01 dezembro 2008

herberto helder / eles construiram...








Eles construíram
e os anos destruíram,
e eles reconstruíram as coisas gastas
e construíram
outras novas.

Que é isto?

Quer dizer
que a carne renasce,
e é essa a tarefa?

A noite vem sempre,
mas talvez trabalhem também
de noite.

Às vezes
ouvem-se as picaretas e os martelos,
à distância,
durante certas noites.

E depois é manhã,
e apercebemo-nos de que existe
uma coisa nova,
um corpo que se organiza para o dia,
e isso
foi um secreto trabalho nocturno.

Eles acreditam, então
— será verdade que ousam acreditar?

Pode-se avançar nas trevas.

Uma,
duas vezes,
foi-nos indicada uma luz fugitiva
e depois sabemos.

Talvez ainda mais nítida,
a topografia marcou-se na nossa cegueira,
e então caminhamos,
caminha ele com o seu cigarro
por acender,
a sua perseguição ao fogo.

Não é uma admirável virtude do fogo,
não será até um milagroso
talento das trevas que,
aqui e ali,
durante um segundo,
o fogo abra a sua pequena
rosa trémula,
e o homem possa respirar
na cega atmosfera
dos séculos?

É
— eis que ele o diz para si,
com uma força maior
do que ele próprio,
o inventado poder da sua
vertiginosa,
momentânea fé.

Caminha pelos anos pétreos,
com os pés a decifrarem
o empedrado
e os degraus do bairro.

Ouve os próprios passos,
porque sempre ouviu as
pancadas do coração
— por aí é que reconhece estar vivo,
embora isso seja violento demais
e demasiado precipitado
para a verdadeira harmonia que,
possivelmente,
seria o estar vivo.

Mas respira,
isso sim,
o sangue corre pelas veias e artérias,
corrompe-se e purifica-se
dentro da confusa massa
da sua dor de homem,
e anda,
ele anda,
sobe,

Contudo,
os passos que ouve,
como se fossem as pancadas fortes
do seu sangue,
parecem distanciar-se.

Pára.

E os passos continuam,
afastando-se.

Mais longe,
aparece a brasa do cigarro.

O outro foge.

Porque foge?

Que medo inspira assim
o desejo do conhecimento,
ou o desejo do amor?

É a caça?

Existem aqui o desígnio,
o jogo,
o ritual — e a alegria bárbara
e o primitivo pânico da caça?

Porque o amor é mortal
(o amor é mortal?).

Talvez se adivinhe que sim,
e obscuramente se saiba
que é mortal
o conhecimento.

Talvez seja isso
o que melhor se conheça do conhecimento
— a sua natureza mortal.

Os passos do outro
fogem pelo tempo fora, ouvem-se.
— embaraçados e rápidos —
perdendo-se nas escadas,
pelas ruas ondulantes,
sob os arcos.

Um momento ecoam no meio de uma praça,
o cigarro brilha,
forma-se uma súbita coroa
de silêncio,

Haveria palavras para dizer,
a antiquíssima súplica do perseguidor:
porque foges?

Mas não haveria resposta.

Ou seria:
tenho medo, ou então:
é o jogo.

Contudo,
não se sabe bem o que acontece,
por isso não haveria resposta.

Medo?,
porquê medo?,
dir-se-ia, jogo,
que espécie de jogo?

E as palavras
nunca mais acabariam.

Não mais existiria este silêncio
no qual, ofegantes,
sabemos com tanta dor
que ainda estamos vivos.

Por isso é que andamos,
agora com todas as artes da caça,
devagar,
depressa,
silenciosamente,
cercando a
presa.












herberto helder
apresentação do rosto
editora ulisseia
1968







1 comentário:

Anónimo disse...

Só um me ocorre.

Bravo!!!

Isabel