a alegria bárbara
e o primitivo pânico da caça?

Porque o amor é mortal
(o amor é mortal?).

Talvez se adivinhe que sim,
e obscuramente se saiba
que é mortal
o conhecimento.

Talvez seja isso
o que melhor se conheça do conhecimento
— a sua natureza mortal.

Os passos do outro
fogem pelo tempo fora, ouvem-se.
— embaraçados e rápidos —
perdendo-se nas escadas,
pelas ruas ondulantes,
sob os arcos.

Um momento ecoam no meio de uma praça,
o cigarro brilha,
forma-se uma súbita coroa
de silêncio,

Haveria palavras para dizer,
a antiquíssima súplica do perseguidor:
porque foges?

Mas não haveria resposta.

Ou seria:
tenho medo, ou então:
é o jogo.

Contudo,
não se sabe bem o que acontece,
por isso não haveria resposta.

Medo?,
porquê medo?,
dir-se-ia, jogo,
que espécie de jogo?

E as palavras
nunca mais acabariam.

Não mais existiria este silêncio
no qual, ofegantes,
sabemos com tanta dor
que ainda estamos vivos.

Por isso é que andamos,
agora com todas as artes da caça,
devagar,
depressa,
silenciosamente,
cercando a
presa.












herberto helder
apresentação do rosto
editora ulisseia
1968







23 novembro 2008

m. fernanda silva / ele paira








ele paira
entre dois céus de arame
ele paira
no leito das loucuras ambulantes
sobre os folhos dos louros rios
universais
entre duas mãos que se aglutinam
dois pensamentos enfeitados
de florescentes canduras

ele corta o volume
da estátua de pedra entalada
nos longínquos cenários
do seu espaço adormecido
enquanto paira

as nuvens roçam a pele dos pégasos
perdidos entre mercúrio
e o sol
rutilante sedutor dos temerários
devorador das ambições filiais
deus dos esfriados meninos
sem mamã

ele paira entre ele e ele
no exíguo leito de espelhos
estilhaçados








m.f.s.





20 novembro 2008

fernando pinto do amaral / segredo





Esta noite morri muitas vezes, à espera
de um sonho que viesse de repente
e às escuras dançasse com a minha alma
enquanto fosses tu a conduzir
o seu ritmo assombrado nas trevas do corpo,
toda a espiral das horas que se erguessem
no poço dos sentidos. Quem és tu,
promessa imaginária que me ensina
a decifrar as intenções do vento,
a música da chuva nas janelas
sob o frio de fevereiro? O amor
ofereceu-me o teu rosto absoluto,
projectou os teus olhos no meu céu
e segreda-me agora uma palavra:
o teu nome — essa última fala da última
estrela quase a morrer
pouco a pouco embebida no meu próprio sangue
e o meu sangue à procura do teu coração.







fernando pinto do amaral
às cegas
relógio d´ água
1997





16 novembro 2008

antonio gamoneda / ainda







Há uma erva cujo nome não se sabe; assim foi a
minha vida.


Regresso a casa atravessando o Inverno: esquecimento
e luz sobre as roupas húmidas. Os espelhos estão
vazios e nos pratos cega a solidão.


Ah a pureza das facas abandonadas.









antonio gamoneda
livro do frio
(3-ainda)

trad. de josé bento
assírio & alvim
1999







13 novembro 2008

andre breton e paul éluard / tentativa de simulação da debilidade mental





Entre todos os homens, com vinte e quatro anos, reconheci que para nos elevarmos à categoria de homem considerado não era preciso ter mais do que eu a consciência do seu valor. Sustentei há muito tempo que a virtude não é estimada, mas que meu pai tinha razão quando queria que eu me elevasse muito alto acima dos seus confrades. Em absoluto não compreendo que se conceda a Legião de honra a personalidades estrangeiras de passagem em França. Acho que esta condecoração devia estar reservada para os oficiais que fazem actos de bravura e para os engenheiros de minas saindo da Politécnica. De facto é preciso que o grande mestre da Ordem de Cavalaria não tenha bom senso para reconhecer mérito onde ele não existe. De todas as distinções, oficial é a mais lisonjeira. Mas não se pode passar sem diploma. Meu pai deu aos seus cinco filhos rapazes e raparigas a melhor instrução e urna boa educação. Não é para aceitar um emprego sem retribuição muna administração que não paga. Aqui está a prova: quando se é capaz, como meu irmão mais velho, que várias vezes concorreu nos jornais para obter o fim desejado contra bacharéis em Letras e Ciências, pode dizer-se que se tem a quem fazer frente. Mas em cada dia seu trabalho, diz o provérbio. Trago na algibeira de dentro do meu casaco de Verão os planos de um submarino que quero oferecer à Defesa Nacional. A cabina do comandante está desenhada a vermelho e os canhões lança-torpedos são do último modelo hidráulico, com comando artesiano. Os ases da estrada não apresentam mais energia do que eu. Não me sinto constrangido por garantir que esta invenção deve triunfar. Todos os homens são partidários da Liberdade, da Igualdade, da Fraternidade e, eu acrescento, da Solidariedade mútua. Mas isto não é uma razão para não nos defendermos daqueles que nos atacam pelo mar. Escrevi ao Presidente da República uma carta secreta em papel ministro pedindo para o ver. A esquadra mediterrânica cruza neste momento ao largo de Constantina, mas o almirante concede poucas licenças. Um soldado por mais que faça tem de se pôr de joelhos por humildade diante do seu superior, ordens são ordens. A disciplina beneficia quando o chefe é justo mas firme. Não se dão gaIões a torto e a direito e o Marechal Foch merecia ser realmente o Marechal Foch. O livre-pensamento tem estado errado em não se pôr ao serviço da França.

Apoio também que se mude o nome aos fuzileiros navais, fiz uma diligência nesse sentido junto da Liga dos Direitos do Homem. Este nome é indigno do seu colarinho anil. Cabe-lhes a eles, aliás, fazerem-se respeitar. A Grécia da Lacedemónia era orgulhosa de urna maneira diferente. Enfim o homem crê em Deus e viram-se grandes cabeças pedirem a extrema-unção, é já um ponto importante.





andre breton e paul éluard
as possessões
a imaculada concepção
tradução franco de sousa
estúdios cor
1972




05 novembro 2008

sylvia plath / colosso








Nunca conseguirei juntar-te todo,
compor-te, colar-te e unir-te devidamente.
Zurros de machos, grunhidos de porco e cacarejos
[obscenos
saem dos teus lábios.
É bem pior que num curral.

Talvez te consideres um oráculo,
porta-voz dos mortos, ou de um outro deus.
Há trinta anos que trabalho
para dragar o lodo da tua garganta.
Pouco mais sei!

Trepando pequenas escadas com frascos de cola e baldes
[de lisol
rastejo como uma formiga de luto
sobre as terras cobertas de erva da tua fonte
para reparar as imensas placas do teu crânio e limpar
os túmulos brancos, vazios dos teus olhos.

Um céu azul saído da Oresteia
arqueia-se sobre nós. Ó pai, tu só
és vigoroso e histórico como o Forum Romano.
Abro a minha merenda numa colina de ciprestes negros.
Os teus ossos estriados e os teus cabelos como o acanto
[estão espalhados

na sua velha anarquia até à linha do horizonte.
Seria preciso mais que o golpe de um relâmpago
para criar tal ruína.
De noite escondo-me na cornucópia
do teu ouvido esquerdo, abrigada do vento,

contando as estrelas, rubras ou cor-de-ameixa.
O sol ergue-se sob o pilar da tua língua,
as minhas horas casam-se com a sombra.
Já não escuto o raspar de uma quilha
nas brancas pedras do desembocadouro.



sylvia plath
pela água
tradução de maria de lurdes guimarães
assírio & alvim
1990





03 novembro 2008

pier paolo pasolini / as cinzas de gramsci







IV



O escândalo de me contradizer, de estar
contigo e contra ti; contigo no coração,
à luz do dia, contra ti na noite das entranhas;

traidor da condição paterrna
- em pensamento, numa sombra de acção –
a ela me liguei no ardor

dos instintos, da paixão estética;
fascinado por uma vida proletária
muito anterior a ti, a minha religião

é a sua alegria, não a sua luta
de milénios: a sua natureza, não a sua
consciência; só a força originária

do homem, que na acção se perdeu,
lhe dá a embriaguez da nostalgia
e um halo poético e mais nada

sei dizer, a não ser o que seria
justo, mas não sincero, amor abstracto,
e não dolorida simpatia…

Pobre como os pobres, agarro-me
como eles a esperanças humilhantes,
como eles, para viver me bato

dia a dia. Mas na minha desoladora
condição de deserdado,
possuo a mais exaltante

das poses burguesas, o bem mais absoluto.
Todavia, se possuo a história,
também a história me possui e me ilumina:


mas de que serve a luz?










pier paolo pasolini

poemas
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005