06 fevereiro 2024

rui lage / o regresso dos lobos

 
 
Esqueceu a vida antes do campo;
Acolhe o estilhaço da geada
Na garganta em feitio de banco
Ou numa chávena requentada.
 
No teu colo deixei camisolas
E faúlhas de vários tamanhos;
Queima-se a pedra e ardem as solas
Dos teus dóceis chinelos castanhos.
 
O derradeiro lobo regressa
O xaile negro, o sono que tarda
A metade da cama intocada.
 
Debaixo do escano amuada
Estava a tua sombra escondida
Que se esgueirou da sombra da vida.
 
 
 
rui lage
antigo e primeiro
quasi
2002




 

05 fevereiro 2024

nuno júdice / projecto metafísico

 



 
Uma vez terei sonhado que para além dos céus
há outros céus; que sobre as nuvens que vemos,
paradas, sobre nós, outras nuvens são empurradas
pelo universo, cheias como o espírito que
só imaginam aqueles que ouvem o silêncio das aves,
quando a noite cai. Há sonhos inúteis,
que se perdem ao longo da vida, que rolam
com o tédio para as sarjetas do esquecimento. Outros,
porém, ficam por dentro de nós; e repetem-se,
de cada vez que o dia ficou escuro mais cedo, ou
que olhamos à volta e descobrimos que não está connosco
quem gostaríamos que estivesse. Um remédio
para a solidão, talvez; embora o sonho possa ser,
por outro lado, a porta que se fecha quando
a realidade toma conta de nós. Então, é
possível que andemos, como os pobres, à sua procura
pelos caixotes de lixo da eternidade. Destapamo-los,
um a um, e remexemos por entre imagens antigas,
rostos que se desprendem da noite, palavras
que se ligam a súbitas entoações, comoventes,
da voz que o tempo levou. E as mãos voltam
vazias: nenhum sonho cabe na mão. Assim,
este céu continua a ser o meu limite; e só espero
que a chuva recomece para que a sua música monótona
me devolva o sonho de uma manhã azul.
 
 
 
nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997
 




04 fevereiro 2024

bernardo soares / sou um homem para quem o mundo exterior é uma realidade interior.

 
 
L. do D.
 
Sou um homem para quem o mundo exterior é uma realidade interior. Sinto isto não metafisicamente, mas com os sentidos usuais com que colhemos a realidade.
 
Parecerá a muitos que este meu diário, feito para mim, é artificial de mais. Mas é de meu natural ser artificial. Com que hei-de eu entreter-me, depois, senão com escrever cuidadosamente estes apontamentos espirituais! De resto, não cuidadosamente os escrevo. É, mesmo, sem cuidado limador que os agrupo. Penso naturalmente nesta minha linguagem requintada.
 
A nossa frivolidade de ontem é hoje uma saudade (constante) que me rói a vida.
 
Há claustros na hora. Entardeceu nas esquivanças. Nos olhos azuis dos tanques um último desespero reflecte a morte do sol. Nós éramos tanta coisa dos parques antigos; de tão voluptuoso modo estávamos incorporados na presença das estátuas, no talhado inglês das áleas. Os vestidos, os espadins, as perruques, os meneios e os cortejos pertenciam tanto à substância de que o nosso espírito era feito! Nós quem? O repuxo apenas, no jardim deserto, água alada, onda já menos alta no seu acto triste de querer voar.
 
s.d.
 
 
 
fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982




 

03 fevereiro 2024

manuel gusmão / as posições do leitor




1.
 
O leitor está cego: a luz cai sobre o olhar: as coisas vão nascendo minuciosas despertas e límpidas, no passado. Na página, as letras vibravam e uma ausência brilhava como um clarão branco que chegava aos olhos e os olhos eram uma parede de luz intransponível. Ouviam, tacteavam.
 
a luz cai… contra o olhar…: como o dia se fazia abria-se o mundo: tu. A neve espalhava-se no cérebro do leitor, pelas suas árvores imóveis como uma fotografia. , dizia. – Isto é um livro; eu sei, pensava ele humildemente; um dia li um livro; contava uma história: passava-se no México e havia muito calor, a noite ia caindo sobre a terra, descendo pela colina até à cidade, até às ruínas. Até ao rio. Como era inverosímil o que tinha acontecido não passara ainda um ano…
 
O leitor ia virando as páginas que muito lentamente ondulavam; estava cego e agarrava o livro num esforço paciente. Algures como no passado, branca sobre a luz branca, uma letra ardia: os contornos hesitantes de um A antigo, pintado, um quarto do sol, a secção de um disco girando sobre si mesmo. Um simulacro. Algures, então, como no futuro, o leitor está cego.
 
 
 
manuel gusmão
dois sóis, a rosa
a arquiitectura do mundo
as posições do leitor (1971)
caminho
1990






 

02 fevereiro 2024

virgínia woolf / muito bem. todos envelhecemos

 




 

(1923)
Terça-feira, 18 de Setembro
 
 
Muito bem. Todos envelhecemos; ficamos mais encorpados: perdemos a nossa flexibilidade e impressionabilidade. Até o Morgan me parece estar alicerçado nalguma rocha oculta. Falando de Proust e Lawrence, ele disse que preferia ser o Lawrence; mas preferia muito mais ser ele próprio. Discutimos os seus romances. Não julgo que seja um romancista, disse ele. De repente eu disse: “Não, não acho que seja.” Ah, exclamou ele avidamente, interessado, nada decepcionado. Mas o L. contestou isto. “Não estou de modo algum abatido por causa da minha carreira literária”, disse ele. Acho que decidiu que tem muito a que recorrer. É reservado, sereno, um snob, diz ele, que só lê obras-primas. Tivemos uma longa cavaqueira sobre criadas. Mas está a ficar frio e escuro. Vou sair para ir ao encontro do L.
 
 
 
virgínia woolf
diários
trad. jorge vaz de carvalho
relógio d´água
2018
 



01 fevereiro 2024

miguel torga / sinal

 
 
 
Basta olhar essa luz:
Tão viva, tão possível, tão presente,
Que a distância a que brilha se reduz
Ao tempo que o desejo nos consente.
 
Pede-a a força da terra, a lei da vida;
Chamam por ela os olhos renascidos;
Halo de uma conquista apetecida,
É uma pura fogueira dos sentidos.
 
Vem como o vento o seu calor aberto;
Vem como um facho a sua claridade;
E o que fica de lado é um céu deserto
De cor, de sugestão e de verdade.
 
 
 
miguel torga
libertação
1944
poesia completa vol. i
dom quixote
2007



31 janeiro 2024

katerina angheláki-rooke / adolescência 1

 
 
Com a adolescência o eu divide-se em dois:
um brinca e o outro apieda-se.
O tempo florista embrulha-nos em papel transparente,
e, embora esta atenção só se dirija ao nosso florescimento,
não o sabemos e tomámo-la como caso nosso pessoal.
Inverno em Atenas em 1953,
as lajes do passeio nadam em lama,
as luzes vermelhas do cine Orphéas amesquinham o mais informe
      dos corpos.
Tens saudades do futuro como se fosse passado,
ao saíres do teatro Koun, o homem das castanhas à esquina,
a mamã com o casaco novo,
tudo te leva às lágrimas; a inconsolável Blamche DuBois
acompanha-me até ao bairro Exárcheia;
os gladíolos amarelos pisados à chuva
amargamente me simbolizam.
A minha lascívia púbere idolatra o actor
que introduz os principais temas da minha vida
desejo – morte
depois ele afasta-se e eu prossigo
os restantes actos no meu acanhado palco.
Até chegar à porta de casa subi tragicamente até aos meus olhos;
que me falta que choro?
Chove e eu hei-de ficar sempre só, ninfazinha desamada ao frio.
 
 
 
katerina angheláki-rooke
epílogo do ar, 1990
a grécia de que falas…
antologia de poetas gregos modernos
tradução e organização de manuel resende
língua morta
2021




30 janeiro 2024

iosif brodskii / diálogo

 
 
«Está ali, no declive deitado:
à roda atarefam-se os ventos.
Em cada copa de carvalho
crocitam os corvos aos centos,»
«Onde? É que não oiço nada,
o vento sussurra nas folhagens.
O que disseste do telhado,
que não distingo as palavras?»
 
«Nas copas, digo-te, nas copas
gritam pássaros pardacentos.
Os netos dele picam voo
dos tronos celestes aos centos.»
«Então ele foi algum corvo:
no escuro, o vento às risadas.
O que disseste tu das copas,
que não te entendo as palavras?»
 
«Escondem, escondem os esforços
no escuro da noite cega.
Uma só coisa ele compôs:
as asas duma ave negra.»
«O vento estorva, o vento,
meu deus acalma este vento.
O que fez ele então na vida,
já que estava entre a gente?»
 
«As folhas cismam, balbuciam,
Ali jaz ele e não respira.
Vês uma nuvem lá no céu?
– A alma dele na subida.»
«Sim, agora já te entendo:
foi-se para a noite a voar.
Agora ali jaz e abraça
as raízes do carvalhal.»
 
«O telhado, faço o telhado
da copa de carvalho espessa.
Fica mais calmo que um lago,
mais rasteiro do que a erva.
Vou coroá-lo com a bruma.
Fica-lhe bem uma coroa.»
«Fica então debaixo da terra?»
«Não pode levantar-se, assim.
Está lá deitado com a coroa,
está lá esquecido por mim.»
«Era um corvo na tempestade?»
«Era uma ave, ele foi uma ave.»
 
 
 
iosif brodskii
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
tradução de nina guerra e filipe guerra
assírio & alvim
2001
 




29 janeiro 2024

adonis / ruínas

 
 
A lua quebra os seus espelhos nas ruínas enquanto Beirute faz
muletas de sangue e cinzas e coxeia com elas.
 
É verdade. O céu tem correntes à volta dos pés, e as estrela
têm adagas presas na cintura.
 
O dia esfrega os olhos, sem acreditar no que vê.
 
Chora, Beirute, limpa as tuas lágrimas com o lenço do hori-
zonte. Escreveste de novo ao céu, mas estavas errada e agora os
teus erros escrevem-te.
 
Não tens um outro alfabeto?
 
 
 
adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016
 




28 janeiro 2024

ricardo reis / cedo de mais vem sempre, cloé, o inverno.

 
 
 
Cedo de mais vem sempre, Cloé, o inverno.
É sempre prematuro, inda que o espere
        Nosso hábito, o esfriar
        Do desejo que houve.
 
Não entardece que não morra o dia.
Não nasce amor ou fé em nós que não
        Morra com isso ao menos
        O não amar ou crer.
 
Todo o gesto que o nosso corpo faz
Com o repouso anterior contrasta.
        Nesta má circunstância
        Do tempo eternos somos.
 
Só sabe da arte com que viva a vida
Aquele que, de tão contínua usá-la,
        Furte ao tempo a vitória
        Das mudanças depressa,
 
E entardecendo como um dia trópico,
Até ao fim inevitável guie
        Uma igual vida, súbito
        Precipite no abismo.
 
7-7-1919
 
 
 
poemas de ricardo reis
fernando pessoa
imprensa nacional - casa da moeda
1994




27 janeiro 2024

herberto helder / teoria sentada

 
VI
 
É a colina na colina, colina
das colinas frias.
Colina devagar por ela acima, brotando
sobre a raiz da colina. Oh fria raiz deitada
na pedra sinistra fria da raiz
da colina. Na húmida
treva pedra vazia, na alegria
abstracta dos fogos, das águas oh sombrias.
Colina profunda, colina de
colina muda. Mexendo nos fogos,
nas águas extremas vazias, nas massas
nocturnas unas — respirando.
Batendo os leves pêlos nas gotas frias
das águas,
e as pesadas estrelas nas veias sombrias.
Colina acocorada na raiz ríspida
da colina, feroz por ela abaixo, ladeada
pelas paredes direitas da melancolia. É
a colina na colina. Depois para cima, colina
das colinas amargas estremes.
De alegria para cima, na audácia das brutas
assimetrias. Colina de pé
sobre as visões, as culpas,
os crimes — batendo os pés unidos na boca
aberta das mães sinistras e vazias. Colina
na colina nas colinas das ilusões
quentes, duras, puras, sombrias. Colina
em baixo e para cima.
É a colina em cima com árvores redondas,
vivas, rápidas e oh frias.
Arvorezinhas da colina, vazias.
 
 
 
herberto helder
poesia toda
teoria sentada
assírio & alvim
1996




26 janeiro 2024

adam zagajewski / as tardes infindáveis

 
 
Eram essas, as tardes infindáveis, em que a poesia me abandonava.
O rio corria dolentemente, empurrando barcos preguiçosos para o mar.
Eram essas, as tardes infindáveis, a costa de marfim.
As sombras jaziam nas ruas, as vitrinas exibiam altivos manequins,
que me olhavam, com ar de desafio e ousadia.
 
Dos liceus saíam professores de rostos vazios,
como se Homero os tivesse derrotado, humilhado, morto.
Os vespertinos traziam notícias inquietantes,
mas nada mudava, ninguém se apressava.
Nas janelas não havia ninguém, tu própria não estavas lá,
até as freiras pareciam ter vergonha da sua vida.
 
Eram essas, as tardes infindáveis em que a poesia se desvanecia
e ficava sozinho com o demónio opaco da cidade
como um pobre viajante, de pé, em frente à Gare du Nord
com uma mala demasiado pesada, atada com uma corda,
sobre a qual caía a chuva, a chuva preta de Setembro.
 
Oh, diz-me como me curar da ironia, do olhar
que vê mas não trespassa; diz-me como me curar
de estar calado.
 
 
 
adam zagajewski
sombras de sombras
trad. marco bruno
tinta-da-china
2017




25 janeiro 2024

antonio gamoneda / envelheceu dentro de teus olhos

 
 
 
Envelheceu dentro de teus olhos; eras a doçura e o
extermínio e amei teu corpo em seus frutos nocturnos.
 
 
Tua inocência é como uma faca diante do meu rosto,
 
 
mas pesas no meu coração e, como um mel escuro,
sinto-te em meus lábios ao encaminhar-me para a
morte.
 
 
 
antonio gamoneda
livro do frio
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999