15 setembro 2011

e. e. cummings / estas crianças que cantam em pedra






estas crianças que cantam em pedra um
silêncio de pedra estas
pequenitos envoltos em flores
de pedra que se abrem para

sempre estes silenciosamente pe
quenitos são pétalas
a canção deles é uma flor de
sempre as suas flores

de pedra
cantam silenciosamente
um canto mais silencioso
que o silêncio estas sempre

crianças para sempre
que cantam em grinaldas de flores
cantantes crianças de
pedra com olhos

a florir
sabem se uma
pe quena
árvore escuta

para sempre crianças que cantam para sempre
um canto feito
de silêncio como pedra silêncio de
canto






e. e. cummings
leituras
poemas do inglês
trad. joão ferreira duarte
relógio d´água
1993



14 setembro 2011

michel deguy / europa em lisboa






O amor libertou-se da prisão do Amor
Olha. Sobra este belo vazio
de amor esvaziado. Este lenço de mármore
que a amante agitava ao oceano agitado
ou a amante cativa ao trovador cativo


E agora descreve o castelo de água pétrea

O castelo da vigia capitã
Que levou Renascentes a pensar em feudal
cumprido voto de um príncipe cumprindo o verso de Gôngora
essa “Torre de vento em rareza construída”

E agora
O liso tapete do Tejo alisado a seus pés se retira
O saber retirou-se também
Como jusante sob secura ignara
Onde notícias espalham uma espuma de datas

Da Torre de Belém à Torre de Stephen
Não quero maldizer o sentido da visita
Que autoriza o ticket cultural poliglota
Ali segui no ascensor a mulher da limpeza

Cuja função é manter este vazio bem vazio
Atar o laço da pedra ao terceiro patamar
Arrumar turbantes, de pedra escudos de pedra
         de sultão, de cruzado
                                          preparar o regresso
de Amor que não volta





michel deguy
trad. sophia de mello breyner andresen
sud-express
poesia francesa de hoje
relógio d´água
1993



13 setembro 2011

josé mateos / noite




Até de madrugada falámos e bebemos,
não interessa onde nem quais os assuntos.
Sobre as nossas palavras calado o firmamento
e querer desvendá-lo era mais do que um capricho.

Para quê tanta frase desdobrando uma ideia?
Para quê tanta citação tirada de livros?
Bastava o teu olhar para apagar a neblina
e as nossas intuições profundas de sentido.

Se tal noite calada era a noite de nós dois
e o amor, água escura de um saber infinito.







josé mateos
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000




12 setembro 2011

manuel simões / i quattro cavalli dell`apocalisse

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Stanno attenti ai segni, al rumore lagunare,
all`aria che obliqua trema sulle nervature
del corpo. Sottratti alla luce Bianca del deserto,
spiano l`erosione della pietra, il respirare
dell`autunno implacabile…




manuel simões
venezia
itinerari poetici
supernova
1992




11 setembro 2011

09 setembro 2011

rosario castellanos / amanhecer


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Que se faz na hora de morrer? Volta-se
a cara contra a parede?
Agarra-se pelos ombros o que está perto e ouve?
Deita-se cada um a correr, como o que tem
as roupas incendiadas, para chegar ao fim?

Qual é o rito desta cerimónia?
Quem vela a agonia? Quem puxa o lençol?
Quem afasta o espelho por embaciar?
Porque a esta hora não há mãe nem parentes.

Já não há soluço. Nada, mais que um silêncio atroz.
Todos são uma face atenta, incrédula
De homem de outra margem.

Porque o que sucede não é verdade.






rosario castellanos
trad. josé bento
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001
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08 setembro 2011

oscar wilde / o retrato de dorian gray

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Prefácio

O artista é o criador de coisas belas.
Revelar a arte e ocultar o artista é o objectivo da arte.
O crítico é aquele que sabe traduzir de outra maneira ou com material diferente a sua impressão das coisas belas.
A mais alta, assim como a mais baixa, forma de crítica é uma autobiografia.
Aqueles que encontram feias significações nas coisas belas são corruptos sem serem encantadores. É um defeito.
Aqueles que encontram belas significações nas coisas belas são cultos. Para esses há esperança. São os eleitos aqueles para quem as coisas belas apenas significam Beleza.
Não há livros morais nem imorais. Os livros são bem ou mal escritos. Nada mais.
A antipatia do século XIX pelo Realismo é a raiva de Caliban ao ver a sua cara no espelho.
A antipatia do século XIX pelo Romantismo é a raiva de Caliban por não ver a sua cara no espelho.
A vida moral do homem faz parte do assunto do artista, mas a moralidade da arte consiste no uso perfeito dum meio imperfeito. Nenhum artista deseja provar o que quer que seja. Até as coisas verdadeiras se podem provar.
Nenhum artista tem simpatias éticas. Uma simpatia ética num artista é um imperdoável maneirismo de estilo.
O artista nunca é mórbido. O artista pode exprimir tudo.
O pensamento e a linguagem são para o artista instrumento de arte.
O vício e a virtude são para o artista materiais de arte.
Sob o ponto de vista da forma, o tipo de todas as artes é a arte do músico. Sob o ponto de vista do sentimento, o tipo é a profissão de actor.
Toda a arte é ao mesmo tempo superfície e símbolo.
Aqueles que descem além da superfície fazem-no por seu próprio risco.
O mesmo sucede àqueles que lêem o símbolo.
É o espectador, e não a vida, que a arte realmente reflecte.
A diversidade de opiniões sobre uma obra de arte mostra que a obra é nova, complexa e vital.
Quando os críticos divergem, o artista está de acordo consigo mesmo.
Pode-se perdoar a um homem o fazer uma coisa útil, enquanto ele a não admira. A única desculpa que merece quem faz uma coisa inútil é admirá-la intensamente.
Toda a arte é absolutamente inútil.





oscar wilde
o retrato de dorian gray
trad. de januário leite
círculo de leitores
1972
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07 setembro 2011

gil t. sousa / cada palavra tua


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38

cada palavra tua
é agora uma ilha

um minuto mágico
de matar silêncios

cresceu-te no olhar
um lugar de adeus

e dizes os nomes
dás-nos os gestos

que, afinal,
te ferviam no coração



gil t. sousa
falso lugar
2004
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06 setembro 2011

abel neves / quatro vezes sete versos para aquela rapariga


(excerto)




Enquanto não vens  nem tu sabes  é assim
uma casa que só cheirasse a uvas de Setembro
Este quarto  esta sala onde o som contínuo é Out of
Nowhere soprado pelo Charlie Parker
Há calma com vento que vem quente enquanto não vens
e podes ter a certeza que o soalho vai ter aroma de estações
A que menos entenderes para melhor a desejares




abel neves
poezz
jazz na poesia em língua portuguesa
josé duarte e ricardo antónio alves
almedina
2004






05 setembro 2011

jean cocteau / o pacote vermelho


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O meu sangue transformou-se em tinta. Era preciso impedir a todo o custo essa nojeira. Estou envenenado até aos ossos. Cantava no escuro, e agora é o canto o que me mete medo. Mais ainda: estou leproso. Sabem daquelas manchas de humidade que parecem um perfil? Não sei que encanto da lepra engana o mundo e o autoriza a beijar-me. Pior para ele! As consequências não me dizem respeito. Nunca exibi senão chagas. Fala-se de graciosa fantasia: a culpa é minha. É loucura alguém exibir-se inutilmente.

A minha desordem empilha-se até ao céu. Os que eu amei existiam pendurados do céu por um elástico. Voltasse eu a cabeça... e já lá não estavam.

De manhã, debruço-me, debruço-me, e deixo-me cair. Caio de fadiga, de dor, de sono. Sou inculto, nulo. Não sei um número, uma data, um nome de rio, uma língua, viva ou morta. Tenho zero em geografia e em história. Se não fossem uns passes de mágica, corriam comigo. Além do mais, roubei os documentos a um tal J.C., nascido em M.L., no dia......, e que morreu com dezoito anos, depois de uma brilhante carreira poética.

Esta cabeleira, este sistema nervoso, mal implantados, esta França, esta terra, não me pertencem. Dão-me agonias. Sempre os dispo à noite, em sonhos.
   
Pois aqui largo o pacote. Que me fechem num hospício, que me linchem. Quem puder que entenda. Eu sou uma mentira que diz sempre a verdade.








jean cocteau
poesia do século xx
(de thomas hardy a c. v. cattaneo)
antologia e tradução de jorge de sena
editorial inova
1978
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03 setembro 2011

josé carlos ary dos santos / o sangue das palavras





1

O poeta que nasce é uma criança
parida pela água torturada
uma nave que surge uma nuvem que dança
ao mesmo tempo livre e condensada.
O poeta que nasce é a matança
da palavra demente e enjeitada
que o chicote do poema torna mansa
depois de possuída e mal amada.
Quando o poeta nasce a madrugada
aperta os versos num abraço rouco
até que a noite fique esvaziada.
E enquanto das palavras pouco a pouco
surge a forma perfeita ou agitada
no mundo morre um deus ou nasce um louco.

(...)


5

Versos? Paguei-os. Alegria e raiva.
As palavras por vezes impotentes
outras vezes escorrendo sangue e seiva
ao morderem a vida com os dentes.
Poesia que és uns dias minha noiva
com seios de palavras complacentes.
Poesia que outras vezes grita e uiva
fêmea capaz de fecundar sementes.
Poesia minha amiga minha irmã
mulher da minha vida que inventei
para fazermos filhos amanhã.
Poesia minha força e meu castigo
meu incesto tão puro que nem sei
se é verdade que faço amor contigo.




ary dos santos
o sangue das palavras
lisboa
1979


01 setembro 2011

manólis anagnostákis / a decisão







Vocês são a favor ou contra?
Respondam sim ou não.
Decerto já pensaram no problema
Creio sinceramente que ele os tem preocupado.
Tudo na vida traz preocupações
Crianças mulheres insectos
Plantas nocivas, horas sem proveito
Paixões difíceis, dentes cariados
Filmes medíocres. E isto decerto os preocupa.
Sejam responsáveis e digam: Sim ou não.
A vocês é que cabe decidir.
Não lhes pedimos evidentemente que abandonem
Suas ocupações, que interrompam sua vida
O jornal preferido o bate-papo
No barbeiro os domingos ao ar livre.
Uma palavra só. Vamos, então:
Vocês são contra ou a favor?
Pensem bem: Eu fico à espera.





manólis anagnostákis
trad. josé paulo paes
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001







luís miguel nava / identidade





Ignoro o que ao certo seja ser, mas, seja o que for, dispõe de intensidade própria e regulável como o som dum aparelho ou a velocidade dum motor. Há momentos em que «sou» mais do que noutros, em que, se assim pode dizer-se, tenho a minha identidade acelerada.






luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
o céu sob as entranhas
publicações dom quixote
2002




31 agosto 2011

paul auster / desenterrar



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XIX

Ainda morrem os mortos: e neles
os vivos. Todo o espaço,
e os olhos, caçados
por frágeis utensílios, confinados
às suas vestes.
Respirar é aceitar
esta falta de ar, a única respiração,
procurada nas fissuras
da memória, no lapso que aparta
esta linguagem de trincheiras, sem a qual a terra
teria ofertado mais férrea profecia
para erodir os pomares
de pedra. Nem ao menos o silêncio
me persegue.







paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002
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30 agosto 2011

tom raworth / aniversário




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o comboio segue, procurando alcançar o fim do escuro

pelo tempo que nos resta, se me permites,
abjuro e renuncio à minha insegurança
vês, dou-te esta bala com o meu nome escrito
adapta-se à tua boca exactamente. certamente
as palavras que a disparam são desconhecidas de nós dois
por enquanto, gastei canais no ar deste quarto
que são meus, uma roda de caminhos
da secretária à porta, à mesa. agora mesmo sem
pensar, cheguei a ponta acesa do cigarro
à falena que passeava no meu canivete
e só quando volteou e estremeceu compreendi
o que fizera. um cometa. os desenhos no céu.

nós seis movemo-nos na noite
cada um levando uma candeia de cor diferente.





tom raworth
poesia do mundo
tradução de adriana bebiano
afrontamento
1995

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29 agosto 2011

antónio ramos rosa / não posso adiar o amor


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Não posso adiar o amor para outro século
Não posso
Ainda que o grito sufoque na garganta
Ainda que o ódio estale e crepite e arda
Sob montanhas cinzentas
E montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
Que é uma arma de dois gumes
Amor e ódio

Não posso adiar
Ainda que a noite pese séculos sobre as costas
E a aurora indecisa demore
Não posso adiar para outro século a minha vida
Nem o meu amor
Nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração





antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985

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28 agosto 2011

josé amaro dionísio / s de solidão


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Solidão é uma palavra obscena. É mesmo a única palavra irremediavelmente obscena de que já ouvi falar. Cheira a atropelos, pudor, colhões, e tenho medo. Medo – um homem pode dar por si  a cometer crimes sem grandeza. Assassinar, por exemplo. Princípios superlativamente adolescentes. Prefiro a decomposição da pele, uma taberna entre cabeços, o petróleo de candeeiros que projectem sombras imóveis, recantos, pequenos estrumes. E já agora, se me dão licença,  um frio de certo modo inculto a bater no vidro da janela, nos ossos, talvez nos ossos quando se acaba o dinheiro. Mas é humano, bárbaro e humano. Uma espécie de sinfonia entregue ao poder de cada qual, arrecadações da alma, mansas. E dardejante o círculo azul de um copo de aguardente, aguardente, imagine-se, a saltar dentro de si, a subir, a subir, e um homem a dizer, imortal: senta-te, copo. Bebe comigo. E ele senta-se e bebe. É remoto, quase no outro lado das trevas. Mas magnifico, oh, tão magnífico. E ainda há quem me fale de escritores, romances, e até de revoluções. Balelas. Quero uma nora que pare o mundo rente ao fogo do inferno. E a água detida, doente, de preferência afogada pela mão de Deus a arder. Nada de riscos. Eis do que falo. Precário, inviolado, entregue ao soalho.






josé amaro dionísio
sião
antologia
org. al berto, paulo da costa domingos e rui baião
frenesi
1987
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26 agosto 2011

marcelino vespeira / manequim visado



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Ter fomes polidas
de desejos vadios
e mapas sensatos
de aventuras falidas

E ter um sorriso morno
de manequim visado…





marcelino vespeira
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998
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25 agosto 2011

não comprem livros na fnac do gaia-shopping



Uma livraria que me obriga a rastejar para encontrar um livro de Poesia, não me merece confiança nem consideração.

É recorrente nesta FNAC os livros de poesia serem remetidos para o esgoto da loja: a secção de poesia nunca está no mesmo sítio e está sempre no sítio pior, remetida à mais obscura estante da loja.

Hoje lá estava eu de gatas na alcatifa para tentar encontrar um livro, nariz ao nível das havaianas e ténis dos veraneantes empurrados pela chuva para o centro comercial.

Mas foi a última vez. 

Acrescento hoje uma nova regra ao meu manual de cidadão/consumidor: nunca comprar um livro num sítio que me obrigue a pôr de cócoras para encontrar Fernando Pessoa ou qualquer outro poeta.

Convido-vos, caros amigos, a fazerem  o mesmo.