21 fevereiro 2007
em nome
em nome da tua ausência
construí com loucura uma grande casa branca
e ao longo das paredes te chorei
sophia de mello b. andressen
dual I
moraes
1972
20 fevereiro 2007
moravagine
Ó jovem, considera a secura
dos trágicos que se perdem em facécias. Não esqueças
que não existe alguma vez progresso
quando o coração petrifica. É
preciso que toda a ciência se
ordene à semelhança dum fruto que
se dependure na ponta de uma árvore
de carne e que amadureça
ao sol da paixão,
histologia, fotografia, campainha
eléctrica, telescópios, pássaros,
amperes, ferro de passar,
etc. – Tudo isto é para deslumbrar a porra da hu-
manidade.
O teu rosto é tão diferente
tão comovente molhado de
lágrimas e pronto a rebentar
de riso.
blaise cendrars
moravagine
trad. e pref. ruy belo
livros cotovia
1992
17 fevereiro 2007
é amargo o coração do poema
É amargo o coração do poema.
A mão esquerda em cima desencadeia uma estrela,
em baixo a outra mão
mexe num charco branco. Feridas que abrem,
reabrem, cose-as a noite, recose-as
com linha incandescente. Amargo. O sangue nunca pára
de mão a mão salgada, entre os olhos,
nos alvéolos da boca.
O sangue que se move nas vozes magnificando
o escuro atrás das coisas,
os halos nas imagens de limalha, os espaços ásperos
que escreves
entre os meteoros. Cose-te: brilhas
nas cicatrizes. Só essa mão que mexes
ao alto e a outra mão que brancamente
trabalha
nas superfícies centrífugas. Amargo, amargo. Em sangue e exercício
de elegância bárbara. Até que sentado ao meio
negro da obra morras
de luz compacta.
Numa radiação de hélio rebentes pela sombria
violência
dos núcleos loucos da alma.
herberto helder
le poème continu
somme anthologique
institut camões / chandeigne
paris, 2002
16 fevereiro 2007
no mesmo espaço
Ambiente da casa, dos cafés, do bairro
que vejo e percorro: ano após ano.
Criei-te de alegrias e tristezas:
de tantas circunstâncias, tantas coisas.
E já não és senão como te sinto.
(1929)
constantino cavafy
90 e mais poemas
trad Jorge de Sena
edições asa
2003
15 fevereiro 2007
sentires
saltei os dias, enquanto minha mãe embalava a máquina do tempo, tentando esquecer os gritos ruidosos. sentia o vai e vem acelerado da vida vazia, que guardava na memória das redes de secretos desejos. carregava nos ombros cactos. picavam-me a pele queimada pelo salitre. não havia dor, o sangue escorria como áscuas. a paixão perseguia um rasto agudo. fulgurava a pressão aterradora do sibilar da cobra pérfida, que atravessava o silêncio, da minha memória. saboreava no outro lado do dia, pitangas que colhia no quintal sem paredes. um rasto de esperma precário, fazia-me recordar erros em salas de tortura. senti-me um lugar. os sonhos transmitiam nevoeiros de palavras embaciadas mas hábeis. desnudava muda o ardor das manhãs. no espelho da casa onde vivia, as sombras tomavam formas de corpos rasgados de mim, enlaçados na sofreguidão do ciúme.
os pássaros com mangonha, debicavam a goiaba pútrida. estendi os dedos e toquei nas aves. sobre a mesa da sala, outras mãos, unidas nas sombras, filhas de estrelas escondidas e sem rostos. mãos que acariciavam o saber místico dos sentires. os dedos dançavam no brilho dos meus olhos, senti-os gélidos, extensos. olhei-os fixamente e saltavam miraculosas cores luminosas. feriu-me o gelo intenso da luz.
por fim, adormeci no sumo do fruto proibido.
entrei no engano das imagens...
l.maltez
14 fevereiro 2007
não pares de me chamar
não pares de me chamar
faz de mim o sul dos teus rios
põe-me céus de vertigem nos dias
ou mares
põe-me mares nos instantes
e acende-me nos olhos
um bonito grito
como se eu fosse a madrugada
ou aquela hora
em que numa pedra branca
me desenhas o mundo
e eu me arrependo
de enlouquecer
leva-me
leva-me pelos telhados mais altos
e ensina-me os horizontes sem fim
as árvores antigas
onde as cores das estações se escondem
onde começam os caminhos
onde acabam as fugas
onde terminam as procuras
e dá-me as cidades
as mais longínquas
as que crescem das casas que sonhaste
e põe-me a teu lado
debruça-me nessas janelas
para nenhuma solidão
gil t. sousa
poemas
2001
13 fevereiro 2007
livro da noite
*
há coisas que não faço voluntariamente:
sonho o que sonho,
sinto o que posso sentir,
e querer é coisa que não quero de modo
nenhum, todas estas coisas aconte-
cem, como se fossem sexo,
e eu o seu corpo, quando as faço.
*
per aage brandt
livro da noite
trad. maria joão reynaud
poetas em mateus
quetzal
2004
11 fevereiro 2007
alejandra pizarnik / caminhos do espelho
I
E sobretudo olhar com inocência. Como se nada se passasse, o que é certo.
II
Mas a ti quero olhar-te até estares longe do meu medo, como um pássaro
no limite afiado da noite.
III
Como uma menina de giz cor-de-rosa num muro muito velho
subitamente esbatida pela chuva.
IV
Como quando se abre uma flor e revela o coração que não tem.
V
Todos os gestos do meu corpo e voz para fazer de mim a oferenda,
o ramo que o vento abandona no umbral.
VI
Cobre a memória da tua cara com a máscara daquela que serás
e afugenta a menina que foste.
VII
A nossa noite dispersou-se com a neblina. É a estação dos alimentos frios.
VIII
E a sede, a minha memória é da sede, eu em baixo, no fundo,
no poço, bebia, recordo.
IX
Cair como um animal ferido no lugar de hipotéticas revelações.
X
Como quem não quer a coisa. Nenhuma coisa. Boca cosida.
Pálpebras cosidas. Esqueci-me. Dentro o vento.
Tudo fechado e o vento dentro.
XI
Sob o negro sol do silêncio douravam-se as palavras.
XII
Mas o silêncio é certo. Por isso escrevo. Estou só e escrevo.
Não, não estou só. Há alguém aqui que treme.
XIII
Ainda que diga sol e lua e estrelas refiro-me a coisas que me acontecem.
E o que desejava eu?
Desejava um silêncio perfeito.
Por isso falo.
XIV
A noite parece um grito de lobo.
XV
Delícia de perder-se na imagem pressentida. Levantei-me do meu cadáver,
fui à procura de quem sou. Peregrina, avancei em direcção àquela
que dorme num país ao vento.
XVI
A minha queda sem fim na minha queda sem fim
onde ninguém me esperava pois ao descobrir quem me esperava
outra não vi senão a mim mesma.
XVII
Algo caía no silêncio. A minha última palavra foi eu
embora me referisse à aurora luminosa.
XVIII
Flores amarelas constelam um círculo de terra azul.
A água treme cheia de vento.
XIX
Deslumbramento do dia, pássaros amarelos na manhã.
Uma mão desata as trevas, arrasta a cabeleira da afogada
que não cessa de passar pelo espelho.
Voltar à memória do corpo, hei-de regressar aos meus ossos de luto,
hei-de compreender o que a minha voz diz.
Alejandra Pizarnik
Extracção da Pedra da Loucura
(1968), tradução de Luciana Leiderfarb
Construções Portuárias #1,
Maio de 2002
10 fevereiro 2007
pictures at an exibition: klavdij sluban
Klavdij Sluban
Turkey
[Around the Black Sea - Winter Journeys (1997-2001)]
2000
Klavdij Sluban
Poland
[Other Shores - The Baltic Sea (2001-2005)]
2004
Klavdij Sluban
Transiberian
[East to East (2004-....)]
2005
Klavdij Sluban
Transiberian
[East to East (2004-....)]
2004
klavdij sluban
06 fevereiro 2007
nos dias nevoentos fecho as janelas
(…)
Nos dias nevoentos fecho as janelas,
acendo a luz forte
e deito-me no tapete.
Leio ou penso.
Ou então fumo,
enquanto as camadas de silêncio se sobrepõem,
e as mais pesadas descem
e as mais leves se tornam pesadas,
até ser impossível destruir o silêncio.
É fascinante,
debaixo de uma luz que brilha tanto.
Lá fora, a terra
- a terra das criaturas que se aproximam uma das outras,
se tocam e falam.
O silêncio é sólido,
iluminado por cima,
aquecido pelos lados.
Durante seis meses fumo e leio,
estendido no tapete.
Depois chega o verão,
e subo à montanha,
e vou para o mar.
Rebento de sol e água,
do odor a terra quente
e agulhas de pinheiro.
Estou tremendamente forte.
(…)
apresentação do rosto
herberto helder
editora ulisseia
1968
04 fevereiro 2007
book zapping #008 inferno
V
SYLVA SYLVARUM
Atingido meio caminho na minha vida, sento-me a descansar e a reflectir. Alcancei tudo o que audaciosamente desejei e sonhei. Carregado de vergonha e honra, alegrias e sofrimento, pergunto: E depois?
Tudo se vai repetindo numa desesperante monotonia, tudo é idêntico. Disseram os Antigos que o Universo já não possui segredos, encontrámos a palavra de todos os enigmas, resolvemos todos os problemas. Com um espectroscópio vimos que o Sol tem falta de oxigénio, não impedindo que arda tão bem como o antimónio no cloro ou o cobre no enxofre.
Desenhámos os canais de Marte que tão desagradavelmente recordam os desenhos de Widmannestetten nos meteoritos e, no entanto, só há bem pouco tempo sabemos ao certo como é o aspecto interior de África e nada conhecemos de Bornéu ou dos oceanos polares.
Uma geração que devia ter tido a coragem de suprimir Deus, demolir o Estado, a Igreja, a sociedade e os costumes, ainda se vergou à ciência em que devia reinar a liberdade mas cuja palavra de ordem foi acreditar na autoridade ou morrer! Ainda não foi erigida qualquer coluna da Bastilha no local de uma antiga Sorbonne. A cruz ainda domina o Panteão e a cúpula o Instituto.
Não há nada a fazer neste mundo. Sinto-me inútil e resolvido a desaparecer.
Já a lâmpada de espírito-de-vinho está acesa debaixo da retorta, já amarelo como ouro está o ferrocianeto de potássio que cheira como o cardo-leiteiro quando quente, destilado do sangue e do ferro, prestes a receber o ácido sulfúrico que oferece a morte quando concentrado e cria a vida por fermentação quando diluído. Desta vez será concentrado para provocar a morte. - Que diferença, afinal? E que soberba contradição!
O cianogénio, o gerador de azul nascido do sal amarelo, começa a desenvolver-se na mais inocente de todas as combinações que o carvão puro faz com o indiferente azoto, uma terrível aliança que não tem igual e forçou a ciência a confessar ignorância perante a natureza deste milagre.
Os vapores saem do recipiente e atingem-me a garganta como a difteria ou os venenos de cadáver não oxigenados. Os músculos do braço começam a paralisar-se e sinto dores agudas na espinal-medula.
Interrompo a operação quando o cheiro a amêndoas amargas se liberta. Sem saber porquê, parece-me que vejo uma amendoeira em flor numa álea de jardim e oiço uma voz de mulher velha que diz ó criança, não acredites nisso!
Não voltei a acreditar, portanto, que o segredo do Universo esteja desvendado e saí, umas vezes só, outras acompanhado, para reflectir na grande desordem onde acabei por descobrir urna coerência infinita.
Este é o livro da grande desordem e coerência infinita.
Eis o meu Universo, como o criei e a mim se revelou:
Se quiseres seguir-me, peregrino, transeunte, começarás a respirar mais livremente. Porque no meu Universo reina a desordem e na desordem é que existe a liberdade.
august strindberg
inferno
trad. aníbal fernandes
& etc
1978
02 fevereiro 2007
há um ruído
há um ruído que se silencia
no escorreito de tuas veias
é o silêncio amurado
que corre desencontrado
em direcção a rápidos
há um ruído que se silencia
forte de centelha
que envenena no teu choro
de menina
e arde como roma
ao nero olhar à pira
há um ruído que emudece
se te beijo o corpo
a alma
há um ruído que transparece
se me transcende
se te transcende
há um ruído que se silencia
só para não gritar
nuno travanca
31 julho 2006
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