09 janeiro 2005

um poema de: Sharon Olds



Teoria dos tremores


Quando dois estratos terrestres se esfregam um no outro
como uma mãe e uma filha
chama-se uma falha.

Há falhas que deslizam suaves uma pela outra
uma polegada por ano, tão-só de raspão
como um homem que passa a mão pelo queixo,
esse homem entre nós,

e há falhas que embicam numa curva durante vinte anos.
A crista dilata-se como a testa sarcástica de um pai
e tudo estaca no mesmo sítio, o homem entre nós.

Quando isso acontecer, haverá graves danos
nas zonas industriais e estâncias de veraneio
quando os fundos estratos
finalmente desencalharem
da terrível pressão do contacto.

A terra estala
e os inocentes submergem gentilmente nela como nadadores.



Sharon Olds
“Satanás Diz”
Trad, Margarida Vale de Gato
Antígona, Lisboa 2004

06 janeiro 2005

um poema de: Josep Maria Llompart


Sou cidadão de um dócil território


Sou cidadão de um dócil território,
obtuso habitante de fulminante aldeia;
vivem em mim inominadas mortes, confusão
de estandartes sombrios, fantasmas de lura.

Irado e louco, pregador enganado,
escrevo o nome ardente com marfim e piche:
tabuleiro de xadrez onde tomam posse
ânsias, afãs, com férreo clamor.

Sou verme condenado, humilhado, atrás
de vaga ardente em mar de limo e lama,
grito na noite, espera desesperada,

e sigo adiante, para além do negro e branco,
alma adentro, arvorando a bandeira:
sobre amarelas dedadas de sangue áspero.



Josep Maria Llompart
“Quinze poetas catalães”
Ed. Limiar, Porto, 1994.

Trad. Egito Gonçalves

05 janeiro 2005

quatro estações #crónicas de inverno

Momento de Inverno

Acordei na manhã escura
O dia não amanheceu...
Vou andar hoje na manhã dura,
Com sujo de negro o céu? Não.
Vou tentar deitar e dormir
Fingir que é noite sem olhar
Vou paralisar as horas e não sair,
Até este dia clarear.
Será que o Sol se mudou?
Trocou o lugar com a lua?
Olhei da janela a manhã escura,
Está um dia tão triste cinzento,
Está um dia de cinza pura.
Afinal é de Inverno este momento...


Artur Rebelo

02 janeiro 2005

quatro estações #crónicas de inverno

frequente inverno mensurável


uma mulher equivocada media a palmo o inverno. meses sobre meses redondos lhe surgiam como o burburinho lúcido da viagem. fazia aqueles estalidos frágeis como se lhe coubesse no dedo a rotação do planeta devastado o ruído da morte da ausência. empilhava as mãos alternadamente em tom de súbita precipitação e depois sorria. sorria como se estivesse a sentir-nos alheios distantes cheios dela preenchidos até à raiz do cabelo quando ele caía. e agora a vida corria a todo o gás a saraiva atingia a máxima velocidade a mulher escondida num manto branco e o baton escarlate na seiva dos homens do inverno ao largo diluia-se. e a sinfonia da sua metamorfose do estalido dos seus dedos da morte equivocada regurgitava. as margens as correntes cavalgavam a ciranda até perder de vista a vista até perder o norte ao sul. este lugar de névoa o aparecimento do pequeno raio a têmpora a salgar durante a viagem petrificara as águas o odor limítrofe do frio as frieiras as gretas das mãos que a palmo encontravam o inverno. a marca deste inverno deste imenso manto desesperava nos reflexos breves das janelas inclusas. a reclusão desta mulher permitia-lhe dedilhar o medo lembrar profundamente a raiz do infinito. há um mistério de pureza na crença deste equívoco jaz inerte o almiscarado do inverno por esses dedos. apetece-me uma laranja de inverno um tomo dedilhado por uma mulher equivocada. apetece-lhe o inverno e a mim intuído o tempo renascida a manhã o inverno todo.



nuno travanca


30 dezembro 2004

quatro estações #crónicas de inverno

a imagem do inverno


cruzei-me contigo ontem no denso granizo da noite, a dureza do dia transformou secamente o rosto gasto dos silêncios das sombras. lembra-me o teu nome invernoso, negro e pesado, o vicio onde transformei as mãos amarelecidas e secas de tanto fomentar. não grites, já não te ouço, a tua voz é um eco delicioso eterno no silêncio das noites misturadas, a solidão é cega e fria.

falta-me o túnel do sono invencível. entras na companhia do vento inconcusso, um vento indiferente. os dias chegam ausentes, agasalhados nas asas de nuvens cinzentas, desarrumadas de imagens, ninguém corrompeu o sentimento do teu tempo e tu voltas sempre no mesmo dia à mesma hora.

guardo a imagem do sonho turbulento. o sonho que parece ser real, o ranger das portadas de madeira, o fragor dos vidros, onde escuto o crescer da maré, dobrado no arrepio ameaçador do inverno. a insistência em ficares envolvido nos tons cinzentos de olhar ameaçador, afogado nas águas estagnadas. guardo a solidão dos dias que trazes, sem tons, indecisos e repisados.

empurra-me deste frio que desanima e arrefece o corpo, deste inverno que me cansa.



l. maltez

27 dezembro 2004

quatro estações #crónicas de inverno

será esse o teu inverno
nada te levará tão longe, como os dias cegos de outrora. janelas que se perdiam na bruma, olhos que pousavam no impossível do tempo, movimento perpétuo dos lábios com marés de palavras esculpidas no coração.

foi tudo nesse horizonte afogado. a mesa vazia, o piano calado, o pássaro imóvel. virás por muitos anos, como a espuma dos sonhos perdidos. e a raiva será cantada no paredão da memória até ficarem macias as pedras do caminho.
será esse o teu inverno.
gil t. sousa

20 dezembro 2004

há coisas em que não vale a pena ser original...

Brinquedos



Nós, que somos espantosamente grandes,
que já não deslizámos pelo gelo desde as duas guerras,
Ou se o fizemos alguma vez, sem querer
Já nos fracturámos um ano,
Um dos nossos importantes e duros anos
De gesso...
Oh, nós, os espantosamente grandes
Sentimos por vezes
Que nos faltam os brinquedos.

Temos tudo o que necessitamos,
Mas faltam-nos os brinquedos.
Temos saudades do optimismo
Do coração de algodão das bonecas
E da nossa nau
Com três fieiras de velas,
Que tanto sulcava as águas
Como a terra firme.

Gostaríamos de montar um cavalo de madeira
E que o cavalo relinchasse ao mesmo tempo que a madeira
E que nós lhe disséssemos: 'Leva-nos a algum sítio
Não importa qual,
Porque em qualquer sítio da vida
Propomo-nos levar a cabo
Formidáveis façanhas'.

Oh, quanta falta, por vezes, nos fazem os brinquedos!
Mas nem sequer podemos estar tristes
Por essa razão,
E chorar com toda a alma,
Agarrando a perna da cadeira
Porque somos tão adultos
Que não há ninguém mais velho que nós
Para nos acariciar.




Marin Sorescu,
de "Simetria"
Tradução colectiva
Poetas em Mateus, Quetzal




15 dezembro 2004

um poema de: Pere Gimferrer




Associo a chuva aos mortos


Associo a chuva aos mortos. Vem muito lenta,
com os nardos e os tubérculos, com o frio dos líros
e os grumos pastosos da terra lavrada,
com as nervuras das folhas, as sombras,
com o voo da codorniz e o grito do mocho.
Pela terra dentro, pelo tempo dentro, no coração
do barro, quem sabe deles? Esperam porque é esse
o ciclo da fecundidade. O machado, enterrado,
brilha com a mais viva prata, com um fogo mineral.
Essa é a lei. A chuva lava os sulcos
de rodas na terra, de tantos carros que passaram,
e passadas de humanos e cavalos. Um bafo cinza e líquido,
uma claridade afogada, como aço escuro e opaco,
sobre a terra empapada. Não ouves estas vozes,
os risos das raparigas num meio-dia de Agosto?
Não vês esta blusa vermelha? Como a raiz,
a mão ainda escava na terra húmida, dedos
como garfos, secos, de árida pele
como papel de embrulho. Não, a chuva não chega
a este reino. Cai muito lentamente, conhece
com profunda piedade o tronco da oliveira
e brune a angulosa aspereza da pedra,
e, na laguna, desbrava as águas pantanosas,
coléricas de fumo, e humedece o covil
da raposa, a lura do coelho e o ninho do rouxinol.
Mas não chega, sob a lama empapada,
sob o terrunho de humildade porosa,
de paciência e de luz, ao mais escuro reino,
ao país de rancor e secura dos mortos,
que ainda alongam mãos hostis, ferruginosas,
dentes carcomidos e sexos erectos e convulsos,
mumificados, e com avidez de unhas e de pó
rasgam a pele. Querem possuir-nos
ou apenas pedem para voltar a ser? Pedem
crispação, tremura e sofrimento?
Pedem acaso a incerteza
diária, sentirem que o desejo os sacode,
a pancada da pânico, a fúria
do domínio, o receio da derrota?
Acaso se atrevem a querer sobreviver?
Como vive a raiz, como vive o tubérculo, como vive
a erva, nunca poderão viver os homens
conciliados com um destino? Não aceitarão o cielo
do tempo fecundo e o do regresso à terra?
Por tanta dor que já passou,
pelo instantâneo ardor de tantos corpos,
por tudo o que esta luz de chuva nos recorda
e este sabor da terra recém-molhada,
pela vibração do ar quando a chuva
parou há instantes e um pássaro ergue o voo
num silêncio claro, e por esta cor
do pássaro, indeciso no azul, que gorgeia
quando o céu é mais nítido, pelo sofrer
que recordamos e pelos amores de antes,
e pela humilhada inocência,
e pelos desejos nunca confessados,
por tudo isso: nunca teremos uma palavra?
A chuva entra nos palheiros das velhas casas de lavoura,
a madeira apodrece, abre sulcos de água na terra arável
e nutre os narcisos. É cor de cinza
e, nos vidros das janelas tem a cor das memórias.
Há apenas um tempo. O tempo do homem
e o tempo do animal e da planta
e o tempo da pedra são um só. Este falcão
que agora, fulminante, cai do alto do céu,
sabe onde vai, como a pedra que no fundo da cisterna
vê o seu destino num relâmpago de águas.
Subitamente o vêem, e os anula,
e os possui, e chegam ao resplendor: atingem
a fulguração do ser. Chegam assim
a ser o que são. Fiéis, silenciosos,
como o chaparral queimado pelo sol, dizem que sim,
sabem que é sim, que esta imagem
— o brilho de uma água morta, ou, ao cair da tarde,
um lugar de sombras no coração do outeiro —
é o que são, chama-os, para morrer ali,
e esta morte será um ter vivido,
não uma interrupção, nem sequer uma espera.
Dizem que sim, sentindo que não é para lamentar
nada, que nada têm a esperar, que nada se mutila
porque já tudo existia antes: Viviam
sempre o tempo do lugar de sombras
e o tempo da água morta no fundo do poço.
Quando passamos, de noite, junto ao rumor
que o vento ergue na folhagem dos choupos,
ou, na iluminada glória do meio-dia solar,
recolhemos, num cacho de uvas, a claridade,
ou semicerramos os postigos — o sol
é um martelo nas ruas desertas — e um corpo
nos fornece um alento cálido de limões,
ou, quando, pela mata, vemos uma pedra vermelha
ou ouvimos um estalar de ramos e de águas
sabemos que tudo será esse único instante?
Acaso esperamos algo mais? Sem memória,
desapossados, o tempo já não nos ofusca
com um espelho sob o sol,
já não nos fere os olhos com luzes de feldspato.
Eu sou o meu ontem e sinto a eminência
do futuro que pulsa em cada gladíolo.
Não nos espia atrás do instante: é o instante.
Não tem o escuro rosto do nosso receio
nem deverá ser-lhe pedida piedade. Não sentíamos,
desde sempre, que o trazíamos connosco? Desejo,
tu, negro escravo com máscara de príncipe,
e tu, princesa branca e cega, paixão
que ris vestida com a claridade dos lírios,
não sentis que o instante é o vosso tempo?
Nada ganhamos, nada perdemos. Os mortos
vivem o tempo eterno e nocturno da névoa,
o instante que é todos os tempos. O tempo
do desejo e da paixão, o tempo de recordar
e o tempo de sonhar. Os vapores da névoa
e uma fumarada como a da lenha verde
informam onde estão os nossos sonhos: longe,
como os relâmpagos numa noite de estio.


Pere Gimferrer
“Quinze poetas catalães”
Ed. Limiar, Porto, 1994
Trad. Egito Gonçalves



10 dezembro 2004

quatro estações #crónicas de outono

hairy building



a casa


e a casa fecha-se
como uma flor que se gasta

agora
as palavras sobem-na
como raízes
devoradoras
sobre os olhos
entaipados

há esse amor
um vermelho muito alto
tão alto
e a morrer, a morrer
como sangue ao relento
ou livros abandonados
no chão da memória

no desejo

e há um adeus muito triste
um céu antigo
que tudo cobre sem gritar

ternura
é a ternura meu amor
é esta fogueira medonha que se apaga
no coração silencioso
do tempo frio

a casa, amor
o punho fechado do destino
roendo
o que os olhos largaram na rua
o que as mãos pousaram
no coração
para sempre, para sempre, para sempre

gil t sousa

23 novembro 2004

quatro estações #crónicas de outono



Escrever o Outono



Abraçar o cansaço
dos ramos que já não sabem
tecer a própria sombra.

Estancar o olhar,
vê-lo envelhecer como um rio.

Assistir à antiga nudez das árvores
e pensar as folhas caídas
como memórias dolorosas.

Escrever o Outono
e sujar os dedos na sua melancolia.




Diogo M. Silva

14 novembro 2004

quatro estações #crónicas de outono




Livros que deitam folhas


A um livro, por vezes, crescem-lhe raízes para dentro do próprio leitor. É, então, possível vê-lo assentar a estacaria minuciosa, encenar-se, senão mesmo deitar lume. Dê-se-lhe voltas, e não se lhe compreende a fonte, a subtil força que o anima, nos perturba.
Por vezes, há ocasionais, discretos versos suspensos da página, que maturam sombriamente por fora, que se anicham entre os parietais. Como que redivivos. Quando falamos de livros, não chegamos, sequer a falar de livros. Falamos dos versos que se pegam ao corpo – que ofuscam. Por que há versos que trazemos ignorados como um nome. Outros: já lá estão, desde sempre, ao fundo, à nossa espera.

Eu amo assim: com as mãos, os intestinos. Onde ver deita folhas. Luís Miguel Nava.

J. P. Francisco

06 novembro 2004

As coisas e a cópia das coisas



A dualidade do belo e do útil está presente em toda a filosofia grega desde Homero a Platão. Enquanto o homem pré-histórico marcava a sua arte por uma forte intenção social e pela utilidade quotidiana, os gregos libertando-se da necessidade do mágico e do sobrenatural pelas ideias, equacionam essa dualidade por uma prática artística e filosófica.
Hesíoclo começou por dar uma interpretação à beleza que, segundo ele, tinha a ver com as cores, as formas, a expressão e até mesmo a beleza moral, adaptando pela primeira vez o belo a uma manifestação humana. Para ele, a diferença entre o belo e o bem é que o belo é imediato, enquanto que o bem é mediato. Isto é: o belo permite uma sensibilidade de gozo, o bem é apenas uma fruição do prático.
Este conceito evoluiu em Homero para uma interrogação dialéctica entre um e outro conceito. São as coisas belas forçosamente úteis e haverá sempre beleza no que é útil?
Homero diz que o que é útil pode ser belo e que o belo pode ser útil, mas uma coisa não implica a outra. De facto, a beleza pode ser utilitária mas não é essa utilidade que lhe confere a categoria de belo.
A metafísica, no entanto, veio trazer ao pensamento grego uma nova concepção. O belo não é o formal, o concebido na materialidade das coisas. O belo passa a ter e a ser uma existência nos próprios conceitos e nas ideias. Aliás, Sócrates e Platão, opõem à beleza artística a beleza da natureza. E esta está acima daquela porque nenhuma realização artística pode criar vida, enquanto a natureza é a própria vida, ela mesma na sua criação, incomparável a qualquer criação humana.
Platão formula na sua filosofia um novo conceito de belo. Institui o mundo como a criação dum modelo e dum paradigma onde, na sua essência, o belo é autónomo tanto quanto o seu fim.
Já a lógica aristotélica intrinsecamente naturalista, atribui à realidade uma certa imperfeição. A realidade é desajeitada e em si mesma desprezível, porque tudo está nas ideias. A realidade, como tudo afinal, só é apreendida quando se conhece a Ideia Final. O bem e o belo têm assim um valor cósmico.
É destes pensamentos que vai nascer pela primeira vez a arte como deleite. Abandonada ao tempo a necessidade da magia e do sobrenatural, a arte reflecte e traduz o Ideal e exerce na realidade uma influência modelar. Longe de preceitos e de práticas, a arte afirma-se sem um objectivo prático. Ela já não é um meio para atingir um fim, mas um fim em si mesma.
O artista criará a perfeição e a beleza e é a partir daí que o real será interpretado e julgado.

Ortega y Gasset (“Estética en el tranvia”) opõe-se completamente a esta unicidade do que é belo e do seu modelo absoluto sobre a realidade.
Para ele a perfeição é o implícito em cada parcela de real. Não é a ideia cósmica que temos do mundo que nos leva à insatisfação estética com cada uma das suas parcelas. Tudo está em mim, idealizado e com um apuramento perfeito. Mas esse paradigma que exerço sobre tudo o que me chega aos sentidos, só se forma quando sinto e faz parte não inteiramente de mim, mas da coisa que é sentida por mim.
Sou, portanto, não inteiramente juiz da beleza e da fealdade dos outros ou das coisas. O mundo não é perfeito por eu aplicar o meu modelo de perfeição. A perfeição ou a imperfeição daquilo que observo é intrínseca à minha observação e não à minha qualidade e papel de observador.
Na sua aventura no eléctrico, Ortega exercita muito bem este seu conceito. Há traços no mundo, como na sua “Guapa”, que se desenham por si numa projecção de beleza no que se realiza como feio.
Neste exercício, o que está em causa é talvez a nossa petulância de juízes ou de detentores de modelos que se dilaceram ou erigem ideias e concretizações do belo, justo e perfeito.
Afinal de contas, o desconhecido não é inteiramente desconhecido e a descoberta dos filósofos e dos estetas gregos, vista a esta luz, é um grande feito, não das coisas belas que os artistas expressaram, mas uma expressão definitiva do que por si só era já beleza, ainda que diáfana, ainda que soprada pela força imensa da genialidade.
E, como a cor nos impressionistas é definitiva mais que o desenho, delimitando as formas e as composições, também o belo é uma emanação das próprias coisas, que valem pelo que evocam e traduzem. A promessa de beleza não está em mim, mas vem — invisível — de quem, ou das coisas, que eu pretendo belas.
Assim, nada é mais previsível do que ser o artista não aquele que cria, mas o próprio objecto criado.

A Estética actual procura no quotidiano e no discurso das Artes, a determinação dos seus conceitos filosóficos, assumindo intencionalmente o problema da sua inserção no mundo e da sua universalidade.
No mundo moderno é precisamente essa pretensão de universalidade que nos faz surgir o intemporal do belo como princípio estético quer objectivo, quer subjectivo.
De facto, a morte da beleza nos tempos modernos, não é mais que o resultado da crise histórica de um princípio estético uniforme.
Essa crise inscreve-se na fragmentação cultural do nosso mundo, directamente relacionada com o carácter culturalmente diverso dos modos de vida humanos.
A confrontação com outras situações históricas e com outras culturas humanas, situa em primeiro plano a pluralidade e diversidade da beleza, a existência irrefutável dessa multiplicidade de princípios estéticos não homogéneos. Não é só a diversidade de gostos, do desajuste das apreciações estéticas subjectivas, mas antes a estreiteza e diversidade das representações humanas: individuais, sociais e linguísticas da beleza. “A beleza não é uma realidade substantiva, senão um horizonte de conceitos e valores sensivelmente representado, o produto dum conjunto de relações”.
Significativamente patentes na sociedade actual, os modos de representação multiplicaram-se profusamente, fruto também das tecnologias inovadoras e da tentativa de pluralizar uma certa estética veiculada pelos meios massivos de comunicação. Pela imagem, pelo som ou pela escrita, assiste-se desde o início do século a uma difusão planetária de valores ideológicos e estéticos, até aí cativos de uma élite. A arte sai dos museus e dos palácios e entra-nos em casa, nas ruas, no quotidiano.
É assim que a fotografia se vem afirmar como arte. Em simultâneo com o desenvolvimento técnico, assiste-se a uma concepção teórica que elabora uma estética própria da fotografia e em que se apoia a generalidade dos fotógrafos que fazem já parte da sua história.
A História parece ter esperado pelos fotógrafos para se precipitar duma vez por todas no nosso século.
Desde as guerras que refizeram a geografia política e económica, até ás ciências que mudaram o pensamento e o quotidiano, tudo se desenrolou perante as objectivas. E embora quase tudo viesse do pensamento do século XIX (como a própria fotografia) toda a acção se transpôs e realizou a partir de 1900.
Nomes como Mathew B.Brady, John Thomson, Lewis Hine, Eugene Smith, Robert Capa ou Sebastião Salgado, ficarão ligados para sempre aos acontecimentos mais marcantes do nosso século. Eles foram os primeiros a resgatar do efémero a verdade dum acontecimento e, por outro lado, deram à fotografia a sua dimensão social lançando as bases do que viria a chamar-se fotojornalismo.
O exercício do fotorepórter é uma dialéctica entre o objectivo e o subjectivo, um encontro da verdade com a interpretação do fotógrafo. Nessa dialéctica residem em simultâneo a crónica do tempo, a obra de arte e a filosofia.
Tal como os pintores da Idade Média, o fotorepórter tem como missão pregar o mal e exorcizá-lo. Seja a guerra ou a moral, a justiça ou o despotismo, o que os torna diferentes é o quanto de mentira se pode colocar numa pintura e o quanto de verdade se pode retirar, apesar de tudo, a uma fotografia.
Este jogo entre a verdade e a mentira está na origem da profusão iconográfica do nosso tempo. Os mitos contemporâneos hão-de assentar sempre num obscuro poder de auto-multiplicação da sua própria imagem que os mass media se encarregarão de difundir. Longe dos modelos clássicos, o veículo desta nova mitologia tanto pode ser uma lata de feijão, como a loura mais vulgar. No entanto, é definitivo que todos nos inclinaremos na direcção daquilo que assim for deificado. Andy Warhol demonstrou-o até à saciedade.
Eis então o homem no controlo total da realidade, moldando-a ou construindo-a segundo a sua própria medida.
A mentira das imagens tem no nosso tempo a força do desejo; as imagens são as “asas do desejo”. Elas asseguram-nos a passagem para as cidades mais cobiçadas, as mesas mais fartas, os corpos mais invejados.
No fundo, talvez ainda acreditemos que entre a cópia das coisas e as próprias coisas haja uma relação mágica e que a posse de uma influencia a outra.



gil t. sousa

01 novembro 2004

The Sad Punk

Estava muito frio. Juntámo-nos no Pinguim para mais um recital. Levávamos livros e maços de papel com textos em txt com os nossos poemas preferidos. Lembro-me de ficar comovido por ver que a maioria eram miúdos muito jovens cheios de vida e de irreverência, empunhando poetas como quem empunha armas. Lembro-me de sentir um orgulho enorme no meu país e de sentir que nada pode estar perdido, enquanto houver pessoas assim a carregar os seus sonhos pelas cidades e pelo mundo.

Foi num desses eventos que me disseram: aquele é o The_Sad_Punk. Nunca cheguei a falar com ele, mas habituei-me a ver o seu nick no canto da tela do computador. Era um nick bonito, mas nunca me passou pela cabeça que aquele “Sad” fosse tão real.

Pois é Alexandre, hoje só me apeteceu ler Mário-Henrique Leiria, pois sem conhecer nada de ti, sei que o apreciavas muito e se eras capaz de o apreciar tanto só podias ser um tipo com uma alma maior do que tu próprio, só podias ser um poeta, pá.

Por isso, espero que agora te “deixem sentar numa nuvem, a mais alta e que dês pontapés na lua” todos os que te apetecer, como se fosse enfim a tua vida.