16 março 2007
silêncios
fala-me da ausência do mundo, do enorme silêncio
que me separa do rumor do tempo.
sim, digo-lhe,
semeei dunas brancas ao longo do que existi,
realizei um por um os horizontes
e caminhei.
nos passos,
levei a sabedoria de anoitecer e de madrugar.
exerci-a
na altitude dos que me perguntaram o nome.
naqueles que me questionaram o olhar
ou a palavra
nos que, suspensos da fronteira de sombras,
esperaram para me ouvir
ou para me falar.
e usei a voz como um pássaro usa as sementes.
digo-lhe:
não, não apaguei o mundo da minha vontade
apenas o areei de solidão
e fiz dele um deserto
onde alguém se perdesse.
gil t. sousa
poemas
2001
samuel beckett / sobressaltos
Numa noite estava ele sentado à mesa dele
com a cabeça entre as mãos
quando se viu a si mesmo a levantar-se e a ir-se.
Uma noite ou um dia.
Pois quando se apagou a luz dele
não ficou na escuridão.
Na altura vinha uma espécie de luz
da única janela alta.
Debaixo dela ainda o banco por onde ele subia
para ver o céu até mais não poder
ou não querer.
Se não se esticava para ver
o que havia lá por baixo
era talvez porque a janela não era feita para abrir
ou porque ele não a podia ou não queria abrir.
Talvez ele soubesse até bem de mais
o que havia lá por baixo
e nunca mais o quisesse ver.
E assim mais não fazia
que pôr-se ali de pé bem alto acima da terra
a olhar através do vidro nublado para o céu sem nuvens.
A luz fraca e fixa do céu
como nenhuma outra luz de que ele se lembrasse
dos dias e das noites
em que dia dava em noite
e noite dava em dia.
Então esta luz exterior
quando a luz que ele tinha se apagou
tornou-se na única luz que tinha
até que por sua vez se apagou
e deixou-o na escuridão.
Até que por sua vez se apagou.
(...)
samuel beckett
sobressaltos
trad. miguel esteves cardoso
o independente
05-01-1990
15 março 2007
muro branco
como um muro branco
sobre o deserto
da noite
a morte
escrita na solar pureza
das palavras
a íntima loucura
da dor
o imperativo silêncio
do que brilhava
não sei se volto
perdi o fio das madrugadas
a linha
que dos teus lábios
me descia céus
no olhar
gil t. sousa
poemas
2001
14 março 2007
as riquíssimas horas do Duque de Berry
março
Começam os primeiros trabalhos agrícolas no campo. Por volta de 21 de março, o Sol cruza o equador celestial rumo ao norte; é o equinócio de março, começo da primavera no Hemisfério Norte e do outono no Hemisfério Sul. Ao fundo, o castelo de Lusignan, um dos castelos preferidos do Duque.
13 março 2007
uma fila de árvores caminha pela minha rua...
34.
Uma fila de árvores caminha pela minha rua em direcção ao
Norte.
As árvores caminham lentamente, com o rosto
levantado, arrogantes ou tristes, com essa lentidão do
equilibrista sobre um campo de minas.
Pudessem ser amigos que fugiram da morte,
pois a morte tem apego ao Sul.
Pudessem ser uma fila de homens sem casa nem
família com a convicção do soldado que
avança para a derrota.
Mas são apenas árvores, altas, de folha perene, cujos passos
impassíveis nunca perdem o ritmo,
uma fila que o vento não dissolve nem extingue.
Eu não quero saber que dor as sujeita, nem que
mão imprudente as animou a crescer.
Apenas as observo passar, dia após dia, passar desde
a infância, desde o primeiro amor.
Quereria perguntar-lhes os nomes, mas calo-me.
Quereria que a noite chegasse e as cobrisse:
Que inclinassem apenas a cabeça ao morrer.
jesus urceloy
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000
12 março 2007
malas sem atenção
Malas sem atenção: assim parecem
ser a maioria dos poemas.
Malas abandonadas num aeroporto
que ninguém busca ou reclama.
Malas que não se podiam deixar
e por isso mesmo se deixam,
quando nos avisam pelo altifalante:
"... por motivos de segurança
não deixem abandonada qualquer mala
nem se aproximem se virem uma".
Isto é, por sua vez, a leitura de um poema:
o encontro inesperado de um mundo
metido e comprimido num pequeno
concentrado de tempo - coisas de vestir,
vários objectos de companhia,
outros de primeira necessidade,
roupa interior muita, até demais,
e tudo, em geral desordenado, revolvido
contra não sabemos quê ou quem,
mas formando uma estranha unidade -,
o envolvimento e as entranhas de um corpo
desconhecido, uma segunda pele
que gostamos de usar de vez em quando,
- mudados, revestidos com outros olhos -,
ou então nós mesmos mais que nunca
- finalmente despidos do que sobra
e na nossa nudez reencontrados.
àlex susanna
poemas
tradução de egito gonçalves
09 março 2007
sob a pluma do poeta
sob a pluma do poeta
ensimesmado
corre a linha
desliza a linha da palavra
que agarra outra linha
outra palavra
e como no tear ancestral
tece a renda do texto
borda as cores
dos inaudíveis sonhares
abismais
entrelaça o pensar
deslumbrado
entontecido de desmaios
singelezas outonais
nos campos
das cegueiras múltiplas
desengonça as infiltrações
escondidas sob as
peles esburacadas
de bailarinas células
constroi e
desconstroi
o universo finito
das imitações criativas
faz-se sombra de deus
seu objectivo final
por vezes
m.f.s.
08 março 2007
sei
Sei
ao chegar a casa
qual de nós
voltou primeiro do emprego
Tu
se o ar é fresco
eu
se deixo de respirar
subitamente
antónio reis
novos poemas quotidianos
edição do autor
1959
07 março 2007
quando fomos para a cama
Os resíduos de estrela que ficaram entre os seus
cabelos
crocitavam como cascas de amendoins
a estrela cuja luz tu descobriste
há um milhão de anos já
no mesmo instante em que era dado à luz
um diminuto menino chinês.
«Os chinas são os únicos que não temem
os fantasmas
que nos saem da pele todas as noites.»
Lástima é que a estrela
não tivesse sabido fecundar teu seio
e que o pássaro da lamparina de azeite
a bicasse como casca de amendoim
o teu e o meu olhar
deixaram-te no ventre
um signo futuro de luminosa multiplicação.
luis buñuel
poemas
trad. de mário cesariny
arcadia
1977
06 março 2007
isto é uma carta de amor
Mas não sei dizer-te que espécie de amor.
As flores brotam do campo de golfe.
Estou no carro a ouvir não sei
O quê; o que é? Oiço . Aleluias, fortíssimo,
Pianoforte, um forte de conhecimento, reconhecimento,
Piano, leve, pianos em queda,
Inofensivos. Como pude sentar-me
à mesa contigo, se já saciada?
Talvez quisesse só sentir a comida nos dentes.
A soprano vira a página.
A trompa. Escuta: Amen, amen.
A Academia de Saint Martin in The Fields,
O que está no campo, bolas de golfe?
Sir Neville Mariner dirige,
Dirigindo, Rua Mariner abaixo.
Quando é que se abre a porta aberta?
Há quanto tempo te conheço nesta vida de cão?
Dirijo-me para sul; as luzes acompanham o ritmo.
Há um bálsamo
Há uma história que te quis contar
Em Gilead o telhado está a arder
Não haverá um bálsamo nos meus lábios
A cor é de cena
As luzes mudam
Há um bálsamo
Agarro-me de olhos fechados a uma ideia de ti
Numa rede e o rádio sempre a tocar
Há um bálsamo
O retrato da Virgem Mãe de pé
Aos pés da cruz, Rossini,
Perto, escuta, existe, há um bálsamo há
de pé uma virgem.
elizabeth burns
poesia do mundo
tradução de graça capinha
afrontamento
1995
05 março 2007
perfil do idiota
O IDIOTA é geralmente competente, moralmente irrepreensível e socialmente necessário. Faz o que tem a fazer sem dúvidas ou hesitações, respeita as hierarquias, toma sempre o partido do bem e acredita religiosamente nas grandes ficções sociais.
A incapacidade de relacionar as coisas, as ideias e as sensações transforma-a ele em força, e como lhe escapam as causas e os fins do que lhe mandaram fazer, fá-lo com prontidão e limpeza, sem introspecções inúteis. Do mesmo modo, como vê no destino o único regulador da vida, acha que se uns dão ordens e outros obedecem é porque todos cumprem misteriosas injunções da providência, as quais é não só inútil, mas criminoso sondar.
O idiota só pode ser bom. Para o mal, precisa-se de imaginação, inteligência descriminativa, espírito científico. Corno também não dispõe de virtualidades poéticas e é, portanto, incapaz de se criar a si próprio, idolatra quem o criou: Deus em primeiro de tudo, e depois os pais.
O idiota é um bom cidadão. Sem ele, a sociedade entraria em curto-circuito, incendiada entre os polos do dever heróico e da desobediência revolucionária. Dado ser-lhe vedado apreender o nexo que liga a evolução dos meios de produção à transformação das relações de propriedade acredita de facto que o corolário das novas tecnologias é o reforço da iniciativa privada, da livre empresa e do livre mercado. É o único que acredita nisso e ainda bem. Se ninguém acreditasse, esta sociedade parava. O idiota é todo liberdades.
A idiotia também faz bem às artes, principalmente às audiovisuais. A concentração do idiota numa ideia fixa, torna-o especialmente receptivo às músicas de ritmo simples e batida forte, o que facilita extraordinariamente o comércio discográfico, com todas as vantagens que daí advêm para producers e performers, enfim, para o tecido social. No que diz respeito às artes plásticas, tudo é mais fecundo se não houver interferências entre os olhos e as mãos. As ideias perturbam, turvam o olhar, atrapalham o gesto e, nos casos de ideologite aguda, daltonizam as cores. Sem imagens, uma cabeça vazia endoidece.
Embora para um idiota seja uma desvantagem não saber que o é, normalmente ninguém lho diz:: segundo Brecht, «tornar-se-ia vingativo como todos os idiotas». Aliás, o mesmo Brecht diz que ser idiota não é grave: «É assim que você poderá chegar aos 80 anos. Em matéria de negócios é mesmo uma vantagem. E então na política!»
O idiota puro é o idiota jovem. Com o tempo, torna-se cínico, adquire hábitos esquisitos, sempre à procura do que lhe serve ou lhe rende, em busca de técnicas para obter sucesso e se sentir bem, sereno, de boa saúde e belo aspecto: cristianismo, ioga, dieta macrobiótica, drogas, parapsicologia, psicanálise, etc.
Para o idiota, os sentimento e as emoções são «uma boa», constituindo dados manipuláveis. Em si mesmos, não lhes acha qualquer sentido ou valor, mas de qualquer modo são coisas que lhe podem trazer vantagens ou desvantagens: é preciso, portanto, avaliar-lhes as implicações e consequências. Ao lidar com sentimentos e emoções, os próprios e os alheios, o problema, para o idiota, consiste em controlá-los, guiá-los, desfrutá-los, e isso implica trabalho, cálculos complicados e a aprendizagem de técnicas nem sempre fáceis.
Impossível, realmente, para o idiota, é a espontaneidade criativa. É algo que lhe surge como uma perspectiva insegura e assustadora. À criação, prefere os sucedâneos que se aprendem nos «workshops» e nas escolas. É uma vida dura, a do idiota: de curso em curso, de colóquio em colóquio, de ciclo em ciclo. Se tem dinheiro, o idiota não se priva de ir ao sexologista e ao psicanalista aprender a libertar os apetites e fantasias sexuais e sentimentais. Com o tempo, tudo se torna para ele aprendizagem e contabilidade: do prazer, da espontaneidade, da criatividade. Cautelosa, como a contabilidade do dinheiro. Ao idiota, repugnam os ímpetos passionais, poéticos e místicos: procura prazeres seguros, previsíveis, e afasta tudo o que possa perturbá-lo.
No plano do consumo e na vida social, o idiota português aprecia as coisas cómodas, os pequenos e grandes privilégios, planeando com minúcia o modo de obtê-los. Sejam quais forem as suas petições de princípio políticas, no fundo é um céptico, despreza o «povinho», vive fechado para os outros. Aos generosos e altruístas, considera-os parvos ou hipócritas. O idiota circula à volta do sucesso como a borboleta em redor da chama, agarrando-se como lapa ou mexilhão a quem o alcança. Espertalhão, agrada-lhe receber, mas dá o menos possível, e arranja sempre qualquer explicação ética para justificar este comportamento. Na realidade, a sua lógica, elementar como as suas poucas ideias e imagens, consiste apenas em receber sempre mais do que dá.
Na actividade económica, não existe em Portugal correspondência entre o surto idiotista e o crescimento empresarial. Em muitos cavaleiros da phinança idiotófila prevalece ainda um conceito patrimonial da riqueza. Uma bela casa no campo é ainda o sinal mais espaventoso de bem-estar e opulência.
Entre os idiotas, também começa a manifestar-se, se bem que de modo caricatural, algo que recorda o hedonismo e o utilitarismo da aristocracia de outrora: o gosto de ser servido, de se distinguir do «vulgar». Como única crítica a filmes, espectáculos, livros, etc., é frequente ouvi-los dizer: «Mas que mau gosto!»
Os idiotas andam sempre juntos: consomem os mesmos produtos, frequentam os mesmos locais, lêem os mesmos livros e jornais, e têm uma habilidade notável para descobrir e evitar quem não é idiota. Graças a Deus! A política, porém, unifica o conjunto da sociedade sob o signo da idiotia: pessoas estimáveis, notáveis até nos diversos domínios do saber e da cultura, quando chegam à política tornam-se idiotas. Triunfam, quer-se dizer. Tornam-se, enfim, públicas.
[Publicado no Diário de Lisboa, de 12/6/87.]
ernesto sampaio
ideias lebres
fenda
1999
04 março 2007
a francisco
suave como o perigo atravessaste um dia
com a tua mão impossível a frágil meia-noite
e a tua mão valia a minha vida, e muitas vidas
e os teus lábios quase mudos diziam aquilo que era o pensamento.
passei uma noite colado a ti como a uma árvore de vida
porque era suave como o perigo,
como o perigo de viver de novo.
leopoldo maria panero
last river together
trad. g.s.
1980
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