03 julho 2008

edmund white

a vida privada de um rapaz




(...)


Não, do que eu gostava era do budismo dos primeiros tempos
do Hinayana, daquelas austeras instruções que conduziam a
uma extinção do desejo (em sânscrito, nirvana significa «extinguir»,
como «extinguimos» a vela de uma chama). Sentia uma grande
afinidade com esta religião que odeia a vida de uma forma muito curiosa,
que nos ensina que não temos alma e que o eu não passa
de um depósito de bagagens onde foram guardados estes e
aqueles embrulhos ou pacotes (com as etiquetas de emoções,
sensações, memórias e assim por diante), os quais não tardarão
a ser recolhidos por diferentes proprietários, um esvaziamento
que deixará o depósito de bagagens ditosamente vazio.
Este esvaziamento, este aniquilamento, é o que o cristão mais teme,
mas o que o budista mais veementemente deseja - ou desejaria,
se o desejo não fosse precisamente aquilo que tem de ser extirpado.
O desejo - a ânsia de sexo, dinheiro, fama, segurança - acorrenta-nos
ao mundo e condena-nos à reencarnação , «o ciclo da reencarnação»,
que eu imaginava como uma roda a que o pecador era bem atado
e estirado, a roda que o esmagava à medida que rodava, mas que,
crueldade das crueldades, não o matava nunca.
Sentia a necessidade de me libertar do desejo. Não devia querer nada.
Não devia sentir afectos. Acima de tudo, nada de atracções.
Devia renunciar a toda a esperança, planos, felizes expectativas.
Devia estudar o esquecimento. Devia dar cama e mesa ao silêncio
e pagar propinas ao vazio. Mesmo a mais ténue luzinha de desejo
devia ser apagada. Todos os fios deviam ser arrancados
até que todos os mecanismos deixassem de funcionar
e todos os ponteiros apontassem para zero.




edmund white
a vida privada de um rapaz
trad. josé vieira de lima
publicações dom quixote
1996







29 junho 2008

manhã





Abracei a aurora de verão.


Ainda nada movia a entrada dos palácios. A água estava morta. As sombras não deixavam a estrada do bosque. Caminhei, acordando os hálitos vivos e tépidos, e as pedrarias olharam, e as asas ergueram-se sem ruído.

A primeira aventura foi, no caminho já pleno de frescos e lívidos clarões, uma flor que me disse o seu nome.

Ri-me para a wasserfall loura que se encaracolou através dos abetos: no cimo prateado estava a deusa.

Então, um a um, tirei-lhe os véus. Na alameda, agitando os braços. Através da planície, onde a denunciei ao galo. Ela fugia para a grande cidade, entre as torres e as cúpulas; correndo como um mendigo sobre os cais de mármore, persegui-a.

No alto da estrada, junto a um bosque de loureiros, cobri-a com os véus desordenadamente recuperados, e senti um pouco seu imenso corpo. A manhã e o menino tombaram na orla do bosque.


Ao acordar era meio-dia.









jean-arthur rimbaud
iluminações / uma cerveja no inferno
trad. de mário cesariny
estúdios cor
1972




27 junho 2008

formoso amigo meu, podes cantar à lua






formoso amigo meu, podes cantar à lua
e amar outros mais lestos do que eu,
roer um osso, admirar as estrelas,
seres sábio e humano, além de belo.
já vi que escreves um diário, com
as patas firmes, o pêlo luzidio,
e versos, onde porém há sempre
uma sílaba a mais, presa por fios.
pouco te importa se eu existo ou não,
e ignoras, das aranhas, o tormento
quando a teia se rasga e é urgente
tomar medidas, e tecer, à espreita
de alguma inócua presa imprevidente.
voas tão solto, lá no firmamento,
que te tomam por pássaro ou cometa;
e meditas em vastos pensamentos... só não sabes
que ao rasgares o meu leito aqui deixaste
uma gota de sangue, a que estás preso.





antónio franco alexandre
aracne
assírio & alvim
2004







26 junho 2008

mãe






Mãe, eu quero ir-me embora — a vida não é nada
daquilo que disseste quando os meus seios começaram
a crescer. O amor foi tão parco, a solidão tão grande,
murcharam tão depressa as rosas que me deram —
se é que me deram flores, já não tenho a certeza, mas tu
deves lembrar-te porque disseste que isso ia acontecer.

Mãe, eu quero ir-me embora — os meus sonhos estão
cheios de pedras e de terra; e, quando fecho os olhos,
só vejo uns olhos parados no meu rosto e nada mais
que a escuridão por cima. Ainda por cima, matei todos
os sonhos que tiveste para mim — tenho a casa vazia,
deitei-me com mais homens do que aqueles que amei
e o que amei de verdade nunca acordou comigo.

Mãe, eu quero ir-me embora — nenhum sorriso abre
caminho no meu rosto e os beijos azedam na minha boca.
Tu sabes que não gosto de deixar-te sozinha, mas desta vez
não chames pelo meu nome, não me peças que fique —
as lágrimas impedem-me de caminhar e eu tenho de ir-me
embora, tu sabes, a tinta com que escrevo é o sangue
de uma ferida que se foi encostando ao meu peito
como uma cama se afeiçoa a um corpo que vai vendo crescer.

Mãe, eu vou-me embora — esperei a vida inteira por quem
nunca me amou e perdi tudo, até o medo de morrer. A esta
hora as ruas estão desertas e as janelas convidam à viagem.
Para ficar, bastava-me uma voz que me chamasse, mas
essa voz, tu sabes, não é a tua — a última canção sobre
o meu corpo já foi há muito tempo e desde então os dias
foram sempre tão compridos, e o amor tão parco, e a solidão
tão grande, e as rosas que disseste que um dia chegariam
virão já amanhã, mas desta vez, tu sabes, não as verei murchar.









maria do rosário pedreira
o canto do vento nos ciprestes
gótica
2001






25 junho 2008

abertura







Eu abria o rádio
eu abria o aparelho
era uma flor branca que eu abria
de sopro
eu soprava e eu abria a flor
A flor tocava música com as várias mãos
das pétalas
A flor tocava uma simbolização dum tempo
caído podre de espera de cor branca
O tempo espera-se em pintar-se
de branco
para cegar uma cor
mas a minha flor abria-se de
pétalas
e as várias mãos escreviam um
piano por cima de teclas grãos vários
seguidos uns aos outros.
Era assim uma harmonia
entre flor
tempo a querer-se de cor branca em cegar
era assim umas teclas cantarem filhos de grãos
por dentro dos grãos mesmos
unidos que eram em dimensão de lado
era assim um cantar-me o tempo todo
não era assim um cantar-me o tempo todo
era assim um pairar-me
o tempo todo em Nijinsky
o tempo em um fazer-me ballet pelo quarto inteiro
quando eu tinha aberta a cabeça que imagino
da música
Abria a pétala favorita do harém
onde no centro um sultão da flor
no centro que era o amarelo da flor
abria a pétala favorita da flor
e então
e era então que me soava dentro da manhã
do quarto
uma música desfibrada de tempo serôdio
como se tudo me fosse em longe
como se a música levasse longe
o céu.




antónio gancho
o ar da manhã
assírio & Alvim
1995





18 junho 2008

dir-te-ei quem sou





Dir-te-ei quem sou,
houve um tempo,
tive um sonho,
lembro-me do teu rosto,
a tua voz já existia.

E ele atravessa a rua,
passando pelo tempo,
de pedra em pedra,
com um cigarro na mão
para pedir lume
ao cigarro alheio,
que brilha no outro lado,
ao cimo dos três degraus.

Vai ser assim:
dá-me lume, por favor?,
e o cigarro encostar-se-á ao seu,
o lume passará de um para outro,
de uma pessoa para outra pessoa,
e então,
no meio da eternidade deserta,
será sim o dia de hoje.

Mas a noite é imensa,
quer dizer:
a noite do lugar e do tempo,
a noite da nossa solidão
— é imensa,
e apenas um pequeno órgão vivo
palpita algures,
vibra rapidamente,
e amortece-se,
e desaparece.

Então,
uma vez mais
a noite se levanta de nós,
e o que estremece é a carne,
a nossa,
cega e desamparada
— mas fremente
na sua cegueira e desamparo.

Sabes que estás só?
— pergunta a carne à carne —,
sabes que a noite se ergueu de ti,
como se fosses o seu próprio
e único talento,
e que esse talento te cerca
como uma atmosfera,
o morto clima que transportas em ti,
de um lado para outro,
ao longo das pedras,
ao longo de todos os lugares
do homem?

Ela sabe,
ou pelo menos
sabe que sabe.

E
é demasiado.

Por isso,
olha
e espera.

E vê de novo
a brasa que estremece
na escuridão
como uma planta
que crescesse
e florescesse na terra negra,
ou um animal
cujo calor abrisse uma brecha
no tempo frio.

A carne embriaga-se
com imprecisas metáforas de salvação
— que salvação?!
com um movimento subterrâneo de analogias,
e ele diz:

vou pedir-lhe lume.

Vai através do bairro múltiplo,
o tempo que o escuro abafou,
e então
é como se fosse fora do tempo,
ou dentro de todo o tempo,
à procura do lume
para o seu cigarro.







herberto helder
apresentação do rosto
editora ulisseia
1968




12 junho 2008

tatuagem






Olhas para ele divertida e convidas-te a um copo.
Se a sua história fosse boa,
se tratasse de uns homenzecos sujos,
de drogas ou de hotéis vermelhos como um corno,
de uma morte não explicada
ou de uma vida inexplicável,
a coisa, querido, mudaria.
Mas não. O pacóvio palra e palra de Acapulco,
canta Aznavour com voz de franciscano.
Eu sou, atira-te, gémeos, e tu,
espera querida, espera, tu és touro.

Assim é como o gajo
consegue uma queca lá na tribo dele.

Com isto do amor, digo-lhe por coqueteria,
vai bem o bâton gretado,
os parques remotos, o cigarro sozinha,
as luas amolgadas,
os carros espatifados.

Levanto-me para comprar Gauloises.
Deixo-o com os olhos
afundados no copo
ainda mais turvo que os meus olhos.
Já na rua,
penduro-me de um catalão
E trauteio esta canção de Piquer:
E ele veio num baaarco…







violeta c. rangel
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000





07 junho 2008

outros mundos




Descobrir outro mundo não é apenas um facto imaginário. Pode acontecer aos homens. Aos animais também. Por vezes, as fronteiras resvalam ou interpenetram-se: basta estar presente nesse momento. Vi o facto acontecer a um corvo. Esse corvo é meu vizinho: nunca lhe fiz mal algum, mas ele tem o cuidado de se conservar no cimo das árvores, de voar alto e de evitar a humanidade. O seu mundo principia onde a minha vista acaba. Ora, uma manhã, os nossos campos estavam mergulhados num nevoeiro extraordinariamente espesso, e eu dirigia-me as apalpadelas para a estação. Bruscamente, à altura dos meus olhos, surgiram duas asas negras, imensas, precedidas por um bico gigantesco, e tudo isto passou como um raio, soltando um grito de terror tal que eu faço votos para que nunca mais oiça coisa semelhante. Esse grito perseguiu-me durante toda a tarde. Cheguei a consultar o espelho, perguntando a mim próprio o que teria eu de tão revoltante…
Acabei por perceber. A fronteira entre os nossos dois mundos resvalara, devido ao nevoeiro. Aquele corvo, que supunha voar à altitude habitual, vira de súbito um espectáculo espantoso, contrário, para ele, às leis da natureza. Vira um homem caminhar no espaço, mesmo no centro do mundo dos corvos. Deparara com a manifestação de estranheza mais completa que um corvo pode conceber: um homem voador…
Agora, quando me vê, lá do alto, solta pequenos gritos, e reconheço nesses gritos a incerteza de um espírito cujo universo foi abalado. Já não é, nunca mais será como os outros corvos…





loren eiseley
citado por louis pauwels
em o despertar dos mágicos
trad. gina freitas
livraria bertrand
1973



05 junho 2008

monet







Estou a ouvir música.
Debussy usa as espumas do mar a morrer na areia,
refluindo e fluindo.

Bach é matemático.
Mozart é o divino impessoal.
Chopin conta a sua vida mais íntima.
Schoenberg, através de seu eu, atinge o clássico eu de todo o mundo.
Beethoven é a emulsão humana em tempestade
procurando o divino
e só o alcançando na morte.

Quanto a mim,
que não peço música,
só chego ao limiar da palavra nova.
Sem coragem de a expor.

O meu vocabulário é triste
e às vezes wagneriano-polifônico-paranóico.

Escrevo muito simples e muito nu.
Por isso fere.
Sou uma paisagem cinzenta e azul.
Elevo-me na fonte seca e na luz fria.









clarice lispector
um sopro de vida: pulsações
ed. francisco alves
rio de janeiro
1991


02 junho 2008

terrível





Terrível
um cavalo à noite
de pé atrelado sozinho
na rua silenciosa
e relinchando

como se alguém nu montado nele
o tivesse cingido com pernas ardentes
e cantado
uma sílaba
doce estridente esfomeada única









lawrence ferlinghetti
pictures of the gone world
trad. josé palla e carmo
cadernos de poesia
dom Quixote
1972


29 maio 2008

a trégua






Havia uma desarrumação no cabelo, se tinha
Calções eles caíam; puxava-os para cima, não
Me penteava.
Se alguma trégua fiz com a infância foi esta:
Ainda não uso pente, os calções são calças,
mas continuam a cair. Por delicadeza,
Puxo-as para cima.






gonçalo m. tavares
1 poesia
relógio d´água
2004




28 maio 2008

a morte







A Morte

— a Morte de que eu falo —
não é a que segue logo a tua queda,
mas precede a tua aparição no fio.

Antes de subir é que morres.

O que dança já está morto
— decidido a todas as belezas, capaz de todas elas.

Quando apareces, vai uma palidez

— não, não estou a falar de medo mas do contrário,
de uma invencível audácia —
vai uma palidez cobrir-te de cima a baixo.

Apesar da pintura e das lantejoulas
serás pálido e de alma lívida.

E nessa altura

é que a tua precisão será perfeita.
Sem mais nada que te prenda ao chão,
podes dançar sem cair.

Mas trata de morrer antes de apareceres,

e seja um morto,
já,
a dançar no fio.

(...)








jean genet
o funâmbulo
trad. de aníbal fernandes
hiena editora
1984



26 maio 2008

pela tua natureza discorro




Como renasces ao amar. Que corpo te possui? Dimanam (crescem) de ti forças que ignoro ao transtornar-te, ao abateres nesta ondulação envolvente que é o acto de amarmos, uma guilhotina ascendente partindo do corpo para o espaço, contrariando a gravidade e por isso mesmo fixar-se como um olho severo e ciclópico, um sexo assexuado, pénis-vagina, hermafrodita florestal, animal vegetal, a longa experiência dos equinodermes, a solidão dos ciclóstomos, os primitivos placentários de corpo minúsculo.

Mas que imensidão quando emerge nos teus olhos esta recriação do procriar, a grandeza do prazer, a ferocidade da morte-viva, a imitação da vida, o desflorar da atmosfera dos pulmões que nos respiram, o sorvo cataléptico do teu orgasmo plasmado no meu, trevas e luzes que escorrem em denso liquido, um sangue contaminado e bebível no seu jorro ovariano, uma natureza que se contraria pura para te ter, agarrar com dedos enclavinhados os tecidos mais secretos do teu ser, fundir a matéria espermática do que sou e, construção escultórica de mãos, explodir no magma, crestar para enobrecer enobrecido, dissolver os contornos, transcender seus átomos.

Madrid, Janeiro de 1972







carlos eurico da costa
colóquio letras nr. 12
março 1973
fundação calouste gulbenkian
1973