07 novembro 2025

konstandinos kaváfis / para ficar

  
 
As horas uma da noite havia de ser,
ou uma e meia.

                       Num canto do tasco;
por detrás da divisória de madeira.
Além de nós os dois o sítio completamente vazio.
Um candeeiro de petróleo mal o iluminava.
Dormia, à porta, o criado por causa da demora.
 
Não nos veria ninguém. mas já
nos tínhamos acalorado tanto,
que nos tornámos inadequados para precauções.
 
As roupas entreabriram-se – muitas não eram
pois ardia um mês de Julho divino.
 
Deleite de carne por entre
as roupas entreabertas;
rápido desnudamento de carne – cuja imagem ideal
atravessou vinte e seis anos; e agora veio
para ficar nesta poesia.
 
 
konstandinos kavafis
os poemas
I (1919-1932)
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
2005




06 novembro 2025

charles bukowski / sol a descer

  
 
ninguém lamenta que eu esteja de partida,
nem eu;
mas devia haver um trovador
ou pelo menos um copo de vinho.
 
creio que isto incomoda principalmente os jovens:
uma morte lenta e pacífica.
ainda faz um homem sonhar;
anseias por um velho veleiro,
a vela branca com sal incrustado
e o mar a sacudir indícios de imortalidade.
 
mar no nariz
mar no cabelo
mar no tutano, nos olhos
e sim, aí dentro do peito.
será que sentiremos saudades
do amor de uma mulher ou da música ou da comida
ou do salto do grande e furioso cavalo
musculado, coiceando torrões de terra e destinos
ao alto e para fora
no momento exacto em que o sol se põe?
 
mas agora é a minha vez
e não há majestade nisto
porque não houve majestade
antes
e cada um de nós, como vermes que escavaram
                                   a saída de dentro de maçãs,
não merece qualquer reprimenda.
 
a morte entra-me na boca
e serpenteia ao longo dos meus dentes
e pergunto-me se tenho medo deste
morrer mudo, sem arrependimentos, que é
como o murchar de uma rosa.
 
 
 
charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018




 

05 novembro 2025

federico garcia lorca / adelina em passeio

  
 
Não tem laranjas o mar,
nem Sevilha tem amor.
Morena, que luz de fogo!
Empresta-me o guarda-sol.
 
Pôr-me-á a cara verde
– sumo de lima e limão –.
Tuas palavras – peixinhos –
nadarão em seu redor.
 
Não tem laranjas o mar.
Ai amor.
Nem Sevilha tem amor!
 
 
 
federico garcia lorca
poemas
trad. de eugénio de andrade
assírio & alvim
2013
 



04 novembro 2025

juan ramón jimenez / às vezes, sinto

  
 
137
 
Às vezes, sinto
como a rosa
que serei um dia, como a asa
que serei um dia;
e envolve-me um perfume, alheio e meu,
meu e de rosa;
e um vaguear me prende, alheio e meu,
meu e de pássaro.
 
 
 
juan ramón jimenez
antologia poética
tradução de josé bento
relógio d’água
1992




03 novembro 2025

john ashbery / na quinta do norte

  
 
Algures alguém viaja furiosamente ao teu encontro,
A uma velocidade incrível, viajando dia e noite
Por entre nevões e calores do deserto, transpondo torrentes, atravessando desfila-
                                                                                                           [deiros.
Mas saberá ele onde te encontrar?
Reconhecer-te-á quando te vir?
Dir-te-á a coisa que tem para ti?
 
 
Aqui quase nada cresce,
E contudo os celeiros estão a abarrotar,
As sacas de grão empilhadas até às traves do tecto.
Os ribeiros correm docemente, engordando o peixe;
Pássaros escurecem o céu. Será que basta
Deixar a malga do leite lá fora à noite,
Pensar nele às vezes,
Às vezes e sempre, com sentimentos confusos?



john ashbery
uma onda e outros poemas
tradução colectiva / joão barrento
poetas em mateus
quetzal editores
1992



 

02 novembro 2025

bernardo soares / escrever é esquecer

  
 
Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. A música embala, as artes visuais animam, as artes vivas (como a dança e o representar) entretêm. A primeira, porém, afasta-se da vida por fazer dela um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida — umas porque usam de fórmulas visíveis e portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana.
 
 
Não é esse o caso da literatura. Essa simula a vida. Um romance é uma história do que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de ideias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso.
 
s.d.
 
 
 
fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982




 

01 novembro 2025

rui caeiro / saber que o verão

  
 
Saber que o Verão foi uma vez e pronto, saber que a paixão idem idem, mas saber também que tudo se passa como se não, isto é, como se o não soubesse ou o Verão durasse sempre.
E também por isso não devem escrever-se poemas de amor: ficam a mirrar e a desbotar no papel pelos séculos dos séculos.
 
 
 
rui caeiro
sobre a nossa morte bem muito obrigado
baba de caracol
maldoror
2019





31 outubro 2025

rui diniz / ode aos ateadores de incêndio

  
Na nudez dos mares pousei mãos curtidas.
Acendi o fogão no quarto. «Cheira aqui
a petróleo.» Era com efeito um cheiro de lacre,
de ganchos para o cabelo queimado ao
rubro. Fiz também queimar nessa noite alguns
castiçais de velas – espécimes preciosos
e raríssimos. Havia sobre as mesas e
o soalho fósforos franceses. Pus fogo
a uma vivenda junto ao mar. fiz isso em
memória de Ana de Rivera que passava as
noites de inverno no seu quarto,
queimando fósforos.
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022




30 outubro 2025

rui lage / da limpeza das matas



 

 
Desconhecem os versos
que escreves na terra
a firmes golpes de enxada
ou que recolhes em cestos,
maçãs de sol,
rotundos pêssegos
 
líricos frutos para os quais
não há leitores.
 
Ignoram como te segues
no voo da perdiz
quando o machado abala o tronco
no coração da floresta.
 
 
 
rui lage
corvo
quasi
2008
 



 

29 outubro 2025

rui nunes / vésperas portuguesas



 

 
o dia corre de poente para nascente, a chuva
é um lençol tenso sobre os velhos que separam
as lembranças, com palavras que não chegam
a dizer: esquecem os subterfúgios do tempo
e avançam cambaleantes pelas grandes fissuras
entregues ao despovoamento alucinante
 
no interior dos carros, os crimes
são ligeiras confidências
 
 
 
rui nunes
ofício de vésperas
relógio d’ água
2007
 



 

28 outubro 2025

rui costa / o homem azul

  
 
Há muito que tento escrever um poema
sobre o canteiro de um homem azul no labor
das mãos. O homem seria cego porque a visão
não facultaria o modo de selecionar os minerais ou
a resistência das proteínas à fúria das ideias trazidas
pelo vento. Na verdade, as mãos deste homem não seriam
mãos como as de outros animais – dos corvos, por exemplo –
capazes de ouvir, do fundo intuído da sua genética
consciência, mesmo aqueles pequenos actos que ainda não
aconteceram. O homem azul já aprendeu, aliás, que cada
tentativa de despojamento traz consigo mais um
camião de areia
que acaba por ser demasiado sólida perante o orgulho das
pétalas mais breves.
Quando alguém volta a cabeça para baixo o céu começa
a duvidar e então, diz o azul do mundo, a planta que precisa
de atenção vê o bafo ainda quente do homem azul.
 
 
 
rui costa
«não sou quem era quando lhe mordi a orelha»
mike tyson para principiantes
antologia poética
assírio & alvim
2017





 

27 outubro 2025

ruy belo / em cima de meus dias

  
 
Muita gente me tem falado a meu respeito
como quem me chamasse pelo nome e eu me voltasse
e nesse nome dito nessa boca fosse toda a minha vida
e eu morresse quando entre pinhais quem me chamara a fechasse
 
Muita gente me tem falado a meu respeito
mas eu cresço e decresço não reparo e anoitece
e já nem sei ao certo quantos dias meço
Regresso com o gado contra o sol rasante
Mas é de névoa ou fumo o algodão que cobre as casas
aonde regressamos atraídos pela luz que já nos campos se consome?
 
Os ciprestes os pássaros saúdam-me e eu passo
com um olho vazado transpareço o meu passado
e tudo esqueço e peço mesmo a Deus que esqueça quanto sou
além dessa medida simples onde me vasou
Sabermos nós que a face de algum mar ao pôr-do-sol pode mudar
e nenhum dia-a-dia consentir ao homem mais que a morna superfície
dos gestos por que troca a mais íntima morte que merece
 
Nada na minha poesia é meu
juro por Deus dizer toda a verdade
Ponho a mão na cabeça o dia é escuro e vago e eu respiro
Espero pela manhã como quem nasce
Ninguém sabe o meu nome porque
eu já perdi ao longe alguns dos olhos
e fui feliz em cafés de província onde me vi sentar
 
Digam que foi mentira, que não sou ninguém,
que atravesso apenas ruas da cidade abandonada
fechada como boca onde não encontro nada:
não encontro respostas para tudo o que pergunto nem
na verdade pergunto coisas por aí além
Eu não vivi ali em tempo algum
 
É de manhã caminho nem meus passos oiço
oitenta passos diz-se que darei
Vão-se fechando os dois alinhamentos das moradas
arredonda-se o largo, alguns problemas camarários
Duvido de mim próprio: quem serei?
O carro rega coisas tão profundas como esta
Meu Deus meu Deus, que mal eu fiz?
Eu estive em Dinard e vou talvez casar
Acordo e transistorizo os dois ouvidos numa música abundante
 
Muita gente me tem falado a meu respeito
mas eu cresço e minguo certas vezes anoitece
Sou coisa que se molha encolhe e envelhece
tudo me aquece e tudo me arrefece
Dois pés e duas mãos, algumas pás de terra
E sabem mesmo que o meu nome é Rá, por isso me conhecem
Sou a doença e sou onde me dói
sou sítio onde se nega que se morre
Tem graça haver quem fale a meu respeito
 
 
 
ruy belo
todos os poemas I
sete coisas verdadeiras
assírio & alvim
2004





26 outubro 2025

rui knopfli / o velho

  
 
Não envelheço. Torno-me antigo.
O velho sempre viveu em mim,
sempre o pressenti no olhar
magoado demorando-se nas coisas,
em certa lentidão não premeditada
dos gestos e nas lembranças confusas
de uma outra recuada idade.
Sempre aflorou na mão e na estima
triste que se estende aos amigos,
na aresta de desconsolo que espreita
as minhas horas de amor.
O velho sempre viveu em mim.
Eis que, enfim, o reboco
se lhe começa a assemelhar.
 
 
 
rui knopfli
maxila triste
memória consentida
20 anos de poesia 1959/1979
imprensa nacional -casa da moeda
1982