30 novembro 2021

walt whitman / por caminhos não percorridos

  
Por caminhos não percorridos,
Pela vegetação das margens das lagunas
Fugindo da ostensiva vida,
De todas as normas já promulgadas, dos prazeres, benefícios,
          convenções,
Tudo isso com que, demasiado tempo, alimentei a minha
          alma,
Convencido enfim de que as normas ainda não promulgadas,
          convencido de que a minha alma,
De que a alma do homem por quem falo descobre a alegria nos
          companheiros,
Aqui, a sós, longe do tumulto do mundo,
Em harmonia com as aromáticas línguas que me falam,
Sem envergonhar-me mais (pois neste lugar distante, como em
          nenhum outro posso abandonar-me,)
Entregue à vida que não se revela ainda que tudo contenha,
Decido-me hoje a cantar apenas os cantos de viril afecto,
Projectando-os ao longo da plena vida,
Legando, desde já, as formas de másculo amor,
Pela tarde deste delicioso Setembro dos meus quarenta e um
          anos,
Dirijo-me a todos os homens que são ou foram jovens,
Conto-lhes o segredo das minhas noites e dos meus dias,
Celebro a necessidade de companheiros.
 
 
 
walt whitman
cálamo
trad. de José agostinho baptista
assírio & alvim
1999





29 novembro 2021

saint-john perse / ventos

 
 
IV - 7
 
     Depois de a violência ter renovado o leito dos homens sobre
a terra,
     Uma velhíssima árvore, desprovida de folhas, retomou o fio
das suas máximas…
     E uma outra árvore de alta estirpe subia já as grandes Índias
subterrâneas,
     Com a sua folha magnética e o seu carregamento de frutos
novos.
 
 
 
saint-john perse
habitarei o meu nome
antologia
tradução de joão moita
assírio & alvim
2016




28 novembro 2021

josé carlos ary dos santos / auto-retrato

 
 
 
Poeta     é certo     mas de cetineta
fulgurante de mais para alguns olhos
bom artesão na arte da proveta
narciso de lombardas e repolhos.
 
Cozido à portuguesa     mais as carnes
suculentas da auto-importância
com toicinho e talento     ambas as partes
do meu caldo entornado na infância.
 
Nos olhos     uma folha de hortelã
que é verde     como a esperança que amanhã
amanheça de vez a desventura.
 
Poeta de combate     disparate
palavrão de machão no escaparate
porém     morrendo aos poucos de ternura.
 
 
 
ary dos santos
fotos-grafias
1971




27 novembro 2021

mário-henrique leiria / cantar de amigo

 
 
Morros distantes
rios escuros
um homem só
por entre muros
 
Lua remota
terra silente
um homem só
impaciente
 
Cornos sangrentos
cavalo d’ água
um homem só
e sua mágoa
 
O sol que nasce
vem a manhã
um homem só
com seu afã
 
Pleno dia
caminhos duros
todos os homens
já não há muros
 
 
 
mário-henrique leiria
obras completas
poesia
e-primatur
2018




 

26 novembro 2021

adília lopes / no more tears




 
Quantas vezes me fechei para chorar
na casa de banho da casa da minha avó
lavava os olhos com shampoo
e chorava
chorava por causa do shampoo
depois acabaram os shampoos
que faziam arder os olhos
no more tears disse Johnson & Johnson
as mães são filhas das filhas
as filhas são mães das mães
uma mãe lava a cabeça da outra
e todas têm cabelos de crianças loiras
para chorar não podemos usar mais shampoo
e eu gostava de chorar a fio
e chorava
sem um desgosto sem uma dor sem um lenço
sem uma lágrima
fechada à chave na casa de banho
da casa da minha avó
onde além de mim só estava eu
também me fechava no guarda-vestidos grande
mas um guarda-vestidos não se pode fechar por dentro
nunca ninguém viu um vestido a chorar
 
 
 
adília lopes
dobra
poesia reunida
II. as meninas exemplares
assírio & alvim
2021





 

25 novembro 2021

fernando pinto do amaral / escotomas

 
 
4.
A mão que embala o mundo traz ao colo
a música de frases tenebrosas
a arder na minha boca. A língua fala
de tudo o que não sei: palavras rasas
entre lábios sem alma, que revelam
a natureza morta numa casa
onde a luz fica acesa em cada sala
até de madrugada. Tudo é belo
quando a vida mal vibra e mal nos pesa,
quando o silêncio abre as suas asas
sob o divino hálito que engole
o aroma das rosas.
 
 

fernando pinto do amaral
às cegas
relógio de água
1997




24 novembro 2021

al berto / eras novo ainda

 
 
1
 
pelo lado norte vem o cortante vento do mar
o dia acaba de se agasalhar no musgo das acácias
fico imóvel
atento ao estalar nocturno das madeiras
 
a roupa foi deixada em cima da cadeira
cobre-se de penumbras… a casa treme
com a explosão da pedreira
 
viro-me para a terra alegre dos sonhos
invento uma lua um inverno só para mim
 
donde chegarão aqueles barcos de sobressalto?
 
um dedo arde na poeira das vidraças
uma planta corrói o silêncio dos corredores
debruço-me para a velha mesa encerada
uma aranha arrasta-se sobre a folha de papel
espeto-lhe o aparo… escrevo
a crueldade das palavras que te cantam
 
tento acender outras imagens devoradas pelo tempo
mas estou confuso e definitivamente só
 
de que lado da casa rebentará o novo dia?
em que arrecadação escura sossegará o amor?
 
resta-me escancarar a porta da casa
e sorrir a todos os desconhecidos
 

 
al berto
eras novo ainda 1981/1982
o medo
assírio & alvim
1997






 

23 novembro 2021

jacques roubaud / meditação de 8/5/85

 
 
 
Todos os fins de tarde
 
O vector de luz atravessa
 
A mesma vidraça
 
Afasta-se
 
E a noite
 
Leva-o
 
Até onde te escondes
 
Invisível
 
Na espessura
 
 
 
 
jacques roubaud
alguma coisa negro
trad. josé mário silva
tinta-da-china
2016





 

22 novembro 2021

carlos poças falcão / sinais

 
 
Porque as palavras servem para um mercado de coisas claras, mas para as questões cegas são elas o próprio selo da cegueira. Que fazer com a experiência da incerteza? Ela é a justa provação – e entretanto os sinais tombam como poeira sobre os campos.
 
 


carlos poças falcão
arte nenhuma
poesia 1987-2012
opera omnia
2012






21 novembro 2021

maria amélia neto / meditação sobre sísifo

 
 
Vi-o de novo,
Pela alquimia ancestral da solidão.
De novo se afundou no tempo
A pergunta desde sempre murmurada,
E o fogo crepitou suavemente
E queimou, uma a uma,
As horas da noite.
 
Trazemos na retina a eternidade.
Da aurora
Conhecemos os sinos,
Os planetas adormecidos,
O rio coberto de junquilhos mortos.
Do resto do tempo
Conhecemos o orgulho,
A lucidez desumana,
A tela por pintar,
E o ruído subtil do medo.
 
Aprenderemos a crescer ao lado das roseiras?
A saciar de sol a demência do vazio?
A destruir as velhas raízes?
 
Fluido, fluido é o cerco da solidão.
 
 

maria amélia neto
equinócio
1962

 




20 novembro 2021

antónio gedeão / lágrima de preta

 
 
Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.
 
Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.
 
Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.
 
Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.
 
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:
 
nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.
 
 
 
antónio gedeão
máquina de fogo
1961




 

19 novembro 2021

paavo haavikko / agora as noites são longas

 



 

 
Agora as noites são longas,
          um breve tempo,
                    quando a penumbra cai sobre a pele,
quando o alento de alguém se confunde com o
                                         cabelo de alguém.
 
 
 
        Puut, kaikki heidän vibreytensä, 1955
 
 


 
paavo haavikko
o mundo adormecido espera impaciente
antologia de poesia finlandesa
trad. amadeu baptista
contracapa
2021

 






18 novembro 2021

gastão cruz / assim nos despedimos

 
 
Assim nos despedimos do violento
som gasto e demorado com que as armas
se despedem agora do outono
assim começa e cessa
 
a solidão na zona destruída
pelos seus acidentes pela demora
da palidez que estende
sobre os dias e noites o desgaste
 
da luz e das palavras
assim nos despedimos das feridas
brevíssimas do tempo sobre o corpo
 
assim nos despedimos do violento
som breve com que as armas de despedem
agora do outono
 
 
 
gastão cruz
as aves
1969





17 novembro 2021

rené magritte / o homem do rosto sem caminho

 
 
 
     Toda a gente se parece com ele mas os seus olhos estão atentos à cidade e ao campo também. É dono das recordações, pormenoriza as aparências. O seu sonho é infalível.
 
 
 
 
rené magritte
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021







16 novembro 2021

fiama hasse pais brandão / da fala

 
 
 
Quando ainda não sabia as palavras possíveis
para passar entre voz e silêncio dos outros,
tal como entre troncos das florestas mudas,
eu falava com as nuvens que vinham
sobre nós a cantar, de trémulas asas,
e aspergiam os aromas do extâse.
 
 

fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002








15 novembro 2021

r. lino / palavras do imperador hadriano no princípio do sono

 
 
cortados os olhos em sono aberto
pelas pálpebras se me ferem os dias
e o teu corpo vejo
desfeito entre lençóis:
sombras de dentes
cravados pelos ombros, sinais do tempo
no rebordo das manhãs.
a mim, no poder, me usaste tu
mais do que a ti, no amor, eu usei.
caminhos e túnicas
por iguais desígnios eu tive
e sobre uns e sobre outras
me alonguei
ferindo de atenção pelos olhos
o corpo como conquista.
antinöé é – no entanto –
teu eco e não minha vontade
de lutar contra a morte.
enquanto percorro esta alegria
de saber que, morto tu,
em mim a vida sinto
para te saudar,
ferem-se-me os dias pelas pálpebras
em sono aberto…
 
 
 
r. lino
livro de lentidão
políptico
companhia das ilhas
2016





 

14 novembro 2021

irene lisboa / outono, um dia

 
 
Cidade, velha cidade,
a ti regresso!
 
Outono, voltaste,
mas nada me trazes,
nem gostos,
nem lembranças,
nem saudades…
 
Nunca tive saudade!
A minha pena,
dor de não ter,
ou de lembrar,
foi sempre rápida e amarga,
nunca dolente,
como é a saudade…
Engano-me?
 
Enfim, outono,
Voltaste! sentimos-te.
Amável, caricioso tempo,
o mais suave do ano!
E eu voltei, também,
aqui estou…
como um molusco
agarrado à concha,
adaptado,
calmo,
indiferente.
 
Passou tempo…
dias, meses,
que me não remoçaram
nem agitaram.
Durante eles vi o mar.
 
O mar é formoso.
Mais formoso
que as casas e as ruas…
Quanto as estranho!
Noto.
Escuras, desiguais!
¿Mas que me importam as casas
e até o mar?
Tudo são quadros
e solidão.
 
É grandioso o mar.
Belo, mas confrangedor…
violento, monótono.
 
Mas que estranheza há em mim,
que há em mim?
 
Há bocado,
daquela janela,
vi uma gaivota.
Tudo me parecia incaracterístico.
Mas a gaivota
lembrou-me o mar…
 
Ó, estar deitada na areia,
e ver passar por cima,
longe,
numa onda de sol,
as gaivotas brancas,
de asas abertas,
refulgentes,
avançando sempre
e parecendo imóveis…
é ver uma coisa ideal,
quase irreal.
 
As gaivotas…
 
Nada! Nem elas,
nem o sol,
nem a névoa,
nem as rochas,
nem a água
têm vida como nós,
nos interessam!
Entristecem-nos…
 

 
irene lisboa
um dia e outro dia…
poesia I
obras de irene lisboa  I
editorial presença
1991






 

13 novembro 2021

fátima maldonado / signo dos peixes

 
 
4
Ontem junto do mar
o fumo devolveu-me a tua sensação.
Caída ali ao pé a gaivota esperava
que uma vaga a levasse
se quiseres.
De qual das mortes teria sucumbido?
Um tiro atravessando o luminoso céu
tê-la-ia prostrado
ou da traição teria reavido
o justo pagamento?
No marfim do bico o sangue destoava
como um dente arrancado nos fica no dentista.
As pedras que apanhara enquanto caminhava
formando à minha volta um túmulo sumário
lembravam-me que a morte
já quase não se afasta.
Acenando aos navios vislumbram-se as sereias
sustendo os maçaricos com que abrem sem gazuas
os cofres submersos,
entesourando assim moedas gangrenadas
de perfis corroídos como talheres inúteis
de prata causticada por noiva que morreu
sem perpassar na loiça a mão suja de Vim.
Antes tínhamos dito
Vendo os pequenos negros de seca carapinha
(maciços de coral espinhando na cabeça):
«Parecem violentos.»
Andando às voltas de bicicleta
nos rápidos passeios que pedem por empréstimo
trazem dependurados no ferro dos pedais
gritos de hienas velhas.
E rindo-se na virilha
assoma a palmatória que misturou as linhas
na palma de seus pais
encostados que foram à parede do posto.
 
 
fátima maldonado
sem rasto
signo dos peixes
averno
2021

 




12 novembro 2021

antónio franco alexandre / duende

 
 
2.
Olha-me agora, que me tens vencido
e sou nas tuas mãos pobre veludo,
de pele morta e rôta mal vestido
e, de sábio que sou, já tartamudo.
Fala-me agora, que não tenho boca
e sou na tua pele mero ouvido,
diz-me palavras soltas sem sentido
ou pede-me por graça o consentido.
Olha-me só para que veja como
tão claro e fundo olhar me tem mantido
na solidão sem nome deste pranto;
ou escreve em mim com hálito de lume
para que seja eu a enrodilhada chama
que se esquece de si e sonha o fumo.
 
 
antónio franco alexandre
duende
assírio & alvim
2002

 




11 novembro 2021

luís miguel nava / o céu agrada-me pensar

 
 
O céu agrada-me pensar que é a memória de dois ou três amigos. Aqueles contra cujos lábios a partir de dentro empurraremos docemente os nossos nomes e que, quando levam comida à boca, sabem que é a nós que estão a alimentar. São dois ou três amigos, aqueles só em cujos corações enfiamos achas, o clarão atinge-lhes os olhos, pensarão: hoje a memória é como se a trouxéssemos em braços. Não sei se quando o mar lhes vier ao espírito o ouviremos rebentar, o certo é que por ele às vezes sobem marés. Há ondas que se vê terem por ele passado antes de contra os nossos corpos deflagrarem.
 

 
luís miguel nava
rebentação
poesia
assírio & alvim
2020







 

10 novembro 2021

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

 
 
29
 
Tu és a esperança, a madrugada.
Nasceste nas tardes de setembro,
quando a luz é perfeita e mais doirada,
e há uma fonte crescendo no silêncio
da boca mais sombria e mais fechada.
 
Para ti criei palavras sem sentido,
inventei brumas, lagos densos,
e deixei no ar braços suspensos
ao encontro da luz que anda contigo.
 
Tu és a esperança onde deponho
meus versos que não podem ser mais nada.
Esperança minha, onde meus olhos bebem,
Fundo, como quem bebe a madrugada.
 
 
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos (1945-1948)
poesia
editorial inova
1971

 




09 novembro 2021

amalia bautista / a mulher de lot




 
Ainda ninguém nos esclareceu
se a mulher de Lot foi transformada
em estátua de sal como castigo
pela curiosidade irreprimível
e pela desobediência apenas,
ou se ela se voltou pois no meio
de todo aquele incêndio pavoroso
ardia o coração que mais amava.
 
 
 
amalia bautista
trevo
tradução de inês dias
averno
2021




 


 

08 novembro 2021

jacques baron / o desconhecido

 
 
Ele dizia
os meus lábios são cachos monstruosos
de panteras cantantes
mais doces do que os pássaros tão doces da colina
e os touros sangrentos de grandes nuvens obscuras
Ele dizia
trago no meu seio
ondas imensas e acres
no meio das flores tão belas dos grandes dias
Chamava Maria
a uma menina que transporta legumes
Ele dizia ainda
Sou uma papoila
que desperta pela manhã o azul lívido dos bichos
 
 
jacques baron
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021

 
 
 
 
 
 

07 novembro 2021

mário de sá-carneiro / dispersão

 
 
Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.
 
Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida…
 
Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.
 
(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:
 
Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).
 
O pobre moço das ânsias…
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que te abismaste nas ânsias.
 
A grande ave dourada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.
 
Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.
 
Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que projeto:
Se me olho a um espelho, erro —
Não me acho no que projeto.
 
Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.
 
Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.
 
Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi… mas recordo
 
A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.
 
(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que não sonhei!…)
 
E sinto que a minha morte —
Minha dispersão total —
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.
 
Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.
 
Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas…
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas…
 
Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas pra se dar…
Ninguém mas quis apertar…
Tristes mãos longas e lindas…
 
E tenho pena de mim,
Pobre menino ideal…
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?… Ai de mim!…
 
Desceu-me n’alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.
 
Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em uma bruma outonal.
 
Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço…
A hora foge vivida,
Eu sigo-a, mas permaneço…
…………………………………………………………….
…………………………………………………………….
 
Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba…
…………………………………………………………….
…………………………………………………………….
 
 
 
mário de sá-carneiro
dispersão
1913