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01 dezembro 2012

ângela canez / suspendamos um pouco a alma




Suspendamos um pouco a alma
     à semelhança de um objecto pesado e enorme

     Aonde chega a matéria severa
     forja um bem aparente
     dá forma a um signo artificial
     Os elementos primários criam o cheiro da ameixa no susto mole
          — cera nos punhos rotos
     jugo da fome perseguindo a fortuna
     assistindo ao seu declínio
     o visível sustém-se pela seiva
     vespertina, o visível abomina o jejum
     persiste como um insulto indigno
     Algures um sentido repousa
     mais fundo, permanece até que o tempo finde
     — Aquela criança desagregada
     não cabe à mesa
     não se segura sozinha raiada de espuma
     porque aplaude o gesto póstumo o gesto
     que se esboça antes das próprias mãos

     Desse seu costume informe de arrastar
     um destino interdito, à margem do que
     é normal e é homem

          — Assistimos ao riso crescente daqueles
          para quem a criança está para além
          um ser nulo, fragmentário


     O jugo da busca não é vão
            inanimal apenas



ângela canez
oficina de poesia
nr. 3 Junho 2004
coimbra



21 outubro 2007

prisioneiros





A pouco e pouco o dilúvio entrou e fechou a porta atrás de si
A dor que hesitara entre o corpo e o espírito
pousou os cabelos na fronte e deixou-se ir com o dilúvio
Já dormiu nos pátios, uma fresta de muro (mundo) íngreme
era a sua fascinação nocturna

O impossível avançou para ele e passado ficou
cheio de partes dispersas e o princípio de um ventre mosaico
no vitral da sala
As imagens levam em si memórias silenciosas
em troca de um pântano entontecido, uma mistura açucarada
que já ninguém lembra entoando cânticos antigos
e estendendo os braços extinguem a luz

Reflectia, sentia, verticalmente repuxado pelos planos que
antes encenara, empurrando para a frente
o tecto do corpo longo de um riso quadriculado
manhãs ínfimas da extremidade de troncos humanos

procuram na quebra dos braços a transpiração de outras
mãos
sobre as suas, oferecem-se à ternura dos
tormentos misteriosos e aí permanecem

vestem cinza sóbrio e elegante: casaco cinza,
calça cinza, gravata cinza
Formam uma mancha cinza na obscuridade
constroem
uma rua baça e escura com escadas de latão grosseiro, onde
um degrau leva as mãos amarradas por ser um degrau solitário
no início de uma tarde de Inverno

por detrás de cada silêncio nasce um homem
de pés descalços e traz um som áspero que se renova
ciclicamente


A muralha vai
de um
ao outro extremo da terra






ângela canez
oficina de poesia
nr. 3 Junho 2004
coimbra