27 outubro 2007

pensar a Europa




91 Pensar a Europa. Pensar o esgotamento de todos os seus possíveis e a sua paralisia. Como um tísico e o seu olhar febril e cheio ainda de iluminação. O cerco aperta-se de todas as civilizações, das que sobretudo sentem em si um pólo unificador. Imaginá-la inundada do islamismo ou tingida de preto de uma inundação africana ou asiática. Imaginá-la surpreendida no entretém do seu vazio. Pensá-la servil como os escravos pedagogos em Roma, a servir de ilustração aos seus novos senhores. Ou pensá-la coalhada de electrodomésticos e computadores, na ausência de uma alma enfrentada aos bárbaros da tecnologia. Pensá-la dessorada, fluidificada, viscosa na indiferenciação total do seu ser. Pensar a Europa. Chorar sobre ela.




vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001




24 outubro 2007

põe-se a questão de...


















O que é grave
é nós sabermos
que depois da ordem
deste mundo
uma outra existe.

Que outra?

Não o sabemos.

O número e a ordem das suposições possíveis
é neste campo
justamente
o infinito!

E o infinito o que é?

Não sabemos exactamente o que seja.

É uma palavra
que nós usamos
para designar
a abertura
da nossa consciência
perante a desmedida
possibilidade,
infatigável e desmedida.

E o que vem a ser exactamente a consciência?

Não sabemos exactamente o que seja.

É o nada.

Um nada
de que nos servimos
quando não sabemos qualquer coisa
para designar
qual a faceta que desconhecemos
e então
falamos em
consciência,
pelo prisma da consciência,
quando há cem mil outros prismas.

E então?

Parece que a consciência
estaria em nós
ligada
ao desejo sexual
e à fome;
mas poderia
perfeitamente
não ter qualquer ligação
com isso.

Diz-se,
é possível dizer,
há quem diga
que a consciência
é um apetite,
o apetite de viver;

e imediatamente
a par do apetite de viver,
é o apetite de comida
o que imediatamente nos vem ao espírito;

como se não houvesse gente que come
sem o mínimo apetite;
e gente que tem fome.

Pois também isso
acontece
ter fome
sem apetite;

e então?

Então

o espaço do possível
surgiu-me um dia
como um grande peido
que eu tivesse dado;
mas nem o espaço,
nem o possível
sabia eu exactamente o que fossem,
nem nisso sentia necessidade de pensar;

eram palavras
inventadas para definirem coisas
que existiam
ou não existiam
frente à
premente urgência
de uma necessidade:
a de suprimir a ideia,
a ideia e o seu mito
e em seu lugar instituir
a manifestação tonante
desta explosiva necessidade:
dilatar o corpo da minha noite interna,

no nada interno
do meu eu

que é noite,
nada,
irreflexão,

mas que é explosiva afirmação
de que há
algo
a que dar lugar:

o meu corpo.

Mas então
reduzir o meu corpo
a um gás fétido?
Dizer que tenho um corpo
porque tenho um gás fétido
em formação
dentro de mim?

Não sei
mas
sei que

o espaço,
o tempo,
a dimensão,
o devir,
o futuro
o porvir,
o ser,
o não ser,
o eu,
o não eu,

nada são para mim;

mas há uma coisa
que é qualquer coisa,
uma só coisa
susceptível de ser qualquer coisa,
uma coisa que eu sinto
por ela querer

SAIR:

a presença
da minha dor
de corpo,
a presença
agressiva
jamais cansativa
do meu
corpo;

e por mais que me apertem com perguntas
e que eu me esquive a todas,
chego a um ponto
em que me vejo constrangido
a dizer não,

NÃO

portanto
à negação;

e esse ponto
é quando me apertam,

quando me amolgam
e me dão tratos
até de mim sair
o alimento,
o meu alimento
e o seu leite,

e então que fica?

Fico eu sufocado;
E não sei que acção será essa
Mas apertando-me assim com perguntas
até à completa ausência,
ao nada
da questão,
apertaram-me
até sufocar
em mim
a ideia de corpo
e de ser um corpo,

e foi então que eu senti o obsceno

e que me peidei
de irrisão
e de excesso
e de revolta
pela minha sufocação.

É que me apertavam
contra o meu corpo
e contra o corpo

e foi então
que eu fiz ir tudo pelos ares
porque no meu corpo
não se toca nunca.






antonin artaud
para acabar de vez com o juízo de deus
trad. luiza neto jorge
& etc
1975






22 outubro 2007

o norte da europa




I

O Pai Natal coberto de lantejoulas ia subindo a ladeira com um ar circunstancial. O cumprimento que me dirigiu, corrigido por um gesto de perfeita cortesia, era tão naturalmente rico de proteínas que se comia à mão, em fato de baile.

Os dias iam correndo pela mão daquela cujo nome se vai ocultar na Península da Gata, a norte do Carvoeiro.

«É assim que cumpres?», perguntou Júlia Bahamas. Respondi que não era ainda tempo de colher maçãs e que também as uvas estavam por amadurecer. E acrescentei, exclamativamente:

«Ó Estações!»

Mas aí já ninguém ouvia ninguém, o círculo apertava-se coberto de espuma.


II

Estava tudo tremido ao longo do mar e a gente sentia que o sol nos tocava com força. Levei nos braços alguma terra verde. Lá havia muito sal. No seio daquela estátua mutilada no ventre pela cruz vermelha do asco mais inocente.

Teve de vestir a bata branca, mesmo sabendo que o anestésico não chegava para o bolo que te pediram e que eu comi durante três dias a mergulhar num monte de areia triste, lá onde a vaga me comia. «Não implores», disse, e curvei a cabeça até lhe beijar os pés que outros haviam já beijado outrora, à saída dos teatros que dão para a Grande Perspectiva Nevsky. Distribuídos os gorros aos transeuntes, regressavam a casa, quando não voavam atrás da troika da Condessa Nemus, num grande ladrar de cães com manguitos atrás das orelhas e muitas bocas abertas a ver. Mas que grande porra, disse o velho, e ele sabia que era isso assim tal e qual e que não havia mais nada para dizer nunca mais. E porque tudo me era indiferente desatei os sapatos e corri de pés nus pela areia dentro a bater palmas e a uivar como um lobo.


III

Era principalmente música o que nos chamava pois ninguém tinha posto de radiofonia naquela zona que era a mesma mas repetida de tal forma que a noite nos surpreendeu com uma cor ligeiramente azulada nos tornozelos. Chamado o médico e retiradas as grades começámos a subir. A primeira nuvem, ligeiramente descaída na ponta, não nos deu o necessário informe, mas já a segunda, muito bem pintada, indicava o norte, o sul, o número do telefone, a certidão de idade e o Grande Beijo, praticado de pernas para o ar e em estado de nobreza absoluta.

Um círculo vicioso. Estavam lá as cores todas. E gritámos. E ainda corria alguém — vago — à frente dos nossos gritos-gemidos. Rosa — eu sei que havia uma cor-de-rosa. Como no tecto da casa passavam aves e arneses, no fim do verão, quando as chuvas começam. O mesmo fenómeno, afinal.





mário cesariny
primavera autónoma das estradas
assírio & alvim
1980





filipa gonçalves







filipa gonçalves
sem nome (8)
caneta s/papel
150 x 180 cm


xiv bienal de v. n. cerveira
as novas cruzadas



21 outubro 2007

prisioneiros





A pouco e pouco o dilúvio entrou e fechou a porta atrás de si
A dor que hesitara entre o corpo e o espírito
pousou os cabelos na fronte e deixou-se ir com o dilúvio
Já dormiu nos pátios, uma fresta de muro (mundo) íngreme
era a sua fascinação nocturna

O impossível avançou para ele e passado ficou
cheio de partes dispersas e o princípio de um ventre mosaico
no vitral da sala
As imagens levam em si memórias silenciosas
em troca de um pântano entontecido, uma mistura açucarada
que já ninguém lembra entoando cânticos antigos
e estendendo os braços extinguem a luz

Reflectia, sentia, verticalmente repuxado pelos planos que
antes encenara, empurrando para a frente
o tecto do corpo longo de um riso quadriculado
manhãs ínfimas da extremidade de troncos humanos

procuram na quebra dos braços a transpiração de outras
mãos
sobre as suas, oferecem-se à ternura dos
tormentos misteriosos e aí permanecem

vestem cinza sóbrio e elegante: casaco cinza,
calça cinza, gravata cinza
Formam uma mancha cinza na obscuridade
constroem
uma rua baça e escura com escadas de latão grosseiro, onde
um degrau leva as mãos amarradas por ser um degrau solitário
no início de uma tarde de Inverno

por detrás de cada silêncio nasce um homem
de pés descalços e traz um som áspero que se renova
ciclicamente


A muralha vai
de um
ao outro extremo da terra






ângela canez
oficina de poesia
nr. 3 Junho 2004
coimbra






18 outubro 2007

mestres-do-chá




Na religião, o Futuro está atrás de nós. Na arte, o Presente é o eterno, O mestre-do-chá defendia só ser possível a verdadeira apreciação artística aos que a encaram como uma influência viva. Assim, procuraram regular o quotidiano das suas vidas pelo elevado padrão de requinte que prevalecia na sala-de-chá. Fosse qual fosse a circunstância, havia que manter a serenidade de espírito, e a conversa deveria conduzir-se de modo a nunca perturbar a harmonia da ambiência. O corte e a cor do traje, a pose do corpo e a maneira de caminhar podiam ser transformados em expressão da personalidade artística. Estes preceitos não deviam ignorar-se com ligeireza, pois até se tornar a si próprio belo ninguém tem direito a aproximar-se da beleza. Assim, o mestre-do-chá esforçava-se por ser algo mais que o artista — a própria arte. Era o Zen do esteticismo. A perfeição está em todo o lado, basta decidirmos reconhecê-la. Rikiu adorava citar um velho poema que diz: «Aos que anseiam apenas pelas flores, eu mostraria com agrado a primavera desabrochada que subsiste nos botões obstinados dos montes cobertos de neve.»

Foram de facto diversas as contribuições dos mestres-do-chá para a arte. Revolucionaram completamente a arquitectura clássica e as decorações interiores, e estabeleceram o novo estilo que descrevemos no capítulo sobre a sala-de-chá, um estilo a cuja influência se sujeitaram inclusivamente os palácios e mosteiros erigidos depois do século dezasseis. O versátil Kobori Enshiu deixou exemplos notáveis do seu génio na vila imperial de Katsura, nos castelos de Nagoya e Nijo, e no mosteiro de Kohoan. Todos os jardins célebres do Japão foram planeados pelos mestres-do-chá. É provável que a nossa cerâmica jamais atingisse aquela altíssima qualidade de excelência se os mestres-do-chá não lhe houvessem emprestado a sua inspiração, uma vez que a manufactura dos utensílios utilizados na cerimónia-do-chá exige o maior dispêndio de engenho por parte dos nossos ceramistas. Os Sete Fornos de Enshiu são sobejamente conhecidos de todos os estudiosos da cerâmica japonesa. Muitos dos nossos tecidos trazem os nomes dos mestres-do-chá que lhes conceberam as cores ou o padrão. Em verdade, é impossível encontrar algum sector da arte em que os mestres-do-chá não tenham deixado marcas do seu génio. Na pintura, e nas lacas, parece quase supérfluo mencionar o imenso serviço que prestaram. Uma das maiores escolas de pintura deve a sua origem ao mestre-do-chá Honnami-Koyetsu, afamado também como artista lacador e ceramista. Perto da sua obra, a criação esplêndida do seu neto, Koho, e dos seus sobrinhos-netos, Korin e Kenzan, quase cai na penumbra. Toda a escola Korin, como geralmente é designada, é expressão do Cháismo. Nos traços largos desta escola parecemos encontrar a vitalidade da própria natureza.

Por maior que tenha sido a influência dos mestres-do-chá no campo da arte, ela não é nada quando comparada com a que eles exerceram na conduta da vida. Sentimos a presença dos mestres-do-chá não apenas nos usos da sociedade polida, mas também no arranjo de todos os nossos detalhes domésticos. Muitos dos nossos pratos delicados, bem como a maneira de servirmos os alimentos, são invenções suas. Ensinaram-nos a vestir somente trajes de cores sóbrias. Instruíram-nos no espírito próprio para nos aproximarmos das flores. Acentuaram o nosso amor natural pela simplicidade, e mostraram-nos a beleza da humildade. Na verdade, através dos seus ensinamentos o chá entrou na vida do povo.

Os que, entre nós, desconhecem o segredo de regular adequadamente a sua existência neste mar tumultuoso de problemas tolos a que chamamos vida, estão num estado de tristeza constante, embora tentem em vão parecer felizes e contentados. Vacilamos ao tentar manter o nosso equilíbrio moral, e vemos prenúncios da tempestade em cada nuvem que paira no horizonte. Contudo, há alegria e beleza na espiral das vagas que se encapelam rumo à eternidade. Por que não entrar no seu espírito, ou, como Liehtse, cavalgar o próprio furacão?

Quem apenas viveu com o belo pode morrer em beleza. Os últimos momentos dos grandes mestres-do-chá foram de um requinte sofisticado tão completo quanto o haviam sido as suas vidas. Procurando constantemente harmonizar-se com o grande ritmo do universo, estavam sempre preparados para entrar no desconhecido. O «Ultimo Chá de Ríkiu» evidenciar-se-á para sempre como o auge da grandiosidade trágica.

A amizade entre Ríkiu e o Taiko Hideyoshi vinha de há muito, e era elevada a estima em que o grande guerreiro tinha o mestre-do-chá. Mas a amizade de um déspota é sempre uma honra perigosa. Vivia-se uma época fértil em traições, e os homens não confiavam sequer nos seus parentes mais próximos. Rikiu não era um cortesão servil, e ousara amiúde discordar do seu feroz patrono. Tirando partido da frieza que existia há algum tempo entre o Taiko e Rikiu, os inimigos deste último acusaram-no de estar implicado numa conspiração para envenenar o déspota. Foi segredado a Hideyoshi que a poção fatal lhe seria administrada com uma chávena da beberagem verde, preparada pelo mestre-do-chá. Para Hideyoshi a suspeição era terreno suficiente para execução imediata, e não houve apelo que demovesse a vontade do irado governante. Um só privilégio foi concedido ao condenado — a honra de morrer pela sua própria mão.

No dia destinado à autoimolação, Rikiu convidou os seus principais discípulos para uma última cerimónia-do-chá. Enlutados, na hora estipulada os convidados encontraram-se no alpendre. Quando olham para o caminho do jardim as árvores parecem estremecer, e no restolhar das folhas escutam-se murmúrios de fantasmas desabrigados. Como sentinelas solenes perante os portões do Hades estão as lanternas de pedra cinzenta. Uma onda de incenso raro solta-se da sala-de-chá; é o chamamento que ordena aos convidados que entrem. Um a um avançam e tomam os seus lugares. No Tokonoma está pendurado um kakemono um escrito maravilhoso de um monge antigo, discorrendo sobre a evanescência de todas as coisas terrenas. A chaleira cantante, à medida que ferve sobre o braseiro, soa como uma cigarra derramando os seus lamentos ao Verão em declínio. Pouco depois o anfitrião entra na sala. Um a um são servidos de chá, e um a um esvaziam silenciosamente as suas chávenas, sendo o anfitrião o último a fazê-lo. De acordo com a etiqueta estabelecida, o convidado principal pede agora permissão para examinar o equipamento-do-chá. Rikiu dispõe frente a eles os diversos artigos, com o kakemono. Tendo todos expressado admiração pela sua beleza, Rikiu presenteia com um destes artigos cada um dos convivas reunidos, como lembrança. Só a malga reserva para si mesmo. «Jamais esta chávena, poluída pelos lábios da desgraça, será usada pelos homens.» Fala, e quebra o recipiente em bocados.

A cerimónia termina; os convidados, dificilmente retendo as lágrimas, despedem-se pela última vez e deixam a sala. A um apenas, o mais próximo e mais querido, é solicitado que fique e testemunhe o fim. Então, Rikiu remove o seu fato-do-chá e dobra-o cuidadosamente sobre a esteira, desvendando assim o imaculado vestido branco de morte que até aqui se ocultara. Com ternura fita a lámina reluzente do punhal fatal, e dirige-se-lhe assim, em versos singulares:


Bemvinda sejas,
Ó espada da eternidade!
Através de Buda
E também de Daruma
Cravaste o teu caminho!

Com um sorriso no rosto, Rikiu entrou no desconhecido.






kakuzo okakura
o livro do chá
trad. fernanda mira barros
biblioteca editores independentes
2007





17 outubro 2007

horas




só estas horas
me tocam de infinito

o tempo
parado na fenda dos dias

a voz
subindo a rebeldia do corpo

somos água
transbordamos de silêncio

no desassossego
no caos da raiz que nos inventa

infimamente
divisamos o mundo

e escolhemos
o melhor abismo

tu és
a minha escarpa

o segundo
que me demora

o cair
nas estrelas

não te esfumes
não pereças

nos urbanos
jardins

que me sufocaram
o sonho

sustenta o canto
que me chama

até ti
como uma corrente

e deixa-te
fundir no éter

como se uma luz
nos escrevesse o nome

numa impossível
escuridão





gil t. sousa
poemas
2001






14 outubro 2007

papeis selvagens




4

Vi morrer o sol. o centro redondo e os longos raios que, rapidamente se enroscaram.

Saí, caminhei sobre latas, pedras e tartarugas.
No prado, as violetas rodearam-me; os ramos sombrios e azuis.

A meu lado, brotou um ser, do sexo feminino, de quatro ou cinco anos, rosto redondo, escuro, cabelo curto.

Falou numa língua que eu nunca tinha ouvido; mas que entendi.
Perguntou-me se eu realmente existia, se tinha filhas.

Outras, idênticas, surgiram de muitos lados; de entre os ramos caíu, diante de mim, uma paisagem cheia de meninas.

Olhei para o céu, não havia uma estrela, não havia nada.

Recordei antigas fórmulas, disse-as de diversos modos, trocando as sílabas; nada resultou.
Não sei quanto tempo passou, como pude saltar das violetas.
Afastei-me em desespero, entrei, fechei as portas.

Mas já a casa tinha começado a soçobrar.
E ainda hoje, ela baloiça como um barco.





marosa di giorgio
poemas
tradução de rosa alice branco




11 outubro 2007

assim que souber




assim que souber onde se escondem as anquilosadas carmencitas
dos centenários flamencos sapateados em barulhentos metais e
roucas vozes
os d. josés iludidos depois desiludidos os toureiros organizados
em cooperativas da velha guarda atónita e remendada
os rapazes dos coletes brilhantes apertados e vermelhos do sangue da besta

assim que souber se vale a pena saber saberei o que fazer
conhecerei o meu destino pintalgado nas paredes do meu cubículo
as rosas que me adornam os pés serão regadas de cristais líquidos
retirarei desses olhos esmaecidos ao sol-pôr luzentes como gatos escondidos
nas noites
as opacidades que de longe te transmitem a voz dos esquecidos

terei nos meus braços o teu doce coração livre dos tormentos arroxeados
passarei as minhas mãos sobre os teus cabelos de pálido querubim
acariciarei as tuas doces orelhas de centauro solitário e sonhador
alisarei o teu pelo de ricos brocados renascentistas com cores de rubens
calçar-te-ei de garbosas botas voadoras

poderás de novo correr os bosques molhar o teu corpo nas espumas estelares
semear alegorias nos livros por editar em prateleiras cinematográficas
ambos poderemos ser uma coisa e ser outra e ser tudo e sobretudo
sermos o que somos


m.f.s.






09 outubro 2007

caixas e sacos




Quanto maior é a caixa, mais leva.
As caixas vazias levam tanto como as cabeças vazias.
Muitas caixinhas vazias que se deitam numa grande caixa vazia, en-
chem-na toda.
Uma caixa meio-vazia diz: "Ponham-me mais."
Uma caixa bastante grande pode conter o mundo.
Os elefantes precisam de grandes caixas para guardar uma dúzia de
lenços de assoar para elefantes.
As pulgas dobram os seus lencinhos e arrumam-nos com cuidado
em caixas de lenços para pulgas.
Os sacos encostam-se uns aos outros e as caixas levantam-se inde-
pendentes.
As caixas são quadradas e têm cantos, ou então são redondas e têm
círculos.
Pode empilhar-se caixa sobre caixa até que tudo venha abaixo.
Empilhe caixa sobre caixa, e a caixa do fundo dirá: "Queira notar
que tudo repousa sobre mim."
Empilhe caixa sobre mim, e a que está em cima perguntará: "É
capaz de me dizer qual de nós cai para mais longe quando
caímos todas?"
As pessoas-caixas vão à procura de caixas e as pessoas-sacos à pro-
cura de sacos.





carl sandburg
e.u.a. 1878-1967
trad. alexandre o'neill
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001




07 outubro 2007

das memórias de adriano





E foi por esta época
que principiei a sentir-me deus.

Não faças confusão: era sempre, era mais que nunca
aquele mesmo homem alimentado de frutos
e de animais da terra,
restituindo ao solo os resíduos dos seus alimentos,
sacrificando ao sono a cada revolução dos astros,
inquieto até à loucura
quando lhe faltava por demasiado tempo
a cálida presença do amor.

A minha força,
a minha agilidade física ou mental
eram cuidadosamente mantidas por uma ginástica
toda humana.

Mas que dizer senão que tudo isso era divinamente
vivido?
As ousadas experiências da juventude
tinham acabado,
assim como a sofreguidão de gozar o tempo que passa.

Aos quarenta e quatro anos
sentia-me sem impaciência,
seguro de mim,
tão perfeito
quanto a minha natureza me permitia,
eterno.

E compreende bem que se trata,
neste caso,
de uma concepção do intelecto:
os delírios, se este nome se lhes pode dar,
vieram mais tarde.

Era deus
simplesmente porque era homem.





marguerite yourcenar
memórias de adriano
trad. maria lamas
ulisseia
1974





06 outubro 2007

da indiferença de Deus





“Durante anos esforçamo-nos por aceitar a ideia de que as outras pessoas não se importam absolutamente nada connosco; depois, certo dia, com um pavor crescente, descobrimos que é o próprio Deus que se não interessa por nós: e, o que é pior, descobrimos que lhe é totalmente indiferente que sejamos uma coisa ou outra: bons ou maus.”












lawrence durrell

justine

(o quarteto de alexandria)

trad. daniel gonçalves

ulisseia

1992








05 outubro 2007

folhas de hipno


222


Minha raposa,
pousa a tua cabeça sobre os meus joelhos.

Eu não sou feliz e no entanto tu bastas.
Castiçal ou meteoro,
já não há na terra coração grande ou futuro.

Os passos do crepúsculo revelam o teu murmúrio,
albergue de hortelã e alecrim,
confidência trocada entre as sardas do Outono
e o teu vestido ligeiro.

És a alma da montanha com profundos flancos,
com rochas mudas por trás de lábios de argila.

Que estremeçam as tuas narinas.
Que a tua mão feche o caminho
e aproxime a cortina das árvores.

Minha raposa,
na presença dos dois astros,
o gelo e vento,
deposito em ti todas as esperanças desmoronadas,
por um cardo
que vença a solidão rapace.





rené char
furor e mistério
trad. margarida vale de gato
relógio de água
2000