18 junho 2018

manuel antónio pina / a um homem do passado




Estes são os tempos futuros que temia
o teu coração que mirrou sob pedras,
que podes recear agora tão fundo,
onde não chegam as aflições nem as palavras duras?

Desceste em andamento; afinal era
tudo tão inevitável como o resto.
Viraste-te para o outro lado e sumiram-se
da tua vista os bons e os maus momentos.

Tua ainda tinhas essa porta à mão.
(Aposto que a passaste com uma vénia desdenhosa.)
Agora já não é possível morrer ou,
pelo menos, já não chega fechar os olhos.


manuel antónio pina
voyager
todas as palavras, poesia reunida
assírio & alvim
2012






17 junho 2018

bernardo soares / assim soubesses tu compreender o teu dever…




Assim soubesses tu compreender o teu dever de seres meramente o sonho de um sonhador. Seres apenas o turíbulo da catedral dos devaneios. Talhares os teus gestos nos sonhos, para que fossem apenas janelas abertas para paisagens puras da tua alma. De tal modo arquitectar o teu corpo em arremedos de sonho que não fosse possível ver-te sem pensar n'outra coisa, que lembrasses tudo menos tu própria, que ver-te fosse ouvir música e atravessar, sonâmbulo, grandes paisagens de lagos mortos, vagas florestas silenciosas perdidas no fundo d'outras épocas, onde invisíveis homens diversos vivem sentimentos que não temos.

Eu não te quereria para nada senão para te não ter. Queria que, sonhando eu e se tu aparecesses, eu pudesse imaginar-me ainda sonhando — nem te vendo talvez, mas talvez reparando que o luar enchera de (...) os lagos mortos e que ecos de canções ondeavam subitamente na grande floresta inexplícita, perdida em épocas impensáveis.

A visão de ti seria o leito onde a minha alma adormecesse, criança doente, para sonhar outra vez com outro céu. Falares? Sim mas que ouvir-te fosse não te ouvir mas ver grandes pontes ao luar ligando as duas margens escuras do rio que vai ter ao mar — ao mar onde as caravelas são novas para sempre.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
europa-américa
1986







16 junho 2018

edgar allan poe / a queda da casa de usher



O meu coração é um alaúde suspenso:
Mal se lhe toca, ressoa.

De Béranger


Durante um dia inteiro de Outono, dia fuliginoso. Sombrio e mudo, em que as nuvens eram pesadas e baixas no céu, eu atravessava sozinho e a cavalo uma extensão de terra singularmente lúgubre e, enfim, como se aproximavam as sombras da noite, achei-me à vista da melancólica Casa de Usher. Não sei como isto aconteceu – mas, logo ao primeiro olhar que deitei ao edifício, um sentimento de tristeza inultrapassável penetrou-me a alma. Disse inultrapassável porque tal tristeza não era, de modo nenhum, temperada por uma parcela daquele sentimento cuja essência poética cria quase uma volúpia e cuja alma se queda, geralmente, fixa, em face das imagens naturais mais sombrias da desolação e do terror. Fitava o quadro posto à minha frente e, só por ver a casa e a perspectiva característica deste domínio – as paredes que tinham frio – as janelas parecidas com olhos distraídos – alguns ramalhetes de juncos vigorosos – alguns troncos de árvores brancos e definhados – sentia este completo abatimento de alma que, entre as sensações terrestres, não se pode comparar melhor do que ao devaneio oculto do comedor de ópio – ao seu retorno dilacerado à vida diária – à horrível e lenta retirada do véu. Era gelo no coração, um abatimento, um mal-estar – uma irremediável tristeza de pensamento que nenhum agulhão da imaginação podia reanimar nem fazer crescer. O que era, pois – detive-me para pensar nisso – , o que era, pois, esse não sei o quê que assim me enervava ao contemplar a Casa de Usher? Era um mistério completamente insolúvel, e não podia lutar contra os pensamentos tenebrosos que se amontoavam sobre mim enquanto reflectia. Fui forçado a refugiar-me nesta conclusão pouco satisfatória: que existem combinações de objectos naturais muito simples que têm a força de nos afectar deste modo e que a análise desta força reside em considerações onde perderíamos o pé. Era possível, pensava, que uma simples diferença na disposição dos materiais de decoração, dos pormenores do quadro, bastasse para modificar, para aniquilar talvez essa força de impressão dolorosa: e agindo em conformidade com esta ideia, conduzi o cavalo para a borda escarpada  dum lago negro e lúgubre que, espelho imóvel, se estendia em frente do edifício; e fitei – mas com um arrepio ainda mais penetrante do que da primeira vez – as imagens repercutidas e invertidas dos juncos pardacentos, dos troncos de árvores sinistras e das janelas parecidas com olhos sem pensamento.
(…)



edgar allan poe
a queda da casa de usher
trad. de joão costa
editores associados
1973







15 junho 2018

fernando pinto do amaral / escotomas




1.
Uma janela aberta: para lá
do espaço vibra o gelo
e dentro desse gelo vibra o lume
de um súbito segredo cujo sangue
escorre por mim até iluminar
o prazer e a dor
com a mesma certeza. Um relâmpago
liberta e faz pulsar a minha estranha
primeira alma,
essa verdade limpa de memórias,
gravada em milhões de olhos, sempre lá,
no céu da noite, sobre as cintilantes
veias de uma cidade – sobre mim
uma palavra aberta, ainda
antes do tempo,
à flor dos lábios de Deus.



fernando pinto do amaral
às cegas
relógio de água
1997






14 junho 2018

fernando echevarría / não via o que olhava



Não via o que olhava. Via
no pensamento pulsar
uma como que rua a respirar sozinha
e, dentro dela, um cálido animal.
E, por trás de ambos, uma veia tinha
a invisível altura de se doer com tal
inteligência que o azul batia
cumprindo-se em seu limbo de púlpito eficaz.
Não via o que olhava. Mas o animal rompia
a ser. Seu vulto triunfava boreal.



fernando echevarría 
geórgicas
afrontamento
1998








13 junho 2018

vasco graça moura / recitativos




III
saio todos os dias, há um ar levemente
marinho na periferia de agosto,
caminho de memória e reconheço as faces
feridas, os vestígios salinos
nas faces,
e os campos de milho o casario húmido;

se atentasse nos sons
poderia talvez reproduzi-los
de modo inteligível

que vos hei-de mandar, que vos hei-de dizer
senão as tentativas: todos
os dias saio



vasco da graça moura
recitativos
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007






12 junho 2018

albert camus / não nos separarmos do mundo.



Maio

Não nos separarmos do mundo. Não se perde a vida quando a colocamos à luz do dia. Todo o meu esforço, em todas as posições e desgraça, as desilusões, é para recuperar os contactos. E mesmo nesta tristeza que há em mim, que desejo de amar e que inebriamento apenas perante a visão de uma colina na aragem do fim da tarde.

Contactos com o verdadeiro, a natureza em primeiro lugar, e depois a arte daqueles que compreenderam, a minha arte se a consigo alcançar. De contrário, a luz e a água e a embriaguez estão na minha frente, e os lábios húmidos do desejo.

Desespero sorridente. Sem saída, mas que exerce sem cessar um domínio que se sabe inútil. O essencial: não nos perdermos, e não perder aquilo que, de nós, dorme no mundo.


albert camus
primeiros cadernos
caderno nr. 1 (maio de 1935-setembro de 1937)
trad. antónio quadros (?)
livros do brasil
1973






11 junho 2018

joaquim manuel magalhães / abri o cancelo e cheguei à eira




51
abri o cancelo e cheguei à eira
cansado dos sendeiros e da chuva
não te vi, nem ao fumo antigo
com cheiros da comida e da resina.
As vigas de madeira dos arrumos
cobertas de parreiras não ouviam
os bois a chiar por pedregulhos.
Pilares de granito cobriam-se de musgo.

Subi para o terraço do quinteiro.
O rio azul-de-pedra ardia dentre as grades.
Sentei-me na manta de farrapos
a lembrar. Os anos findos, o pão
suspenso no galheiro que roubávamos
antes de jantar, lá se ia o apetite.
Com as mãos molhadas de serrim
ríamo-nos, corriam pombos por ervas queimadas.

Eram lugares miseráveis. Mas ouvia-se,
tão perto, um riacho a correr.
Tábuas que nos pregam o coração.


joaquim manuel magalhães
segredos, sebes, aluviões
editorial presença
1985







10 junho 2018

luís vaz de camões / lembranças, que lembrais meu bem passado

Lembranças, que lembrais meu bem passado,
Pera que sinta mais o mal presente,
Deixai-me, se quereis, viver contente,
Não me deixeis morrer em tal estado.

Mas se também de tudo está ordenado
Viver, como se vê, tão descontente,
Venha, se vier, o bem por acidente,
E dê a morte fim a meu cuidado.

Que muito melhor é perder a vida,
Perdendo-se as lembranças da memória,
Pois fazem tanto dano ao pensamento.

Assim que nada perde quem perdida
A esperança traz de sua glória,
Se esta vida há-de ser sempre em tormento.



luís vaz de camões
sonetos











09 junho 2018

eugénio de andrade / os joelhos




Considerai os joelhos com doçura:
Vereis a noite arder mas não queimar
A boca onde beijo a beijo foi acesa.



eugénio de andrade
obscuro domínio
poesia
fundação eugénio de andrade
2000












08 junho 2018

sophia de mello breyner andresen / mais do que tudo, odeio




Mais do que tudo, odeio
Tantas noites em flor de Primavera,
Transbordantes de apelos e de espera,
Mas donde nunca nada veio.


sophia de mello breyner andresen
obra poética
assírio & alvim
2015















07 junho 2018

wislawa szymborska / álbum




Na minha família ninguém morreu de amor.
Se alguma coisa houve não passou de historieta.
Tísicas de Romeu? Difterias de Julieta?
Alguns envelheceram até ganhar bolor.
Ninguém a definhar por falta de resposta
a uma carta molhada e dolorosa.
Apareceu sempre por fim algum vizinho
com lunetas e uma rosa.
Ninguém a desfalecer no armário de asfixia
de algum marido voltando sem contar.
E os mantos e os folhos e as fitas de apertar
a nenhum impediram de ficar na fotografia.
E nunca no espírito satânico de Bosch!
E nunca pelos quintais de arma em punho!
De bala na cabeça teve a morte outro cunho
e em macas de campanha alguém os trouxe.
De olheiras fundas como após grande folia,
até esta aqui de carrapito extático,
se fez ao largo em grande hemorragia
mas não por ti, ó bailarino, e com viático.
Talvez antes do daguerreótipo, alguém,
mas dos deste álbum, ninguém, que eu verifique.
Tristezas dissipam-se, os dias sucederam-se,
e eles, reconfortados, sumiram-se de gripe.



wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998







06 junho 2018

albano martins / como se fosses o mar



(6-08-1930 / 6-6-2018)


Antigamente
era assim: bastava
o voo duma ave
para te arrepiar a pele. Agora
os navios cortam
a linha de água e nem
um leve sobressalto
te percorre os rins.


albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999







05 junho 2018

ana hatherly / o fim




O tempo é um passo
Que em seu próprio espaço
Cabe.
Com ele partimos
E nele regressamos
Cumprindo o indirecto plano
Da reintegração:

É a flecha
Desferida do arco de toda a invenção.



ana hatherly
poesia
1958-1978
moraes editores
1980







04 junho 2018

josé tolentino mendonça / o tempo




O tempo perfura portas cerradas
biombos, tabiques e lapsos
um rangido de ferrugem velha
a mercadoria imaginária que tenhamos

insectos erram de planta em planta
um feto desdobra as grandes folhas
estranhamente espaçosas
nesta estação

A lua sobe no céu
lavado de fresco pelas últimas trovoadas



josé tolentino mendonça
estação central
assírio & alvim
2012







03 junho 2018

bernardo soares / declaração de diferença


(para ser inserta no Livro do Desassossego)


As coisas do estado e da cidade não têm mão sobre nós. Nada nos importa que os ministros e os áulicos façam falsa gerência das coisas da nação. Tudo isso se passa lá fora, como a lama nos dias de chuva. Nada temos com isso, que tenha que ver ao mesmo tempo connosco.

Semelhantemente nos não interessam as grandes convulsões, como a guerra e as crises dos países. Enquanto não entram por nossa casa, nada nos importa a que portas batam. Isto, que parece que se apoia num grande desprezo pelos outros, realmente tem apenas por base o nosso apreço céptico por nós próprios.

Não somos bondosos nem caritativos — não porque sejamos o contrário, mas porque não somos nem uma coisa, nem a outra. A bondade é a delicadeza das almas grosseiras. Tem para nós o interesse de um episódio passado em outras almas, e com outras formas de pensar. Observamos, e nem aprovamos, nem deixamos de aprovar. O nosso mister é não ser nada.

Seríamos anarquistas se tivéssemos nascido nas classes que a si próprias chamam desprotegidas, ou em outras quaisquer de onde se possa descer ou subir. Mas, na verdade nós somos, em geral, criaturas nascidas nos interstícios das classes e das divisões sociais — quase sempre naquele espaço decadente entre a aristocracia e a (alta) burguesia, o lugar social dos génios e dos loucos com quem se pode simpatizar.

A acção desorienta-nos, em parte por incompetência física, ainda mais por inapetência moral. Parece-nos imoral agir. Todo o pensamento nos parece degradado pela expressão em palavras, que o tornam coisa dos outros, que o fazem compreensível aos que o compreendem.

A nossa simpatia é grande pelo ocultismo e pelas artes do escondido. Não somos, porém, ocultistas. Falha-nos para isso a vontade inata, e, ainda, a paciência para a educar de modo a tornar-se o perfeito instrumento dos magos e dos magnetizadores. Mas simpatizamos com o ocultismo, sobretudo porque ele soe exprimir-se de modo a que muitos que lêem, e mesmo muitos que julgam compreender, nada compreendem. É soberbamente superior essa atitude misteriosa. É, além disso, fonte copiosa de sensações do mistério e de terror: as larvas do astral, os estranhos entes de corpos diversos que a magia cerimonial evoca nos seus templos, as presenças desencarnadas da matéria deste plano, que pairam em torno aos nossos sentidos fechados, no silêncio físico do som interior — tudo isso nos acaricia com uma mão viscosa, terrível, no desabrigo e na escuridão.

Mas não simpatizamos com os ocultistas na parte em que eles são apóstolos e amadores da humanidade; isso os despe do seu mistério. A única razão para um ocultista funcionar no astral é sob a condição de o fazer por estética superior, e não para o sinistro fim de fazer bem a qualquer pessoa.

Quase sem o sabermos morde-nos uma simpatia ancestral pela magia negra, pelas formas proibidas da ciência transcendente, pelos Senhores do Poder que se venderam à Condenação e à Reencarnação degradada. Os nossos olhos de débeis e de incertos perdem-se, com um cio feminino, na teoria dos graus invertidos, nos ritos inversos, na curva sinistra da hierarquia descendente.

Satan, sem que o queiramos, possui para nós uma sugestão como que de macho para a fêmea. A serpente da Inteligência Material enroscou-se-nos no coração, como no Caduceu simbólico do Deus que comunica — Mercúrio, senhor da Compreensão.

Aqueles de nós que não são pederastas desejariam ter a coragem de o ser. Toda a inapetência para a acção inevitavelmente feminiza. Falhámos a nossa verdadeira profissão de donas de casa e de castelãs sem que fazer por um transvio de sexo na encarnação presente. Embora não acreditemos absolutamente nisto, sabe ao sangue da ironia fazer em nós como se o acreditássemos.

(from above) Tudo isto não é por maldade, mas por debilidade apenas. Adoramos, a sós, o Mal, não por ele ser o Mal, mas porque ele é mais intenso e forte que o Bem, e tudo quanto é intenso e forte atrai os nervos que deviam ser de mulher. Pecca fortiter não pode ser connosco, que não temos força, nem sequer a da inteligência, que é a que temos. Pensa em pecar fortemente — é o mais que para nós pode valer essa indicação aguda. Mas nem mesmo isso às vezes nos é possível: a própria vida interior tem uma realidade que às vezes nos dói por ser uma realidade qualquer. Haver leis para a associação de ideias, como para todas as operações do espírito insulta a nossa indisciplina nativa.

s.d.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982









02 junho 2018

miguel torga / transe



Coimbra, 30 de Março de 1955


Nem tudo é lei da vida ou lei da morte.
Há limbos onde o homem desconhece
Esse dilema hostil.
É quando ama, ou sonha, ou faz poemas,
E a própria natureza o não domina.
Então, livre e perfeito,
Paira no tempo como o pó suspenso.
Nem do céu, nem da terra, nem sujeito
Ao pesadelo de nenhum consenso.



miguel torga
diário VII
1956






01 junho 2018

tomas tranströmer / folha de agenda de cabeceira




Uma noite de maio aterrei
num lugar gélido
onde erva e flores eram pardas
mas o aroma exalado de cor verde.

Lá fui seguindo encosta acima
naquela noite daltónica,
enquanto pedras brancas
sinalizavam o caminho para a lua.

Um lapso de tempo
de uns minutos de altura
e cinquenta e oito anos de largura.

Atrás de mim,
para além do brilho difuso da água,
avistava-se a outra costa
e os que ali detinham o poder.

Gente com futuro
em vez  de semblantes



tomas tranströmer 
50 poemas
tradução de alexandre pastor
relógio d´água
2012