13 outubro 2022

gemma gorga / a casa

 
Os ossos são longos corredores onde faz sempre
frio, como se a morte tivesse deixado a porta
aberta. Talvez seja no coração que primeiro
germina a espora da dor, húmida e vermelha,
mas é nos ossos que essa dor perdura,
insistente, como um grão de areia feito pó.
O ar fica carregado, e desprende-se, dispara, espalha
fotografias sobre estas toalhas
onde é tão difícil acabar o jantar
agora que já não existes, agora que a sala se enche
de absurdas borboletas da memória.
Tento prender-lhes as asas com agulhas
muito finas, mas sem querer perfuro os meus próprios dentes
e lábios. E já não consigo dizer, já não consigo fazer
mais nada a não ser passa-las de uma mão para a outra:
fotografias como pequenas caveiras
entre o ser do passado e o não ser do presente.
 
 
 
gemma gorga
a desordem das mãos (2003)
o anjo da chuva
trad. miguel filipe mochila
do lado esquerdo
2021




 

12 outubro 2022

fernando ortiz / na idade perfeita

 
 
O sabor do café e o cigarro,
o pausado passeio cada tarde,
o cheiro da terra quando chove,
a grata conversa com um amigo
e uma rara página gostada
são teu amor à vida, os teus sentidos.
Aprofundam-se as feridas com o tempo
embora ele mesmo esconda as cicatrizes.
Passou a juventude e o que tens
chamam-lhe os néscios maturidade.
 
 
 
fernando ortiz
poesia espanhola de agora vol. I
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997
 




11 outubro 2022

robert desnos / literatura



 

Hoje gostaria de escrever uns versos bonitos
Tal como aqueles que lia quando andava na
                                                         escola
Isso às vezes punha-me os sonhos do avesso
Também é possível que eu seja um pouco
                                                           louco
 
Mas contar todas estas palavras acoplar estas
                                                         sílabas
Parece-me um trabalho fastidioso de formiga
Perderia nisso o meu latim o meu chinês o
                                                    meu árabe
E até o sono meu prestável amigo
 
Escreverei então como falo e será uma pena
Se algum gramático surgido da penumbra
Quiser condenar-me com cólera e desprezo
Há outra ciência onde posso confundi-lo.
 
 
 
robert desnos
luto por luto / poemas
trad. diogo paiva
sr teste edições
2022


 


10 outubro 2022

paulo campos dos reis / os cães ladram

 



 

Como se vive não sei.
Sei que vivo pouco cansado
com palavras virgens na chegada
e um corpo de rapaz no caminho.
 
Amor e morte não me assustam.
A caravana passa.
 
 
 
paulo campos dos reis
habilitações literárias
volta d´mar
2022




09 outubro 2022

john donne / mudança





elegia III
 
Embora a tua mão e fé, e também as boas obras
Tenham selado o teu amor, que nada pode destruir,
Sim, e porém te retrates, essa apostasia
Confirma o teu amor; agora muito, muito te temos.
As mulheres são como as Artes, comprometidas com nenhum,
Abertas a todos os inquiridores, sem valor se desconhecidas.
Se eu apanhar um pássaro, e o deixar fugir,
Outro embusteiro, usando os mesmos meios que eu,
Pode apanhar o mesmo pássaro; e, dado as coisas serem assim,
As mulheres são para os homens, não para ele, nem para mim.
Raposas e bodes; todas as bestas mudam quando lhes apraz;
E as mulheres, mais quentes, manhosas e selvagens,
Deveriam a um só homem sujeitar-se? Tê-las-ia então a Natureza
Por desfastio, feito mais aptas a resistir que o homem?
São as nossas grilhetas, não de si próprias; se um homem
For acorrentado a uma galé, a galé continua livre;
Quem tem uma terra arável, lança-lhe toda a semente,
E admite ainda que o seu solo mais grão devesse gerar;
Embora o Danúbio corra para o mar,
O mar recebe o Reno, o Volga e o Pó.
Pela natureza, que lha deu, esta liberdade
Amas tu, mas Oh! Não poderás amá-la a ela, e a mim?
A semelhança cola o amor: E se isto tu assim fizeres,
Tornando-nos iguais, e a amar, deverei eu também mudar?
Mais do que o teu ódio, odeio isso, deixa-me antes
Permitir-lhe que mude, e não mudar tanto quanto ela,
E assim, não ensinar, mas forçar a minha ideia
A amar, não uma qualquer, nem a todas.
Viver numa só terra é cativeiro,
Correr todos os países, uma desenfreada velhacaria;
As águas depressa fedem, se num só lugar descansam,
E no vasto mar ainda mais apodrecem:
Mas quando beijam uma margem, e deixando-a
Nunca olhando para trás, a próxima margem vão beijar,
Então são as mais puras; a Mudança é a creche
Da música, da alegria, da vida e eternidade.
 
 
 
john donne
elegias amorosas
trad. helena barbas
assírio & alvim
1997






 

08 outubro 2022

joão melo / amigos

 



 
Penso nos velhos amigos,
em especial os que se foram cedo demais ou,
de tanto terem mudado
se tornaram irreconhecíveis
 
Penso nos amigos recentes,
que se foram chegando,
com ou sem aviso,
fazendo esquecer ou não
os velhos amigos
 
Penso nos futuros amigos,
que, estou certo, se cruzarão comigo
um dia destes,
sombrio ou ensolarado
 
Ainda não penso em partir,
mas tenho a certeza:
quando for,
hei-de levá-los a todos no meu coração
 
Mesmo os que tiverem deixado de ser,
de facto ou ilusoriamente,
meus amigos
 
 
 
joão melo
diário do medo
editora urutau
2021
 

 


07 outubro 2022

sebastião belfort cerqueira / nada

 



 
É mesmo verdade
Nada interessa
Nem o fim do mundo
Mundo
Nem sombras dessa pressa
Se à sombra destes junco
Um mundo a dois começa
 
A calma branca e os dias molhados
São nossos pra fazer o que quisermos
E os velhos medos vão sendo afogados
Pelo bater das pás
Dos nossos remos
Descansados e em paz no meio do rio
E descansados
 
É mesmo verdade
Nada interessa
Não há nada que peses ou que me impeça
Se tenho ao meu lado
A ajudar
A dizer-me de onde vem o vento
Que às vezes se levanta
Aqui dentro
E a usá-la pra nos fazer andar.
 
 
 
sebastião belfort cerqueira
está um dia lindo
edições sempre-em-pé
2021
 



06 outubro 2022

john ashbery / a outra tradição



 

Todos eles vieram, alguns traziam sentimentos
Gravados em t-shirts, anunciando o adiantado
Da hora, e de facto o sol inclinava os seus raios
Por entre ramos de araucária como se
Polidamente tossisse, e todas as ideias assentaram
Num veludo de pó debaixo de árvores quando chuvisca:
Os infindáveis jogos de Scrabble, os apoiantes,
A célebre omelette au Cantal, e no meio de tudo isso
A voragem do tempo mergulhando sem freio pelas comportas
Dos dias, arrastando todos os seus momentos sexuais
Frente às lentes: o fim de alguma coisa.
Só então ergueste os olhos do teu livro,
Incapaz de compreender o que estivera a passar-se ou de
Dizer o que estiveras a ler. Trouxeram-se
Mais cadeiras, e acenderam-se candeeiros, mas nada
Explica como tudo isto começou a materializar-se
À tua frente e as pessoas à espera lá fora e na rua
Seguinte, repetindo-lhe uma e outra vez o nome, até o silêncio
Ascender a meio dos troncos escurecidos,
E a reunião ser dada por iniciada.
                                                            Ainda me lembro
De como te encontraram, após um sonho, de chapéu-dedal,
Absorto como uma borboleta num parque de estacionamento.
O caminho para casa era na altura melhor. Afastando-se, cada um dos
Trovadores tinha algo a dizer sobre o modo como a caridade
Seguira o seu curso e vencera, deixando-te ex-presidente
Do acontecimento, e como, embora muitos dos presentes
Desejassem que isso levasse a alguma coisa, mesmo que a um longínquo
Fio de fumo, nenhum estava tão iludido que aspirasse
A essa fresca não-existência de alguns minutos antes,
Agora que a ideia de uma floresta se pregara
Sobre as minúcias da cena. Achaste isto
Encantador, mas viraste abertamente a cara à noite
Falando para dentro dela como um megafone, sem ouvires
Ou te preocupares, embora estes ainda vivam e sejam generosos
E de todas as maneiras contidos, autorizados a entrar e a sair
Indefinidamente para dentro e para fora da paliçada
Têm imensa dificuldade em lembrar-se, quando o teu esquecimento
Por fim os salva, como uma estrela absorve a noite.
 
 
 
john ashbery
auto-retrato num espelho convexo e outros poemas
tradução antónio m. feijó
relógio d’ água
1995

 


 

05 outubro 2022

konstandinos kavafis / no porto

 


 

Por um barco de Tenos, jovem, há vinte e oito anos nascido,
Émès a este porto sírio foi trazido
com o intuito de aprender a ser de essências vendedor.
Porém adoeceu na viagem de mar. E logo ao pôr
os pés em terra, morreu. O enterro pobre até mais não poder ser
teve lugar aqui. Algo, poucas horas antes de morrer,
«casa», «pais muito velhos», num murmúrio dizia.
Mas quem eram estes ninguém sabia,
nem qual no grande mundo heleno a dele terá sido.
Melhor. Pois enquanto assim
jaz neste porto falecido,
hão-de esperá-lo vivo seus pais até ao fim.
 
 
 
konstandinos kavafis
os poemas
II (1916-1918)
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
2005




04 outubro 2022

manuel neto dos santos / terra firme, mar de anil

 



4
 
Deserto febril, esta imensa avareza de vos gritar que existo.
Sou pescador de estrelas e o meu sangue ora tem sinais de
tinta outras vezes látegos de fogo para que persista, famin-
to de sombras, a definição de todos os anjos ainda por criar.
Deserto febril, recanto onde os deuses pagãos arrefecem as
mãos escaldantes nesse crepúsculo da alegria… a que cha-
mamos Saudade.
Eis a terra firme mar de Annir pois que a lembrança é a
Mãe de tudo e a infância tudo alaga, inunda e invade.
 
 
 
manuel neto dos santos
terra firme, mar de anil
editora urutau
2021





03 outubro 2022

maurice blanchot / não sou sábio…

 


 

 
Não sou sábio, nem ignorante. Tive alegrias. Isto será dizer pouco: vivo e esta vida concede-me o maior prazer. Então e a morte? Quando morrer (o que poderá acontecer a qualquer instante), sentirei um enorme prazer. Não falo da antevisão da morte, que é insípida e frequentemente desagradável. O sofrimento entorpece os sentidos. mas esta é a incrível verdade e dela estou certo: sinto um ilimitado prazer em viver e terei uma ilimitada satisfação ao morrer.
 
 
 
maurice blanchot
a loucura do dia
trad. ricardo ribeiro
sr teste edições
2021





02 outubro 2022

virgínia woolf / o oculista disse-me esta tarde

 
 
(1929)
Sexta-feira, 31 de Maio
 
 
 
O oculista disse-me esta tarde: “Talvez a senhora já não seja tão jovem como era”. Esta é a primeira vez que me dizem isto; pareceu-me uma afirmação espantosa. Significa que agora pareço a um estranho não uma mulher, mas uma senhora idosa. Porém, mesmo assim, embora me sentisse enrugada e envelhecida durante uma hora, e adoptasse uma atitude de grande sabedoria e tolerância, ao comprar um casaco, mesmo assim, depressa me esqueci; e volto a ser uma “mulher”.
 
Votámos em Rodmell. Vi uma senhora de luvas brancas a ajudar um velho casal de lavradores a descer do Daimler dela. comprámos uma máquina de cortar relva a motor. Tudo parece um pouco estranho e simbólico quando regresso. Estava com uma disposição estranha, achando-me muito velha: mas agora volto a ser uma mulher – como sou sempre quando escrevo. Dispersa-me e acalora-me este viajar de automóvel de um lado para o outro.
 
 
 
virgínia woolf
diários
trad. jorge vaz de carvalho
relógio d´água
2018
 




01 outubro 2022

sophia de mello breyner andresen / l’ âge d´airain

 (Rodin)
 
 
 
Devagar, devagar, em frente à luz
Carregado de sombras e de peso
Arrancando o seu corpo da raiz
 
No extremo dos seus dedos nasce um voo
No vértice do vento e da manhã
Uma asa vai – perdida dos seus dedos.
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
obra poética I
caminho
1999