20 maio 2008

andre breton e paul éluard / a vida





Da flor japonesa à coxa da rã galvanizada, vai ser preciso dormir muito para nos apercebermos da transformação. Da porta que é um corpo-a-corpo, à janela que é uma peleja, o soalho é um papagaio, o tecto um corvo que teve medo.

Há ainda a recordar do dia seguinte, a recordação de atrozes aventuras num nevoeiro de enforcado. Sabe que foi denunciado, que um parapeito está dali em diante à sua volta para o impedir de se lançar no relógio inútil que se pôs a indicar as horas. A aurora da tarde filtrada lembra-lhe a carne pura que, na proximidade dos homens, sempre desaparece num ruído de canaviais. Porque ele tocará a carne muito tempo sem a sentir e, quando a sentir, será à maneira daqueles animais encantadores que apenas sonham com a liberdade.
Toda uma rede de caretas e de contorções se opõe a que a jangada da sua idade regresse à secreta fonte do seu coração. A tarde em vão fecha a porta, uma estrada de passos, de sons, de esperança e de fadiga sempre lhe mostra aquelas grandes construções negras em que tudo para ele se compõe.

O vago substitui pouco a pouco o determinado. Em vez do sangue estende-se o mata-borrão, o mata-borrao que se embebe nas suas cartas sempre maniacamente datadas de Creusot. Olhos puros de nuvens pousam sobre ele como a ave na sua sombra. Lâmpadas varrem com a sua saia de pedra a escadaria de prata que vai dar ao grande ar dos países sem janelas. Que procura então este homem que faz uma mancha na terra? Este pobre quebra-luz lá está sobre a lâmpada das estrelas cadentes. Debate-se com a sombra matizada que choca nas suas pregas ovos de galinha-d’água, donde nascerão em hora adiantada o dever, a oportunidade a pequena felicidade e o fracasso. Os poderes do desespero com as suas rosas de sabão, os seus afagos desencontrados, a sua dignidade mal vestida, as suas respostas fugidias a perguntas de granito apoderam-se dele. Levam-no à escola das escórias, depois de o terem trajado com um avental de fogo. Persuadem-no de que o cabo de vassoura das bruxas cai a pique numa eternidade grotesca de retaguardas brilhantemente esclarecidas. Bocejam-lhe na cara sobretudo, e o que tem de mais trágico, bocejam sobre a mulher sem sequer terem o cuidado de pôr a mão sobre a boca, bocejam dos frutos da mulher com aroma de amêndoas amargas, bocejam da beleza, bocejam da duração, bocejam da recusa desta beleza e desta duração.

Uma manhã, ele lá está, a ver respirar uma cabeleira de anémonas. A rua saúda com todas as suas rodas, Entre todos os astros este... entre todos os astros… este que se submete a este astro inesquecível... Está tão perfeitamente só que se exceptua do total. Fita o dorso dos livros que se arqueiam. Escuta a música que brilha nos sapatos. Por vezes, ao meio-dia, sorri doze vezes. Sorri também à noite, quando tem medo. Põe em todas as suas sensações as algemas do sorriso.








andre breton e paul éluarda imaculada concepção
tradução franco de sousa
estúdios cor
1972





avenida maio






gil t. sousa
avenida maio 2008


18 maio 2008

claro







claro que o moço na duna teve de notar
que eu o olhava intensamente.
claro que depois passou por perto de mim
com muitos movimentos dispensáveis
mesmo fazendo como quem diz que não me via.
claro que começou um ballet de primavera
com um miúdo amigo e uma bola,
claro que se fartou, em jeito demasiado à menina,
de passar a mão pelos longuíssimos cabelos
e olhou por cima do ombro ao fazê-lo,
dentes brilhando num rosto escuro.
claro que mais tarde se deitou
mastigando indolente um pé de erva
naquele tocante calção de banho desbotado
sozinho numa quente concavidade da duna.
claro que me afastei sem barulho e despercebido
e claro que passo o dia a arrepender-me disso.







hans warren
uma migalha na saia do universo
antologia da poesia neerlandesa do século vinte
selecção de gerrit komrij
tradução de fernando venâncio
assírio & Alvim
1996


16 maio 2008

morte






Que triângulo ou círculo poderá cercar-te
Para que te detenhas demorada e minha
Para que não desças toda pela escada






sophia de mello b. andresen
dual
(a casa)
caminho
2004





13 maio 2008

que sabes tu da mentira







(…)

Que sabes tu da mentira, que sabes tu das substâncias suportáveis?


Como entrareis na minha paciência? A minha língua é velha em
duas cascas. Amo e não desejo.



Como entrareis na minha paciência? Inclusive tu, se não envelhe-
ceres, como me entregarás a tua juventude?

(…)







antonio gamoneda
descrição da mentira
trad. vasco gato
quasi
2007



08 maio 2008

versos limpos







amei com palavras grandes
e secretas

amei com versos limpos









gil t sousa
falso lugar
2004





07 maio 2008

samuel beckett / what is the word






loucura -
loucura porque -
porque -
que palavra será -
loucura disto -
tudo isto -
loucura de tudo isto -
dado -
loucura dado tudo isto -
visto -
loucura visto tudo isto -
isto -
que palavra será -
isto isto -
isto isto aqui -
tudo isto isto aqui -
loucura dado tudo isto -
visto -
loucura visto tudo isto isto aqui -
porque -
que palavra será -
ver -
vislumbrar -
parecer vislumbrar -
precisar de parecer vislumbrar -
loucura porque precisar de parecer vislumbrar -
que -
que palavra será -
e onde -
loucura porque precisar de parecer vislumbrar que onde -
onde -
que palavra será -
ali -
ali mesmo -
além ali mesmo -
ao longe -
ao longe além ali mesmo -
a custo -
a custo ao longe além ali mesmo que -
que -
que palavra será -
visto tudo isto -
tudo isto isto -
tudo isto isto aqui -
loucura porque para ver o que -
vislumbrar -
parecer vislumbrar -
precisar de parecer vislumbrar -
a custo ao longe além ali mesmo que -
loucura porque precisar de parecer vislumbrar a custo ao longe além ali mesmo que -
que -
que palavra será -

que palavra será









samuel beckett
últimos trabalhos
tradução de miguel esteves cardoso
assírio & alvim
1996.




05 maio 2008

ficarão para sempre abertas as minhas salas negras







Ficarão para sempre abertas as minhas
salas negras.

Amarrado à noite,
eu canto com um lírio negro sobre a boca.

Com a lepra na boca,
com a lepra nas mãos.

Este mamífero tem sal à volta,
este mineral transpira, a primavera precipita-se.

Com a lepra no coração.

Mais de repente,
só chegar à janela e ver uma paisagem tremendo
de medo.

E uma vida mais lenta
só com uma estrela às costas,
uma tonelada de luz inquieta,
uma estrela respirando como um carneiro
vivo.

Igual a esta espécie de festa dolorosa,
apenas um ramo de cabelos violentos
e o seu odor a pimenta,
no lado escuro
como se canta que as salas vão levantar
o seu voo.

Ficarão para sempre abertas estas mãos exageradas
em dez dedos com sono,
como uma rosa acima do pénis.

Ao cimo do caule de sangue,
essa flor confusa.

Um equilíbrio igual,
só a estrela ao cimo do êxtase.

Só alguma coisa parada no cimo de uma visão
tremente.

A primavera, que eu saiba,
tem o sal como cor imóvel,

Por um lado entra a noite,
assim de súbito negra.

De uma ponta à outra enche-se o espaço
aplainando tábuas.

Rasga-se seda para aprender o ritmo.

Abraço um corpo com as camélias
a arder.

Abertas para sempre as negras partes
de mais uma estação.

Semelhante a isto
as mulheres andam pelas galerias transparentes,
e o palácio queima a noite onde estou
cantando.

É possível ainda cortar ao meio o ofício de ver —
e num lado há espelhos bêbedos,
no outro um cardume ilegível de sons
obscuros.

Sabe-se então pelo silêncio em volta,
sabe-se em volta que são lírios
sonoros.

Passando
as mulheres colhem estes sons irrompentes,
e as mãos ficam negras junto à beleza
insensata.

Elas sorriem depois com um talento
terrível.

Levamos às costas um carneiro palpitante.

Pesa tanto uma estrela
quando se acorda nas salas negras abertas de par em par,
e as mãos agarram um ramo de cabelos dolorosos,
e sobre a boca um lírio em brasa,
branco, branco,
que não nos deixa respirar.

A lepra na boca,
que não nos deixa respirar.


Um ramo de lepra contra o corpo,
como isto então só o movimento de águas obscuras
pelos canais de um canto,
como um palácio de salas negras abertas
para sempre.

Este animal respira como um espelho de pé,
no ar,
no ar.











herberto helder
apresentação do rosto
(as palavras)
editora ulisseia
1968






28 abril 2008

os nós da escrita





Escrever é, para mim, tentar desfazer nós, embora o que na realidade acabo sempre por fazer seja embrulhar ainda mais os fios. A própria caligrafia é sufocada.

Há, todavia, um momento em que as palavras são cuspidas, saem em borbotões, e o sangue e a saliva impregnam o sentido. É impossível separá-los.

Por trás talvez não haja mesmo nada. São palavras que não estão ginasticadas, que secam e encarquilham como folhas por que a seiva já não passe.

Oprimem toda a página, através da qual deixa de ser possível respirar. Tapam-lhe os poros. A própria chuva que neles caia não se escoa.








luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
rebentação
publicações dom quixote
2002




corridor in the asylum








vincent van gogh
(dutch, zundert 1853 - 1890 auvers-sur-oise)
dutch
corridor in the asylum, september 1889; 19th century
bequest of abby aldrich rockefeller, 1948 (48.190.2)
the metropolitan museum of art


24 abril 2008

noite de abril






hoje, noite de abril, sem lua,
a minha rua
é outra rua.


talvez por ser mais que nenhuma escura
e bailar o vento leste
a noite de hoje veste
as coisas conhecidas de aventura.


uma rua nova destruiu a rua do costume,
como se sempre nela houvesse este perfume
de vento leste e primavera,
a sombra dos muros espera
alguém que ela conhece.


e às vezes, o silêncio estremece
como se fosse a hora de passar alguém
que só hoje não vem.










sophia de mello b. andresen
obra poética I
caminho
1999


21 abril 2008

nesse dia






*

nesse dia ele parecia-se tanto consigo que se confundia,
tal como o dia se confundia consigo mesmo
e a confusão a ambos confundia


*






per aage brandt
livro da noite
trad. maria joão reynaud
poetas em mateus
quetzal
2004





17 abril 2008

a função do geógrafo





1.


Se quiseres que eu me perca
buscarei outra ilha.
Esperarei a sombra diante dos olhos,
o milhafre na ravina de crisântemos.
Ao longe, correndo para a primeira luz do dia,
estarei à tua espera,
acenando com a mão esquerda,
avançando sobre o mar.
Não te esqueças,
aprendi um dia como deus nos traz um sono
leve que nos cega.








rui coias
a função do geógrafo
quasi edições
2000