31 julho 2013

inês dias / vento garrôa


{Parque Eduardo VII, 1954]


Ouve-me tu, desta vez.
Nem cercos precários,
desvios que nunca se encontram
ou compromissos com o absoluto:
não quero mais coincidir
com o tempo,
agora que deixei de coincidir
com a minha língua.

Quero um amor que tenha
a lealdade de um cancro,
que alastre apenas dentro de mim
e me escolha os ossos
com dedos ligeiros mas demorados
de nódoa negra.

Diz-me o sentido
e seguir-te-ei,
de palavras levantadas contra o frio,
até chegar o som da espinha
quebrada como um livro
que se cansou de ser aberto.


inês dias
resumo, a poesia em 2012
documenta
2013



30 julho 2013

carlos poças falcão / fragmento (narrativa)



                                        ao Laureano, in memoriam


«A democracia manda-nos falar e eu murmuro
excita-nos ao grito e silencio. Depois a tirania
obriga a segredar. Então eu falo.
Impõe-nos o silêncio. É quando grito».
Assim ele ia, nestas lucubrações, em grande perigo
de estranhamento e dor sob o céu baixo
das nuvens suburbanas. «De mim sai o silêncio
como um grito». E caminhava. Nomes bárbaros
de indústrias e comércios seguiam-lhe o andar
são nomes de demónios?, de gigantes?») e as fachadas
irradiavam luzes de obscuros interiores.
Assim ele ia atento, regressando, em grande perigo.

«Não falo a vossa língua, não pertenço a esse código
por todo o lado oculto, o Livro não escrito
de onde saem ordens e discursos criminais».
Assim ia em combate, contrapondo voz humana
a seduções difusas e palavras-talismã.
E entretanto Outono, o fim da tarde. «A inteligência
comove-se a olhar seu próprio tempo». Alteou-se-lhe
de súbito o esterno, um arco tenso
sobre a democracia. «Não seja nunca o sonho
a comandar a vida. Que a voz que em mim compõe
me seja dura». E apressando-se
assim ele ia orando, de regresso, em grande perigo.



carlos poças falcão
telhados de vidro n.º 11
novembro 2008
averno



29 julho 2013

sophia de mello breyner andresen / sequência


I

Como esquecida voz de um amor muito antigo
Desgarram-se no ar as pancadas de um sino
A casa onde moro não fica rente às águas da laguna
Mas a parede é branca e vê-se o rio
E embora hydras e fúrias nos desfiem
A diversidade de coisas como Ponge diz
Não constrói



sophia de mello breyner andresen
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990



28 julho 2013

adolfo casais monteiro / ode ao tejo


Ode ao Tejo
e à memória de Álvaro de Campos
  

E aqui estou eu,
ausente diante desta mesa-
e ali fora o Tejo.
Entrei sem lhe dar um só olhar.
Passei, e não me lembrei de voltar a cabeça,
e saudá-lo deste canto da praça.
"Olá Tejo! Aqui estou eu outra vez!"
Não, não olhei.

Só depois que a sombra de Álvaro de Campos se sentou a meu lado
me lembrei que estavas aí, Tejo.
Passei e não te vi.
Passei e vim fechar-me dentro das quatro paredes, Tejo!
Não veio nenhum criado dizer-me se era esta a mesa
    em que Fernando Pessoa se sentava,
contigo e os outros invisíveis à sua volta,
inventando vidas que não queria ter.

Eles ignoram-no como eu te ignorei agora, Tejo.
Tudo são desconhecidos, tudo é ausência no mundo,
tudo indiferença e falta de resposta.
Arrastas a tua massa enorme como um cortejo de glória,
e mesmo eu que sou poeta passo a teu lado de olhos fechados,
Tejo que não és da minha infância,
mas que estás dentro de mim como uma presença indispensável,
majestade sem par nos monumentos dos homens, imagem muito minha do terno,
porque és real e tens forma, vida ímpeto,
porque tens vida, sobretudo,
meu Tejo sem corvetas nem memórias do passado...
Eu que me esqueci de te olhar!

O meu mal é não ser dos que trazem a beleza metida na algibeira
e não precisam de olhar as coisas para as terem.
Quando não estás diante dos meus olhos, estás sempre longe.
Não te reduzi a uma ideia para trazer dentro da cabeça,
e quando estás ausente, estás mesmo ausente dentro de mim.
Não tenho nada, porque só amo o que é vivo,
mas a minha pobreza é um grande abraço em que tudo é sempre virgem,
porque quando o tenho, é concreto nos braços fechados sobre a posse.
Não tenho lugar para nenhum cemitério dentro de mim...
E por isso é que fiquei a pensar como era grave ter passado sem te olhar, ó Tejo.

Mau sinal, mau sinal, Tejo.
Má hora, Tejo, aquela em que passei sem olhar para onde estavas.
Preciso dum grande dia a sós contigo, Tejo,
levado nos teus braços,
debruçado sobre a cor profunda das tuas águas,
embriagado do teu vento que varre como um hino de vitória
as doenças da cidade triste e dos homens acabrunhados...
Preciso dum grande dia a sós contigo, Tejo,
para me lavar do que deve andar de impuro dentro de mim,
para os meus olhos beberem a tua força de luxo indomável,
para me lavar do contágio que deve andar a envenenar-me
dos homens que não sabem olhar para ti e sorrir à vida,
para que nunca mais, Tejo, os meus olhos possam voltar-se para outro lado
quando tiverem diante de si a tua grandeza, Tejo,
mais bela que qualquer sonho,
porque é real, concreta, e única!

  

adolfo casais monteiro



27 julho 2013

gil t. sousa / vê, é o mundo!



19

gostava da janela pela madrugada
quando me puxavas para ti
e me dizias, apontando as luzes e as sombras
sobre os telhados da cidade:


vê, é o mundo!


gil t. sousa
água forte
2005


26 julho 2013

allen ginsberg / uivo por carl solomon (fragmento)

  I


  Eu vi as melhores mentes da minha geração destruídas pela loucura, esfaimadas
  histéricas despidas,
  arrastando-se através das ruas dos negros ao alvorecer em busca de uma dose
  enfurecida,
  hipsters de cabeça de anjo ardendo pela anciã ligação celestial ao
  dínamo de estrelas na maquinaria da noite,

  (...)
  que falaram continuamente durante setenta horas do parque para a vereda para o bar
  para Bellevue para o museu para a Ponte de Brooklyn,
  um batalhão perdido de conversadores platónicos saltando para baixo das inclinações
  das saídas de incêndio dos parapeitos das janelas do Empire State fora da lua,
  balbuciando gritando vomitando sussurrando factos e memórias e anedotas e golpes
  no globo ocular e choques de hospitais e cadeias e guerras,
  completos intelectos regurgitados na total revogação de sete dias e sete noites
  com olhos brilhantes, carne para a Sinagoga lançada no pavimento,

  que desapareceram no Zen de nenhures em New Jersey deixando um rasto de
  ambíguos postais ilustrados da Câmara Municipal de Atlantic City,
  sofrendo de suores Orientais e triturações ósseas Tangerianas e enxaquecas da
  China devido à privação de droga no desolado quarto mobilado de Newark,

  que vaguearam em círculos à meia-noite no pátio do caminho-de-ferro
  interrogando-se onde ir, e partiram, sem deixar corações partidos,

  que acenderam cigarros em vagões-jota vagões-jota vagões-jota fazendo algazarra
  através da neve em direcção a quintas solitárias na noite avó,

  que estudaram Plotinus Poe S. João da Cruz telepatia e bop cabala porque o cosmos
  vibrava instintivamente aos seus pés no Kansas,

  que o arrastaram solitário através das ruas de Idaho buscando anjos índios visionários

  que eram anjos índios visionários,

  que pensavam ser apenas loucos quando Baltimore
  cintilava em êxtase sobrenatural,

  que saltaram em limosines com o Chinês de Oklahoma no impulso da
  luz das ruas de chuva da meia-noite invernal de cidades pequenas,

  que deram investidas esfomeados e sós por Huston em busca de jazz ou sexo ou
  "sopa", e seguiram o Espanhol brilhante para conversar acerca da
  América e Eternidade, uma tarefa desesperada, e portanto embarcaram para África,

  que desapareceram adentro dos vulcões do México deixando para trás nada a não ser
  a sombra de estercos e a lava e as cinzas de poesia disseminada
  na lareira Chicago,

  que reapareceram na Costa Oeste investigando o F.B.I. em barbas e
  calções com grandes olhos pacifistas sexys na sua pele bronzeada divulgando
  folhetos incompreensíveis,

  que queimaram buracos com brasas de cigarro nos seus braços protestando contra a
  neblina narcótica de tabaco do Capitalismo,

  que distribuíram panfletos Supercomunistas em Union Square choramingando e
  despindo-se enquanto as sirenes de Los Alamos os derrubavam com lamentos, e com     lamentos derrubavam o Muro,
  e assim o ferry de Staten Island também se lamentava,

  que tiveram um colapso nervoso em pranto nos ginásios brancos nus e tremendo
  perante a maquinaria de outros esqueletos,
  (...)




  allen ginsberg



25 julho 2013

samuel beckett / mais depressa que onde



mais depressa que onde
nas espiras dos olhos
corre até
gelado no carril
da mandíbula
roer o ranger
dos dentes com o
claque-claque da cegonha

que atravessa
o sentido ido
e o olho
esbugalhado
do branco
por desnudar
tremor pavor
nem a nada

súbito dentro
macio de cinza
pânico
cintila dilacera
e de súbito
re macio
tremor passado
nunca sido

do raio
num latíbulo
há tanto escuro
tremor pavor
até que a brecha
cerrada
re escura
re queda

assi aqui
muito queda
muito nada
lacerada assi
assi sacudida
passada
cabeça amarra
in ex quasi morta

1974


samuel beckett
trad. manuel portela
relâmpago” nr.13
10/2003



24 julho 2013

eugénio de andrade / a boca



A boca,
onde o fogo
de um verão
muito antigo cintila,
a boca espera
(que pode uma boca esperar senão outra boca?)
espera o ardor do vento
para ser ave e cantar.

Levar-te à boca,
beber a água mais funda do teu ser
se a luz é tanta,
como se pode morrer?
  
  

eugénio de andrade




23 julho 2013

herberto helder / rosa esquerda



rosa esquerda, plantei eu num antigo poema virgem,
e logo ma roubaram,
logo me perderam o pequeno achado,
mas ninguém me rouba a alma,
roubam-me um erro apenas que acertava só comigo,
um umbigo, um nó,
um nome que só em mim era floral e único


herberto helder
servidões
assírio & alvim
2013



22 julho 2013

joyce kilmer / árvores



Parece-me que nunca ninguém há-de
Ver poema tão belo como a árvore.

Árvore que sua boca não desferra.
Do seio doce e liberal da terra.

Árvore, sempre de Deus a ver imagem
E erguendo em reza os braços de folhagem.

Árvore que pode usar, como capelo,
Ninhos de papo-ruivo no cabelo;

Em cujo peito a neve esteve assente;
Que vive com a chuva intimamente.

Os tontos, como eu, fazem poesia;
Uma árvore, só Deus é que a faria.


joyce kilmer
oiro de vário tempo e lugar
trad.  a. herculano de carvalho
asa
2003


21 julho 2013

almeida garrett / as minhas asas



Eu tinha umas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Que, em me eu cansando da terra,
Batia-as, voava ao céu.

-Eram brancas, brancas, brancas,
Como as do anjo que m'as deu:
Eu inocente como elas,
Por isso voava ao céu.
Veio a cobiça da terra,
Vinha para me tentar;
Por seus montes de tesouros
Minhas asas não quis dar.
-Veio a ambição, cóas grandezas,
Vinham para m'as cortar,
Davam-me poder e glória;
Por nenhum preço as quis dar.

Porque as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Em me eu cansando da terra,
Batia-as, voava ao céu.

Mas uma noite sem lua
Que eu contemplava as estrelas,
E já suspenso da terra,
Ia voar para elas,
-Deixei descair os olhos
Do céu alto e das estrelas...
Vi entre a névoa da terra,
Outra luz mais bela que elas.

E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Para a terra me pesavam,
Já não se erguiam ao céu.

Cegou-me essas luz funesta
De enfeitiçados amores...
Fatal amor, negra hora
Foi aquela hora de dores!

-Tudo perdi n'essa hora
Que provei nos seus amores
O doce fel do deleite,
O acre prazer das dores.

E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Pena a pena me caíram...
Nunca mais voei ao céu.

  

almeida garrett



20 julho 2013

alberto caeiro / eu nunca guardei rebanhos



Eu nunca guardei rebanhos, 
Mas é como se os guardasse. 
Minha alma é como um pastor, 
Conhece o vento e o sol 
E anda pela mão das Estações  
A seguir e a olhar. 
Toda a paz da Natureza sem gente  
Vem sentar-se a meu lado. 
Mas eu fico triste como um pôr de sol  
Para a nossa imaginação, 
Quando esfria no fundo da planície  
E se sente a noite entrada 
Como uma borboleta pela janela. 
Mas a minha tristeza é sossego 
Porque é natural e justa 
E é o que deve estar na alma 
Quando já pensa que existe 
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso. 

Como um ruído de chocalhos 
Para além da curva da estrada, 
Os meus pensamentos são contentes. 
Só tenho pena de saber que eles são contentes, 
Porque, se o não soubesse, 
Em vez de serem contentes e tristes,  
Seriam alegres e contentes. 

Pensar incomoda como andar à chuva 
Quando o vento cresce e parece que chove mais. 

Não tenho ambições nem desejos  
Ser poeta não é uma ambição minha  
É a minha maneira de estar sozinho. 

E se desejo às vezes 
Por imaginar, ser cordeirinho  
(Ou ser o rebanho todo 
Para andar espalhado por toda a encosta 
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo), 

É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol, 
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz 
E corre um silêncio pela erva fora. 

Quando me sento a escrever versos 
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos, 
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento, 
Sinto um cajado nas mãos 
E vejo um recorte de mim 
No cimo dum outeiro, 
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias, 
Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho, 
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz 
E quer fingir que compreende. 

Saúdo todos os que me lerem, 
Tirando-lhes o chapéu largo 
Quando me vêem à minha porta 
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro. 
Saúdo-os e desejo-lhes sol, 
E chuva, quando a chuva é precisa, 
E que as suas casas tenham 
Ao pé duma janela aberta 
Uma cadeira predilecta 
Onde se sentem, lendo os meus versos. 
E ao lerem os meus versos pensem 
Que sou qualquer cousa natural - 
Por exemplo, a árvore antiga 
À sombra da qual quando crianças 
Se sentavam com um baque, cansados de brincar, 
E limpavam o suor da testa quente 
Com a manga do bibe riscado.



alberto caeiro
o guardador de rebanhos



19 julho 2013

manuel antónio pina / theo



Às vezes o gato fitava
com estranheza
o que de nós (um excesso)
se interpunha entre nós e o gato,
a nossa presença.



manuel antónio pina
moradas
todas as palavras
poesia reunida
assírio & alvim
2012


18 julho 2013

luís filipe parrado / natureza morta com maçãs



É triste
o espectáculo do amor
apodrecendo aos poucos,
na fruteira
as maçãs que te trouxe
têm agora a pele seca e enrugada.



luís filipe parrado
entre a carne e o osso
2012



17 julho 2013

carlos de oliveira / sobre o lado esquerdo



De vez em quando a insónia vibra com a
nitidez dos sinos, dos cristais. E então, das duas
uma: partem-se ou não se partem as cordas tensas
da sua harpa insuportável.
No segundo caso, o homem que não dorme
pensa: «o melhor é voltar-me para o lado esquerdo
e assim, deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu corpo, esmagar o coração».



carlos de oliveira
sobre o lado esquerdo
1968



16 julho 2013

antónio ramos rosa / mar



Para além dos signos
O ponto de partida
O mesmo arco
As estradas leves
Quem escreve
Um mundo
A palavra
A delicada majestade
O horizonte das palavras

  

antónio ramos rosa


15 julho 2013

ruy belo / espaço preenchido




Somos todos de aqui. Basta-nos a pátria
que uma tarde de domingo -nos consente
entre folhas de outono e frases de abandono
E abrem-se-nos ruas
para ir a sítios demasiado precisos
quando um só sítio se encontra
ao fim de todas as ruas e de todos os rios
Somos todos da raça dos mortos
ou vivos mais além
Mensagens de outra pátria não as traz
arauto algum que o nosso tempo vestisse

O que é preciso é dar lugar
aos pássaros nas ruas da cidade



ruy belo
relação
todos os poemas I
assírio & alvim
2004



14 julho 2013

herberto helder / gárgula



Gárgula.
Por dentro a chuva que a incha, por fora a pedra misteriosa
que a mantém suspensa.
E a boca demoníaca do prodígio despeja-se
no caos.
Esse animal erguido ao trono de uma estrela,
que se debruça para onde
escureço. Pelos flancos construo
a criatura. Onde corre o arrepio, das espáduas
para o fundo, com força atenta. Construo
aquela massa de tetas
e unhas, pela espinha, rosas abertas das guelras,
umbigo,
mandíbulas. Até ao centro da sua
árdua talha de estrela.
Seu buraco de água na minha boca.
E construindo falo.
Sou lírico, medonho.
Consagro-a no banho baptismal de um poema.
Inauguro.
Fora e dentro inauguro o nome de que morro.



herberto helder
le poème continu
somme anthologique
institut camões / chandeigne
paris, 2002



13 julho 2013

ricardo reis / uns, com os olhos postos no passado



Uns, com os olhos postos no passado,
Vêem o que não vêem; outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.

Por que tão longe ir pôr o que está perto-
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.

Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.




ricardo reis



12 julho 2013

sharon olds / a linguagem da bazófia



Desejei ser a primeira a fazer pontaria com a faca,
desejei usar os meus braços extraordinariamente robustos e certeiros
e a minha postura erecta e os músculos ágeis e eléctricos
para alcançar algo no centro da multidão,
o fio da navalha perfurando profundamente o casco,
o punho vibrando lento e pesado como o caralho.

Desejei uma função épica para o meu excelente corpo,
um qualquer heroísmo, uma qualquer proeza americana
para além do ordinário para a minha pessoa extraordinária,
magnética e tênsil, junto ao campo de terra batida
vi os rapazes jogarem.

Desejei bravura, pensei em fogo,
em atravessar cataratas, arrastei por toda a parte

a barriga cheia de cobardia e segurança,
a minha bosta negra com as ampolas de ferro,
as minhas grandes mamas exudando muco,
as minhas pernas inchando, as minhas mãos inchando,
a minha cara inchando enegrecida, o meu cabelo
caindo, o forro do meu sexo
esfaqueado vezes sem conta por uma dor terrível como um punhal.
Jazi estendida.

Jazi estendida e suei e tremi
e expeli sangue e fezes e água e
devagar sozinha no centro de um círculo
expeli a nova pessoa
e eles ergueram a nova pessoa já livre do acto
e limparam a nova pessoa já livre
dessa linguagem de sangue tal louvor sobre todo o corpo.

Fiz aquilo que quisestes fazer, Walt Whitman,
Allen Ginsberg, fiz isto,
eu e as outras mulheres este acto
excepcional com o corpo excepcional e heróico,
este dar à luz, este verbo brilhante,
e deponho aqui a minha jactante bazófia americana
em pé de igualdade com outras.


sharon olds
satanás diz
trad, margarida vale de gato
antígona
2004