A solidão, já disse,
só a presença do púbico pode concedê-la,
e vais ter de actuar de maneira diferente e
recorrer a métodos diferentes.
Através de um artifício —
por efeito da tua vontade
deves fazer entrar em ti uma sensibilidade destas
em relação ao mundo.
À medida que sobem as suas ondas —
como sobe o frio dos pés e chega às pernas,
às coxas, ao ventre de Sócrates —
toma o seu frio conta do teu coração e transforma-o em gelo.
— Não, não, três vezes não:
não vens divertir o público, mas fasciná-lo.
Confessa
que não deixava de ser curiosa a sensação que ele teria —
refiro-me ao maior espanto, ao pânico —
se acaso chegasse a distinguir muito claramente
que naquela noite, pelo fio, andava um cadáver!
«Toma o seu frio conta do teu coração e transforma-o em
gelo»..,
mas — é este o maior mistério — precisará ao mesmo tempo
que uma espécie de vapor saia de ti muito leve,
sem ser capaz de te esfumar os ângulos,
e nos desvende o foco que no teu centro
não deixa alimentar esta morte gélida
que iria puxar-te pelos pés.
E o teu fato?
Ao mesmo tempo casto e provocante.
A malha justa do Circo,
um vermelho e sangrento jersey.
Indica com precisão os teus músculos,
cinge-te, enluva-te, mas do pescoço — aberto em redondo,
cortado cerce como se o carrasco nessa noite fosse
decapitar-te
— do pescoço à anca um lenço vermelho ainda,
e de panos a flutuar — franjado a ouro.
Escarpins vermelhos, o lenço, o cinto,
o debrum do decote, as fitas abaixo do joelho,
são bordados a lantejoulas.
Com certeza para cintilares
mas sobretudo perderes na serradura,
ao atravessares a pista, algumas lantejoulas mal cosidas,
delicados emblemas do Circo.
Durante o dia caem do teu cabelo outras,
quando vais ao merceeiro.
O suor colou uma no teu ombro.
Em relevo na malha,
o alforge onde guardas os tomates
terá bordado um dragão
de ouro.
(...)
jean genet
o funâmbulo
trad. de aníbal fernandes
hiena editora
1984