31 dezembro 2011

clarice lispector / feliz ano novo



(Texto publicado (Folha de São Paulo) originalmente em forma corrida
(prosa) e "rearrumado" em versos livres, sem a autorização do autor,
mas como homenagem ao intenso conteúdo poético, por
Soares Feitosa.)




                O ano de ver 
                através do vidro o eclipse do sol contra a neblina
                pela janela da infância, 
                o ano de ver as primeiras imagens de
                minha mãe, 
                que era uma Greta Garbo linda 
                com ombros altos e cabelo de coque "bomba atômica" 
                e lábios vermelhos, o ano 
                da coqueluche em que meu pai me levou de avião até 4.000 metros
                para curar a tosse entre nuvens, 
 

                o ano de temer o quarto onde
                meus pais conceberiam 
                minha irmã, o ano de olhar árvores, bichos
                e gente como se eu morasse 
                fora do mundo (mistério que até hoje dura), 
                o ano do medo de levar porrada nas ruas da infância, o ano
                das pernas das mulheres, colunas altas e distantes 
                (até hoje), 
                o ano dos fantasmas do fundo do corredor, 
                o ano do cachorro
                atropelado, o ano dos meninos se comendo de solidão, 
                o ano de ficar olhando o vento no quintal, 
                o ano dos formigueiros, 
                o ano do sarampo e sua lâmpada vermelha, 
                o ano da catapora, o ano da luz azul do quarto da pneumonia de minha irmã, 
                o ano da cabeça quebrada, o ano da cara quebrada, 
                o ano de entender o porquê
                dos miseráveis do morro da Mangueira 
                perto de minha casa, 
 

                o ano de ver o primeiro filme de minha vida, o "Ladrão de Bagdá", 
                e ficar sonhando com as coxas da odalisca no tapete voador, 
                o ano dos balões no céu, o ano do Mercury "grená" de meu pai
                brilhando na luz da rua, 
                o ano do cuspe, o ano da porrada na esquina, 
                o ano dos palavrões, o ano da "merda" e da "puta que pariu", 
                o ano da inveja, o ano da bicicleta, o ano da primeira
                namorada que me tratava 
                como nada, 
                o ano de temer a Deus e de contar 
                meus crimes aos padres negros de quem eu beijava a mão,
                o ano em que um padre me deu um beijo na boca e eu fugi 
                com pânico na alma, 
                o ano do Porcolino, do Pernalonga, o ano do Hortelino Trocaletra, 
                das mil e uma noites, o ano da mula-sem-cabeça e do mendigo 
                que dava mijo para a mãe, o ano
                da camisa-de-vênus boiando na beira da praia, o ano do negro
                comendo a empregada no quarto de passar roupa, o ano da
                febre, o ano da violência dos colegas de colégio, o ano dos
                padres jesuítas sofrendo de solidão nas clausuras e o ano 
                das lâmpadas tristes das noites do colégio, 
 

                o ano das velas de cera
                na igreja, o ano dos paramentos, o ano do coroinha sem fé, o ano
                do covarde, 
                o ano do perigo de ser currado nos fundos do colégio, 
                o ano do soco na cara do mais forte e do sangue no nariz do valentão, 
                o ano 
                da descoberta do orgulho, 
                o ano do Tarzan, 
                o ano do Super-Homem, o ano da porra, 
                o ano da punheta de esguicho que ia até o teto de ladrilho 
                por causa da primeira mulher de biquíni na praia, 
                o ano da punheta pela empregada de peitos grandes e que deixava 
                quase tudo, 
                o ano da dor nos rins, o ano
                de entrar no porão com a menina, 
                o ano de sentir o gosto de cuspe da menina, 
                o ano de sentir o cheiro 
                do entrepernas da menina e ficar 
                com aquele cheiro até hoje, 
                o ano da primeira 
                mulher e, antes da primeira mulher, 
                o ano da descoberta da literatura 
                e de Rimbaud e o ano 
                de ficar escrevendo o dia inteiro
                numa febre 
                de descobrir qualquer coisa que ainda acho que vou achar, 
 

                o ano agora sim, da primeira mulher, 
                uma aeromoça louca da Panair que parecia uma odalisca 
                caída do céu, 
                o ano do meu corpo e do corpo da mulher, 
                o ano das lágrimas quentes, o ano
                da solidão, 
                o ano das pernas cruzadas dos primeiros puteiros
                visitados, 
                o ano do Mangue, da indescritível visão do Mangue que só Segall conheceu, 
                com as mil mulheres tremendo a língua para fora e 
                de calça e sutiã nas calçadas, o ano dos bordéis antigos da luz mortiça, 
                o ano das coxas, dos peitos, o ano cabeludo, 
                o ano oleoso, o ano das peles, o ano dos vasos de louça, 
                o ano de nada entender, 
                o ano da gonorréia, o ano de Thereza e de comer o primeiro amor e de flutuar 
                de paixão a um palmo das calçadas de Copacabana, 
 

                o ano da lua dourada, do sol vermelho, o ano de Ipanema, 
                de Leila Diniz, 
                o ano dos gritos 
                da mulher amada no colchão sujo e esfiapado que era um aparelho do Partido
                Comunista numa noite de chuva, 
                o ano do amor e da revolução,
                as duas coisas se confundindo 
                ("serão as bombas ou meu coração batendo?" diria o Bogart em "Casablanca"), 
                o ano da UNE
                pegando fogo, 
                o ano dos exilados, o ano de Corisco, o ano de Tom e Vinicius, 
 

                o ano do "Carcará", o ano do cinema 
                novo da noite negra do Ato 5, o ano que não terminou, 
                o ano da boca fechada, o ano da boca no cano de descarga, o ano do nervo 
                do dente exposto na boca do torturado, o ano das unhas 
                arrancadas,
                o ano dos gritos, 
                o ano dos guerrilheiros 
                suicidas, o ano de cortar
                a barriga com a faca de bambu, o ano de cortar 
                os pulsos com gilete 
                enferrujada, 
                o ano das cabeças 
                muito loucas, o ano de viver
                perigosamente, 
 

                o ano da mescalina e do ácido, o ano das pernas e
                dos braços virando cobras na "bad trip" da beira da praia, o ano
                das ondas vermelhas e céus tangerina, 
                o ano de Copacabana
                virando gelatina colorida, 
                o ano de Janis Joplin de porre comigo
                num puteiro baiano cantando ponto de candomblé, 
                o ano da esperança nova, o ano de Nelson Rodrigues, 
                de Darlene Glória, 
                o ano das filhas nascendo dentro de um buraco estrelado, 
                o ano da esperança de sentido, 
                o ano da inocência, 
                o ano da ingenuidade, o
                ano do leite, 
                o ano do ventre molhado, o ano dos quartos escuros,
                o ano da vida, o ano do sol, o ano do jambo vermelho, 
                o ano das formigas, o ano das bonecas, 
                o ano do olho furado, o ano de ficar
                louco, 
 

                o ano do corno, o ano do babaca, o ano de comer mulher,
                o ano de chorar, o ano de aprender a viver de novo, 
                o ano do "vamos ver", o ano do "que será o amanhã?", 
                o ano do cachorro, o ano da vaca louca, o ano da cachorra no ar, 
                o ano da beira do
                abismo, 
 

                o ano da volta à democracia, o ano do não, o ano do sim,
                o ano de Collor, o ano do Itamar, o ano da hiperinflação, 
                o ano da inflação zero, 
                o ano dos Mamonas, 
                o ano dos caruarus, o ano dos carajás, 
                o ano dos genovevas, o ano dos cachorros quentes explodindo, 
                o ano dos desacontecimentos, o ano dos cabelos brancos, 
                o ano do último vôo livre de minha mãe.
                1996, 

                o ano da expectativa, 
                o ano dos adiamentos, o ano da 
                esperança, 
                o ano 
                que ainda não começou e acaba hoje. 
                1996, 
                o ano 
                que vai começar em 97, feliz ano novo...




                 clarice lispector





30 dezembro 2011

hans-ulrich treichel / regras da casa





Nunca omitir os infortúnios
e contar cada história até
ao fim. Tapar com panos
os espelhos; facas debaixo
da mesa. Consolar a coruja e
trinchar o morcego.
Nunca perder a raiva, aconteça
o que acontecer. Deixar entrar
quem quer que seja.





hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994




29 dezembro 2011

pere gimferrer / primeiro poema






Eu, que fundei todos os meus desejos
sob vários géneros de eternidade,
vejo a minha sombra crescendo ao sol de Julho
sobre o pavimento de cristal e de prata,
enquanto numa baforada ardente
a morte ocupa o seu lugar debaixo dos guarda-sóis.
O vime, as bebidas de cores vivas, as luzes oxigenadas que pingam devagar,
banhando num obscuro esplendor os torsos, acariciando
com fulgores de ferro luzente uns ombros nus, uns olhos eléctricos,
um doirado tombar de mão no ar silencioso
o resplendor de uma cabeleira caindo desalinhada
entre música suave e luzes indirectas,
todas as sombras da minha juventude
numa habitual figuração poética.
Às vezes, nas tardes de tormenta, uma aranha avermelhada pousa
nas vidraças
e pelos seus olhos são fixamente olhados os bosques enfeitiçados.
Salas interiores, mágicas para os silenciosos guardiões de ébano, felinos
e nocturnos como senegaleses,
cujos passos quase não soam no meu coração!
De noite não se acordam os melros do seu prateado sonho.
Assim são estas horas de juventude, pálidas como ondinas
ou heroínas de ópera,
tão frágeis que morrem não de viver mas de sonhar.

No seu envoltório de veludo obscuro dorme o príncipe.
Abandonados caracóis na sua mão se entrelaçam. Fundamente caídas
as pestanas velaram os seus olhos como uma gota de verniz e de amianto.
A escondida tepidez das coxas faz deslizar o seu suspiro de gavião agonizante.
O peito arfa como uma harpa desfolhada no Inverno e sob o casaco de malha
o coração deixa suavemente de bater.
Amados olhos, doces horas de ferro e de fogo
rosas de carne incandescente e delicada, fulgores de magnésio
que me surpreendeis a sombra nos bares nocturnos ou ao sair do cinema, salvai
meu coração em agonia sob a luz pesada e densa dos holofotes!

A noite cai como uma fina lâmina de aço.
É a hora em que o ar põe as cadeiras em desordem, revolteia sob os toldos
faz tilintar os copos, parte um ou outro, roça regressa suspira e de repente
esmaga um homem contra uma parede com um surdo estalo repercutido.

Beija-me entre a névoa, minha amada. Ficou a noite tão fria
neste par de horas. Está o luar tão borrascoso e tão húmido
como numa antiga fita de amor e espionagem.
Deixa-me guardar entre as mãos uma estrela do mar.
Que pele tão delicada tu rasgarás com os dentes. Morte
que lábios, que respiração, que peito doce e mórbido

tu afogas.





pere gimferrer
la muerte en beverly hills
1967.
(tradução de nicolau saião)




28 dezembro 2011

yorgos seferis / caligrama




Velas no Nilo,
pássaros sem canto com uma asa
procuram sem rumor a outra;
tocam com os dedos no céu ausente
o corpo de um efebo em mármore;
escrevem com invisível tinta no claro azul
um grito de desespero.


                                       Nilo, «Os Pombos»




yorgos seferis
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães
e nikos pratisinis
relógio d´água
1993




27 dezembro 2011

les murray / um arco-íris completamente vulgar




Ouve-se dizer em Repins,
o boato segue por Lorenzinis,
em Tattersalls, homens levantam os olhos de folhas de números,
os escrevinhadores da Bolsa esquecem o giz que têm na mão
e homens com pão nos bolsos saem do Clube Grego:
Há um tipo que chora em Martin Place. Não o conseguem deter.

O tráfico em George Street está engarrafado meio quilómetro,
sem se mover. As multidões conversam nervosamente
e mais multidões chegam a correr. Muitos atropelam-se em ruas
           laterais
que minutos antes eram atarefadas ruas principais, apontando:
Há um tipo que chora lá em baixo. Ninguém o consegue deter.

O homem que rodeamos, o homem de que ninguém se aproxima
chora simplesmente e nem sequer o esconde, não chora
como uma criança, nem como o vento, chora como um homem
e não o proclama, nem bate no peito, nem sequer
soluça muito alto – mas a dignidade do seu choro

mantém-nos afastados do seu espaço, do vazio que constrói à sua volta
na luz do meio-dia, no seu pentagrama de dor
e os funcionários na multidão que o tentaram agarrar
olham para ele, abismados, com o espírito
desejando lágrimas como crianças um arco-íris.

Alguns dirão, anos depois, que havia uma auréola
ou um campo de força à sua volta. Não há nada disso.
Alguns dirão que se sentiam chocados e o teriam detido,
mas esses não estiveram lá. A virilidade mais bravia,
a reserva mais áspera, a inteligência mais astuta ali presente

treme em silêncio, e arde com juízos
inesperados de paz. No ajuntamento alguns gritam,
que se julgavam felizes. Só as crianças mais pequenas
e os que parecem ter saído do Paraíso se acercam dele
e sentam-se aos seus pés, junto de cães e pombos sujos de pó.

Ridículo, diz um homem perto de mim, e tapa
a boca com as mãos como se tivesse pronunciado um vómito ─
e vejo uma mulher, brilhando, estender a mão
e tremer quando recebe a dívida do choro;
todos quantos a seguem também a recebem
e muitos choram só por terem aceite e muitos mais
recusam-se a chorar com medo de toada a aceitação.,
mas o homem que chora, como a terra, nada exige,
o homem que chora ignora-os, e o que na
sua face contorcida e no seu corpo vulgar ele exclama

não são palavras, mas dor, não são mensagens, mas pena,
duras como a terra, simples, existentes como o mar.
e quando pára, caminha placidamente por entre nós
limpando a cara com a dignidade de um
homem que chorou e agora acabou de chorar.

Evitando crentes, ele apressa-se pela Pitt Street.







les murray
trad. josé alberto oliveira
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001






26 dezembro 2011

leonardo chioda / ou os meandros





ver os verbos
enfeitiçar
caminho propício a um olhar mais longo
ou os meandros

manter
os deuses cativos
rezar - aos espíritos num livramento de horas
feminilizar o chão
e homens
somados à
costura dos tempos na derme
do léxico
assimilado no vento

perdoar
perder e
desladrilhar a tarde
aquela das ruas
nuas
talvez cruas
sobre alguma chuva.

bifurcar
-se nos vãos
da palavra o sexo,
o quadro
a ruptura do medo
então sob alguma navalha
tecer os galos
ou os meandros

o amanhã a quem o sabe.







25 dezembro 2011

s. kierkegaard / que os outros lamentem…


Que os outros lamentem que os tempos sejam maus; eu lamento que sejam miseráveis ─ pois são desprovidos de paixão. Os pensamentos dos homens são ténues e frágeis como rendas, eles próprios são dignos de pena, como rendeiras. Os pensamentos do seu coração são mesquinhos demais para serem pecaminosos. Talvez para um verme pudesse ser considerado pecado alimentar tais pensamentos ─ não para um homem, que foi feito à imagem de Deus. Os seus prazeres são comedidos e moles; as suas paixões, sonolentas. Cumprem os seus deveres, essas almas de merceeiros; permitem-se, porém como os Judeus, cortar um pequeno pedaço na moeda; pensam que, por mais que Nosso Senhor tenha a contabilidade bem organizada, uma pessoa consegue bem escapar, aldrabando-o um pouco. Deviam ter vergonha! Por isso, a minha alma volta-se sempre outra vez para o Antigo Testamento e para Shakespeare. Aí, sente-se mesmo que são homens que falam: aí, odeia-se; aí, ama-se, mata-se o inimigo, amaldiçoa-se a sua descendência por todas as gerações; aí, peca-se.




s. kierkegaard
diapsalmata
assírio & alvim
2011


23 dezembro 2011

antonio gamoneda / descrição da mentira





Neste país, neste tempo cuja angústia se desenha em lápides de
     mercúrio,

vou estender os meus braços e penetrar na erva,

vou deslizar na espessura do azevinho para que tu me advirtas,
     para que me convoques na humidade das tuas axilas.

Ainda há luz sobre os ramos abatidos e o meu valor descobre-se em
     sílabas nas quais tu e os rostos actuam como grânulos silvestres,

como espermas excitados até penetrarem na bugia do som,

até submergirem  o meu corpo em águas que não palpitam,

até cobrirem o meu rosto com as pomadas da majestade.

Não é uma glorificação, não é que tenha caído púrpura sobre os
     meus ossos;

 é mais belo e antigo: alentar sobre o vinagre até o tornar azul,
     adiantar uma faca e retirá-la húmida de uma exsudação que
     dignifica o esgrimista.

Agradeço a pobreza para que a pobreza não me maldiga e me
     conceda anéis que me distingam de quando fui puro e legislava
     na negação.

Cheiro os testemunhos do que é sujo sobre a terra e não me recon-
     cílio mas amo o que ficou de nós.

Estou velho de mim mesmo, porém há estigmas. Chegaram os vi-
     sitantes. Há formigas debaixo das chagas.

Sinto a fertilidade que se refugia na ira dos meus cabelos e ouço a
     fuga das espécies que nos abandonaram.

Cessei a compaixão porque a compaixão me entregava a príncipes
     cujas medalhas se afundavam no coração das minhas filhas.

Eu farei com os príncipes uma destilação que será nociva para eles
     mas excitante e doce na povoação como é o sumo guardado
     em vasilhas muito escuras.

Não recorrerei à verdade porque a verdade disse não e colocou
     ácidos no meu corpo.

Que verdade existe no ventre das pombas?

A verdade está na língua ou no espaço dos espelhos?

A verdade é o que se responde às perguntas dos príncipes?

Qual é então a resposta às perguntas dos oleiros?

Se levantares uma túnica encontrarás um corpo mas não uma
     pergunta:

para quê as palavras enxutas em cíngulos ou as construídas em
     esquinas imóveis,

as convertidas em lâminas e, em seguida, despojadas e ávidas?

Ou melhor: alguma vez fui cínico como asfalto ou pelame?

Não se trata disso, apenas que o asfalto possuía a minha memória e
     as minhas exclamações relatavam a perdição e a inimizade.

A nossa sorte é difícil reclusa na beladona e nos recipientes que
     não devem ser abertos.

Sujo, é o mundo; porém respira. E tu entras no quarto como
     um animal resplandecente.

Depois do conhecimento e do esquecimento que paixão me con-
     cerne?

Não hei-de responder mas sim reunir-me com tudo o que está ofe-
     recido nos átrios e na distribuição dos resíduos,

com tudo o que treme debaixo da noite.





antonio gamoneda
descrição da mentira
trad. vasco gato
quasi
2003


22 dezembro 2011

juan gelman / o jogo em que andamos





Se me dessem a escolher, escolheria
esta saúde de saber que estamos doentes,
esta felicidade de andarmos tão infelizes.
Se me dessem a escolher, escolheria
esta inocência de não ser um inocente,
esta pureza em que passo por impuro.
Se me dessem a escolher, escolheria
este amor com que odeio,
esta esperança que come pães desesperados.
Aqui acontece, senhores,
que jogo com a morte.




juan gelman
versão de luís filipe parrado




21 dezembro 2011

gil t. sousa / claríssimo lugar




43

e chega-se ao lugar
do saber
ao claríssimo lugar
de tudo se nos correr no coração
como luz
como um animal devotado
e louco
branco, muito branco
caído nos olhos fechados
no outro lado
como se fosse enfim
a morte




gil t. sousa
falso lugar
2004




20 dezembro 2011

al berto / recado





ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte

vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer -- vai por esse campo
de crateras extintas -- vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite

deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo -- deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração -- ouve-me

que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna -- o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite

não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira -- não esqueças o ouro
o marfim -- os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço




al berto
horto de incêndio
assírio & alvim
1997



19 dezembro 2011

edmundo de bettencourt / consagração





Tinham desaparecido
as casas da cidade.
E havia agora uma praça,
donde a população olhava o céu, à espera.

O avião chegou.
Vinha sobre uma nuvem branca,
que irradiava aromas,
a claridade e a música, pelos ares...

O aviador de fora e à frente,
conduzia-o
e andava no ar como no chão!

De repente o avião desceu
vertiginosamente!

Caía...

E embora não se ouvisse explosão,
em baixo
um fumo negro, imenso, com destroços,
e o fogo, começaram subindo
à altura em que o avião pairava antes.

A multidão,
rápida,
como as águas duma enchente,
escoou-se...

Depois mais nada;
isto é:
somente uma infinita escuridão por sobre
a qual a palavra perdão jamais será escrita!





edmundo de bettencourt
poemas surdos
assírio & alvim
1981


17 dezembro 2011

armando silva carvalho / cavalos persas, papagaios, panteras





Cavalos persas, papagaios, panteras
e um elefante branco que borrifava as gentes
- tal era a embaixada de D. Manuel
a Leão o Décimo
em frente da qual o paquiderme
ajoelhou três vezes.
Assim se transportou Portugal a Roma.
Um circo a abarrotar por entre os deuses
(Miguel Ângelo) que transpiravam
a melancolia da solidão e da grandeza.
Num tempo em que se incrementava
a poesia didáctica de formosos temas
que iam do xadrez à criação dos bichos-da-seda
ou até à sífilis do célebre Frascator.
Aliás o Papa, de pestilenta fístula,
perito ele em xadrez,
poderia ter ouvido dizer a um da sua família,
Lourenço de Médicis: devemos desconfiar
da parte dianteira dos bois,
da parte de trás das mulas
e das duas partes dos frades.
Comia-se no ouro. Ou se roubava gado.
Como fez Giovanna Catanei - a Vanozza,
primeira amante de Alexandre VI.
Em Roma, como agora,
os poetas não passam de macacos
que se acolhem sob o sol papal.
Como esse Aretino que seria um nome
nos cristais e nos rios,
na testa dos bastardos e dos avarentos,
na vagina sábia das Impérias
e no peito dos cardeais que folgam.
«Com uma pena de papel faço troça de tudo
e até mesmo de mim parece Deus ter medo.»

  



armando silva carvalho
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001





16 dezembro 2011

adrienne rich / os tigres da tia jennifer






Os tigres da tia Jennifer cruzam uma trama,
Cidadãos de fulvo quartzo num verde panorama.
Nada receiam dos homens ocultos na folhagem;
Desfilam com dignidade, galhardia e coragem.

As mãos da tia Jennifer manobram com desvelo
A agulha de marfim que a custo puxa o novelo.
No anel da Tia Jennifer o peso do meu Tio
Submete e verga o dedo que outrora cingiu.

Essas mãos amedrontadas, quando ela morrer,
Ficarão ainda algemadas ao que aceitou sofrer.
E na trama aqueles tigres por suas mãos cerzidos
Hão-de ficar desfilando, altivos e destemidos.




adrienne rich
a change of world, 1951
tradução de margarida vale de gato





15 dezembro 2011

luís filipe parrado / o tempo que faz






Os velhos sentam-se neste banco
a avaliar o tempo que faz encostados a uma empena
escura, mais antiga do que eles. Também eu,
escondido na sombra, deixei para trás
a luz das dunas. A visão pinta com cores cegas
o lugar onde a alegria se desfez, uma história
de águas perdidas no coração da terra.
O fim de um amor é como um sonho.
Ainda hoje o fumo dos cigarros me sabe
melhor pelo sopro da manhã
depois de um sono sereno. As limalhas radiantes
no túnel mostram como se cai no limbo negro do horizonte,
no rio espesso após o crepúsculo.
Sim, soube tarde de mais o que podia dizer
da minha vida, com a boca fechada por correntes
e trapos estava simplesmente morto.
Como os velhos que continuam sentados neste banco
acordo a tempo de comprar algum pão
e varrer do passado o teu rosto, uma promessa estilhaçada,
um grão de juventude que me guia com uma pequena luz
que só no vento destas palavras se mantém.




luís filipe parrado
criatura
nr. 4
2009





14 dezembro 2011

carlos edmundo de ory / poema





A minha boca é uma chaga
O meu trabalho é o silêncio
Eu e a noite dormimos juntos
e nunca dormimos




carlos edmundo de ory
doze nós numa corda
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & Alvim
1997