13 abril 2025

júlio dinis / não te amo

 



 

 

Amo as noites de luar.
Amo a lua, o sol, o céu.
Amo as estrelas e o mar;
Mas não amo o rosto teu.
 
Amo das aves o canto,
Dos bosques o sussurrar,
Na voz da brisa acho encanto;
Mas não amo o teu cantar.
 
Amo a cor da branca rosa
Entre as flores bela flor,
Da violeta a cor mimosa;
Mas não amo a tua cor.
 
Amo o brilho das estrelas
Que fulguram lá nos céus,
O da lua em noites belas
Mas não o dos olhos teus.
 
Amo toda a natureza,
Tudo nela me sorri,
Em tudo encontro beleza;
Mas não sinto amor por ti.
 
1857
 
 
 
júlio dinis
obras completas de julio dinis vol. II
poesias
círculo de leitores
1979
 



12 abril 2025

alberto caeiro / esta tarde a trovoada caiu

 
 
 
IV
 
 Esta tarde a trovoada caiu
Pelas encostas do céu abaixo
Como um pedregulho enorme...
Como alguém que duma janela alta
Sacode uma toalha de mesa,
E as migalhas, por caírem todas juntas,
Fazem algum barulho ao cair,
A chuva chovia do céu
E enegreceu os caminhos...
 
Quando os relâmpagos sacudiam o ar
E abanavam o espaço
Como uma grande cabeça que diz que não,
Não sei porquê — eu não tinha medo —
Pus-me a rezar a Santa Bárbara
Como se eu fosse a velha tia de alguém...
 
Ah! é que rezando a Santa Bárbara
Eu sentia-me ainda mais simples
Do que julgo que sou...
Sentia-me familiar e caseiro
E tendo passado a vida
Tranquilamente, como o muro do quintal;
Tendo ideias e sentimentos por os ter
Como uma flor tem perfume e cor...
 
Sentia-me alguém que possa acreditar em Santa Bárbara...
Ah, poder crer em Santa Bárbara!
 
(Quem crê que há Santa Bárbara,
Julgará que ela é gente visível
Ou que julgará dela?)
 
(Que artifício! Que sabem
As flores, as árvores, os rebanhos,
De Santa Bárbara?... Um ramo de árvore,
Se pensasse, nunca podia
Construir santos nem anjos...
Poderia julgar que o Sol
É Deus, e que a trovoada
É uma quantidade de gente
Zangada por cima de nós…
Ah, como os mais simples dos homens
São doentes e confusos e estúpidos
Ao pé da clara simplicidade
E saúde em existir
Das árvores e das plantas!)
 
E eu, pensando em tudo isto,
Fiquei outra vez menos feliz...
Fiquei sombrio e adoecido e soturno
Como um dia em que todo o dia a trovoada ameaça
E nem sequer de noite chega...
 
s.d.
 
 
 
alberto caeiro
o guardador de rebanhos
poemas de alberto caeiro
fernando pessoa
ática
1946



11 abril 2025

lawrence ferlinghetti / a rua comprida

 
 
A rua comprida
que é a rua do mundo
passa em volta do mundo
cheia de toda a gente do mundo
para não falar de todas as vozes
de todas as pessoas
que jamais existiram
Amantes e choramingas
virgens e dorminhocos
vendedores chulos e homens-sanduíche
leiteiros e oradores
banqueiros sem tusa
donas de casa friáveis
com snobs ligaduras de nylon
desertos de publicitários
rebanhos de poldras do ensino secundário
hordas de universitários
todos a falar pelos cotovelos
e a dar as suas voltas
ou a dependurar-se em janelas
para ver o que está a dar
lá fora no mundo
onde tudo acontece
mais tarde ou mais cedo
se é que acontece
E a rua comprida
que é a mais comprida
do mundo inteiro
mas não é tão comprida
como parece
vai passando
por todas as cidades e todas as cenas
descendo cada viela
subindo todas as avenidas
através de todos os cruzamentos
através de semáforos vermelhos e verdes
as cidades à luz do sol
os continentes à chuva
as esfomeadas Hong Kongs
as Tuscaloosas áridas
as Oaklands da alma
as Dublins da imaginação
E a rua comprida
desenrola-se por toda a parte
como um enorme comboio de brincar
apitando e baforando pelo mundo
com passageiros ao rubro
e bebés e cestas de piquenique
e cães e gatos
e todos eles a quererem saber
quem será que lá vai
à frente na cabine
a conduzir o comboio
se é que vai
o comboio que corre à volta do mundo
como um mundo às voltas
todos a quererem saber
o que haverá à frente
se houver
e há pessoas que se debruçam
e espreitam para longe
a ver se conseguem
vislumbrar o maquinista
na sua cabine de um só olho
a ver se conseguem vê-lo
relancear-lhe o rosto
deitar-lhe o olho
no giro de uma curva
mas nunca conseguem
embora de vez em quando
pareçam quase
E a rua segue a gingar
o comboio segue a disparar
com as suas janelas a subir
as suas janelas as janelas
de todos os prédios
de todas as ruas do mundo
a disparar
através da luz do mundo
através da noite do mundo
com luzinhas nos cruzamentos
luzes perdidas piscando
hordas nos carnavais
circos dos bosques da noite
bordéis e parlamentos
fontes esquecidas
portas para sótãos e portas por sitiar
silhuetas nos lampiões
pálidos ídolos bailando
enquanto segue o mundo a gingar
Mas chegamos agora
à parte solitária da rua
a parte da rua
que dá a volta
à parte solitária do mundo
E este é o sítio
onde se muda de comboio
para o expresso de Brighton Beach
Este não é o sítio
onde se faça alguma coisa
Esta é a parte do mundo
onde não acontece nada
onde ninguém faz nada
acontecer
onde não há ninguém em lado nenhum
ninguém em parte alguma
a não ser tu
nem sequer um espelho
para fazer dois de ti
nem vivalma
a não ser a tua
se calhar
e mesmo essa
não existe
se calhar
ou não te pertence
se calhar
porque tu estás o que se chama
morto
chegaste à tua estação
 
 
É favor descer



lawrence ferlinghetti
mensagens orais
uma coney Island da mente
tradução margarida vale de gato
antígona
2024
 


10 abril 2025

wislawa szymborska / tudo

 
 
 
Tudo –
palavra atrevida e enfunada de soberba.
Deveria escrever-se entre aspas.
Aparenta nada omitir,
tudo reunir, abarcar, conter e ter.
Porém, não é mais
do que um farrapo do caos
 
 
 
wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006





09 abril 2025

primo levi / aos amigos

 
 
Caros amigos, aqui digo amigos
No sentido mais amplo da palavra:
Mulher, irmã, camaradas, parentes,
Pessoas vistas uma só vez,
Ou com quem se conviveu toda a vida:
Contanto que entre nós, pelo menos um momento,
Se tenha estendido um segmento,
Uma corda bem definida.
 
A vocês vos digo, companheiros de um caminho
Denso, não poupado a trabalhos,
E também a vocês, que perderam
A alma, o ânimo, a vontade de viver.
Ou a ninguém, ou alguém ou talvez só a um, ou a ti
Que me lês: lembra o tempo,
Antes da cera endurecida,
Em que cada um era como um sinete.
Entre nós cada um traz a marca
Do amigo encontrado no caminho;
Em cada um o rasto de cada um.
Para o bem e para o mal
Em sageza ou em folia
Cada um estampado em cada um.
 
Agora que o tempo urge apressado,
Que as tarefas terminaram,
A todos faço o humilde voto
De que o Outono seja longo e brando.
 
16 de Dezembro, 1985
 
 
 
primo levi
a uma hora incerta
trad. rui miguel ribeiro
edições do saguão
2024




 

08 abril 2025

paul celan / flor

 
 
A pedra.
A pedra no ar, que segui.
O teu olhar, tão cego como a pedra.
 
Nós fomos
mãos,
esvaziámos a treva, encontrámos
a palavra, que subia do Verão:
flor.
 
Flor – uma palavra de cegos.
Os teus olhos e os meus olhos:
vão em busca
de água.
 
Crescimento.
folha a folha acrescenta
as paredes do coração.
 
Uma palavra ainda, como esta, e os martelos
rodopiam ao ar livre.
 
 
 
paul celan
sete rosas mais tarde
antologia poética
trad. joão barrento e y. k. centeno
relógio d´água
2023




07 abril 2025

zbigniew herbert / a aldrava

 
 
 
Há quem cultive um jardim
na cabeça
e seus cabelos sejam veredas
para cidades soalheiras e brancas
 
é-lhes fácil escrever
fecham os olhos
e da testa já escorrem
cardumes de imagens
 
minha imaginação
é um pedaço de tábua
e meu único instrumento
é uma vara de pau
 
bato na tábua
e ela responde-me
sim-sim
não-não
 
outros têm o sino verde da árvore
o sino azul da água
eu tenho a aldrava
de jardins desprotegidos
 
bato na tábua
e ela sussurra
um poema árido de moralista
sim-sim
não-não
 
 
 
zbigniew herbert 
poesia quase toda
tradução de teresa fernandes swiatkiewicz
cavalo de ferro
2024





 

06 abril 2025

antonio moreno / geografia II

 
 
 
Debaixo do ardor do meio-dia o canto
que enevoa o pensamento
bulício das cigarras e do estio.
Onde estão as ideias que ateavam
o mundo e, junto dele, o vigor,
a antiga forma de olhar em redor?
Ali, onde antes tive certezas
como torres com que alcançar as coisas,
um espaço de figueiras amadurecidas,
um legado de terra se estende para mim.
Percorro com os olhos o seu silêncio
enquanto se afirma paralelo o meu:
quantas leituras houve,
as concórdias trazidas,
os rumos que tracei,
abandonados ao presente, ficam
inertes com as horas passageiras.
Ainda que seja na inércia do baldio,
na geografia da paisagem,
onde, certa, se encontre a unidade
de quanto sou face ao esquecimento.
 
 
 
antonio moreno
poesia espanhola de agora vol. II
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997




 

05 abril 2025

juan manuel villalba / extravio

 
 
 
Os lugares dourados que o futuro
prometeu são agora um grupo
de guerrilheiros mortos
na clareira de um bosque.
Dor mais invisível do que a dor.
Mas aceito a vida que me cabe
debaixo do peso gelado da noite,
a noite que em qualquer outro destino
– porventura menos incerto –
me pudera ter confortado.
Como quem vive com roupa emprestada;
como quem anda dentro
de um sobretudo que cheira a outra pessoa.
 
 
 
juan manuel villalba
poesia espanhola de agora vol. II
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997
 



04 abril 2025

federico garcia lorca / malaguenha

 
 
 
A morte
entra e sai
da taberna.
 
Passam cavalos negros
e gente sinistra
pelos fundos caminhos
da guitarra.
 
E há um cheiro a sal
e a sangue de fêmea
nos nardos febris
da beira-mar.
 
A morte
entra e sai,
e sai e entra
a morte
da taberna.
 
 
 
federico garcia lorca
poemas
trad. de eugénio de andrade
assírio & alvim
2013
 



03 abril 2025

konstandinos kaváfis / o sol da tarde

 
 
 
Este quarto, como o conheço bem.
Agora alugam-se quer este quer o do lado
para escritórios comerciais. A casa toda tornou-se
escritórios de intermediários, e de comerciantes, e Sociedades.
 
Ah este quarto, não é nada estranho.
 
Perto da porta por aqui estava o sofá,
e diante dele um tapete turco;
ao pé a prateleira com duas jarras amarelas.
À direita; não, em frente, um armário com espelho.
Ao meio a sua mesa de escrever;
e três grandes cadeiras de vime.
Ao lado da janela estava a cama
onde nos amámos tantas vezes.
 
Estarão ainda os coitados nalgum lugar.
 
Ao lado da janela estava a cama;
o sol da tarde chegava-lhe até metade.
 
… De tarde quatro horas, tínhamo-nos separado
por uma semana só… Ai de mim,
aquela semana tornou-se para sempre.
 
 
 
konstandinos kavafis
os poemas
II (1919-1932)
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
2005




02 abril 2025

giórgios seféris / o jardim e suas fontes sob a chuva

 
 
 
VI
 
                                            M.R.
 
O jardim e suas fontes sob a chuva,
hás-de vê-lo apenas da janela baixa
por trás do vidro fosco. O teu quarto
de luz só terá a chama da lareira
e às vezes ao luzir longínquo dos raios ver-se-ão
as rugas da tua fronte, velho amigo.
 
O jardim e suas fontes, que nas tuas mãos eram
ritmos de outra vida, para lá dos mármores
quebrados e das colunas trágicas
e um espaço entre os loureiros
junto à nova pedreira,
 
um vidro turvo ter-to-á cerceado de tuas horas;
não hás-de respirar; a terra e a seiva das árvores
saltarão dos teus sonhos para virem bater
a esta vidraça onde bate a chuva
do mundo lá fora.
 
 
De Mythistorema, 1935
 
 
 
giórgios seféris
a grécia de que falas…
antologia de poetas gregos modernos
trad. de manuel resende
língua morta
2021
 


01 abril 2025

kiki dimoulá / 1 de abril

 
 
 
Abril
– o famoso jardineiro –
pulou de manhã para o meu jardim maninho
e plantou uma maravilhosa rosa.
 
A primavera,
escondida atrás da rosa,
vê o meu espanto e ri-se,
e com a minha alegria sem limites
condecora o mago jardineiro.
 
 
 
kiki dimoulá
inimigo rumor 14
trad. manuel resende
livros cotovia
2003