08 janeiro 2025

miguel bonneville / livro do daniel

 
 
 
XLI.
 
depois de um dia inteiro
a lutar individualmente pela sua sobrevivência
os pássaros reúnem-se para criarem
em conjunto
um momento de beleza.
 
é esse o sentido de comunidade –
 
de todas as teorias que conheço,
é esta a que prefiro.
 
 
 
miguel bonneville
livro do daniel e outros textos
editora urutau
2024
 



07 janeiro 2025

pedro tamen / a água

 
 
1.
 
Agora muitos montes; e o rio
se levanta e corre nos intervalos
dos gestos. Saber sentir o frio
de todos os ribeiros é amá-los.
 
Agora é ir correndo os dedos
pela pele; abrir o peito
a todos os cuidados e segredos,
amar-me já refeito.
 
Agora perder tudo; ter aberta
a carne de aventura naufragada.
Agora receber e estar alerta,
 
agora ter razão na mão molhada.
Agora desnudar a lama certa
e esperar vê-la escorrida e bafejada.
 
 
 
pedro tamen
o sangue, a água e o vinho
tábua das matérias
poesia 1956/1991
círculo de leitores
1995
 


06 janeiro 2025

r. lino / outro círculo

 
 
 
1.
 
Certo é que outras palavras poderiam
transtornar estes dizeres
NAVIOS DE NEVOEIRO APONTADOS PARA O MAR
COM A TERRA NOS SEUS SONHOS.
Não se sabe para que olharam
ou do que viram o que contaram:
o esquecimento guiou alguns
para o futuro; de outros pouco mais sabemos
senão o peso que deixaram nas cidades,
apostas mais ou menos eficazes
e perversas sob o peso das nações.
Um fôlego enorme nasce com os dias
por notícias devastadas sobre a terra:
somos uns e somos outros
consoante as esquinas em que viramos.
De que modo nos apanha o corpo
o pensamento, este cheiro, aquela casa
uma tarde ou uma bala
é um tempo
marcado pelo ritmo de uma voz.
 
 
 
r. lino
paisagens de além tejo
políptico
companhia das ilhas
2016
 



05 janeiro 2025

jaime rocha / poema

 
 
 
Ao fundo, as nuvens chocam com as
casas. Os pássaros gritam e há homens
que se atiram das varandas como se
fossem vasos empurrados pelo vento.
Os carros esmagam os bichos que correm
pelo alcatrão. É quase Primavera, o frio
anuncia uma culpa antiga, a solidão
dos guerreiros. E há outro homem
que diz: gosto das árvores, do seu tronco
e das raízes que rasgam as calçadas. Esse
homem decidira viver porque pertencia
à humidade das paredes, aos telhados de
barro, às bétulas. Era dali que lhe vinha
a força dos braços, a claridade que se lhe
prendera à pele. Era esta a sua confissão.
Mas, após ter dito aquelas palavras lançou-se
para o espaço, seguindo a trajectória da chuva.
 
 
 
jaime rocha
resumo, a poesia em 2011
assírio & alvim
2012
 




04 janeiro 2025

Ifigenia doumi / impermeável

 
 
 
Sou impermeável às tuas palavras
escorregam por cima de mim, ora querendo
magoar-me ora querendo incitar-me.
Sou impermeável às tuas carícias;
pingam por cima da minha pele
a temperatura neutra.
 
Perguntas-te porque é que o chão se encheu de água.
Não tenho nada a dizer.
Não tenho nada a dizer.
 
[O céu estrelado é como as costas de um homem cheias de sinais.
Tu desejando mergulhar na escuridão,
e eles cravando-se nos teus olhos].
 
 
 
ifigenia doumi
tradução de nikos pratsinis
nervo/18
colectivo de poesia
maio/agosto 2023




 

03 janeiro 2025

joão pedro grabato dias / a arca

 
 
CCXCII
 
Tudo já se cumpriu e tudo é novo.
Tudo está por fazer, pois nada existe,
ainda. Não há mais estradas que as que
os teus pés vão abrindo, e o vento apaga
logo, farejador, cão do teu rasto.
Pelos marcos solenes que te apontam
os caminhos de qualquer fé que seja,
suspendem-se, enforcados, verdadeiros
enganos. Onde, alegre, te acene
nada, mas nada, é esse o teu caminho!
 
 
joão pedro grabato dias
odes didácticas
a arca, ode didáctica na primeira pessoa, 1971
tinta da china
2021




 

02 janeiro 2025

rui diniz / gente invulgar

 
 
Contemplei a galeria negra dos outonos etruscos.
Eram telas meditadas no exílio, na sofreguidão
azul das ilhas negras, pequenos vasos, fragmentos
de poemas onde os pórticos celebravam. Lentamente
os processos de impiedade foram florescendo na
grécia. E vi Aspásia exilada, corroída por um
choro ancestral, as suas vestes manchadas pelo
sangue escuro da desolação. Eram estes seres de
azuladas mãos, manejavam à estranha luz
tranquilos manuscritos, compunham a dolorosa
condenação dos mundos loucamente. Esculpiam
os talentosos mármores, planeavam nos
cérebros uma leve ascensão. O sorriso de Fídias
era finalmente coberto por folhas amarelecidas,
pelo orvalho, pelo vestido dos invernos, a neve
negra do interior do país, em montanhosas
maldições. Fídias olhava longamente a noite
como se ela fosse a ágora de Rodes. E, na
triste vastidão das águas pálidas, permanecia
deitado sobre a estrada, numa atitude escura.
Recordo-me que tomei o caminho das antigas
Arenas e sobre o pensamento desses lugares
tinham pousado uma doce e vingativa máscara
de tragédia. Então lembrei Sófocles escrevendo
lentamente, ouvindo a voz branca do demónio
que o habitara, longe, nesse tempo, instante
envelhecendo as colunas de um pó breve, a
decadência rubra dos recortes da costa, dos
litorais onde se decompunham sob o sol as tessálicas
palavras.
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
ossuário (ou: a vida de james whistler)
língua morta
2022





01 janeiro 2025

luís miguel nava / a preto e branco

 
 
 
Uma mulher encosta-se a um muro, encosta-se à memória. Veste duma maneira simples, uma blusa, uma saia cobrindo os joelhos, talvez uns tamancos. Tem ainda, amarrado à cabeça, um lenço negro, negros aliás e brancos todos os tons em que se veste, negros os tamancos, um casaco de lã sobre a blusa, negras ainda algumas das riscas da saia, brancas as outras, como a blusa. Encosta-se ao muro aonde cola as costas, os ombros e depois uma das faces, assim é mais fácil ver-lhe o rosto. As mãos encostá-las-ia também se não segurasse um lenço branco. Aperta-o entre os dedos, fá-lo passar entre eles, uma pequena serpente. Ou então amarrota-o, faz das palmas das mãos uma concha onde o esconde, o lenço assim desaparece totalmente, apenas as mãos se vêem projectadas para a frente, dir-se-ia que rezam. Depois, sempre ocultando o lenço, levam-no ao rosto novamente de perfil, tudo a preto e branco ainda, ou é o rosto que desce às mãos, mergulha no lenço, talvez este e a língua se procurem, uma língua pelo lenço adiante, uma língua é provável que vermelha, não, é tudo ainda muito a preto e branco, é tudo ainda demasiado a preto e branco para permitir um pormenor vermelho.
 
 
luís miguel nava
películas
poesia completa (1979-1994)
publicações dom quixote
2002
 



31 dezembro 2024

joaquim manuel magalhães / fogo, felpa, farmacopeia

 
 
 
A noite ficou branca uma vez mais.
Nesse luar vazio floresce a rocha,
a silva, o contorno do que nada acolhe.
Subo para a armação de ferro
e fungos e vírus e bactérias
esperam no pousio alagado,
relíquias celestiais, a natureza.
Tiro uma a uma cada roupa
na voltagem do frio, mudo o que fui
por detrás da noite, no pesadelo.
 
Esmago as folhas da hortelã-brava,
um odor carnívoro que se mistura
à bruma roída dos barcos na lagoa.
Tudo tarde nas toalhas que nos limpam,
o sândalo deitado nos lençóis,
a linfa da estopa escura contra a luz.
Cor da açafroa, esse cardo cuja veste
Depois de morta é, como nos surge a noite,
macerada.
 
O arbusto aberto no muro, o varandim
e o trago da chama, o teu retrato. Uma espora
no centro do penhasco. Dessas coisas
que se perdem antes de lhes tocarmos.
O luar cai além do vidro, no desaire,
no alto morro preto onde este cansaço
por vezes é o deus.
 
O feixe sombrio lança sobre socalcos
outros socalcos mais escuros, no tecto
de madeira ameaçada, a caminho do saguão,
direito ao que fica por dizer.
Quando atravessa o farol da alvenaria
ilumina-o para dentro, essa parte
partida da revolta de que somos o resto
calcinado, sem fundura, um volume
trazido pela escuridão à despedida
e que não cessa de louvar
nessa alegria lacerada.
 
É melhor que no outro quarto o corpo,
o meu, o deles, a gruta abafada
da parede sem o reboco final,
acenda a noite com suores cobertos
pela lâmpada diminuta.
Que no outro quarto eu esqueça
a languidez suicida, o halo de passos
junto de um sabor, o conforto da derrota
que nos avisa com o longe, o sue esquife,
o bacelo translúcido despedaçado
e a viagem do sono, sem mais querer voltar.
 
Irão faltar-te as cartas que eu deixava
para tu pores os selos. Meu deus,
que mal faz a morte ao outro a quem
nos tira. Depois de nenhum mal nos fazer já
a nós.
 
Sempre que falo de noites assim
é o Douro visto da galeria. É Ariz. A minha avó
deu-me depois esta cadeira. Só lhe mudei
a lona. Apenas mudei eu. o pano cru
com a amarga simplicidade de tudo.
Cedro a cedro, a violência do que vai
diante de nós, dentro de mim.
Numa selha de zinco davam-me banho
e cantavam para eu não chorar,
é lá possível não chorar.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
alta noite em alta fraga
relógio d´água
2001
 



30 dezembro 2024

joan margarit / o rosto do meu pai

 
 
 
Olho-te entre a gente e tu não me vês.
Os músicos de rua
partilham os seus sons num ruidoso concerto.
Vejo na tua cara a queimadura
que o hábito de olhar-te
tinha já apagado.
A tua história distante
perde-se nos becos estreitos e obscuros
dos arredores da Rambla.
Talvez nalgum sítio ainda esteja o fogão
onde dos braços da tua mãe caíste
sobre o óleo a ferver.
Pesam os anos contigo
amontoados como neve num telhado.
Não me viste, e os meus olhos, como lábios,
roçam a tua barba de uns quantos dias
e a velha queimadura que te atravessa
a cara e a vida.
Todos caímos de alguns braços
e a horrorosa cicatriz acaba
por ser um sinal de amor e companhia.
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020




29 dezembro 2024

paul bowles / cena III

 
 
 
Às vezes a febre regressa e eu posso ver as montanhas,
a manhã cheia de freiras que passam
e as terríveis seringas,
as árvores rapaces, as falsas cataratas brilhando com aranhas,
as vinhas do silêncio.
Vejo as mesmas montanhas surdas, com as suas bocas cobertas de neve,
e movo um pouco os meus dedos; ainda assim,
preciso de ajuda.
 
Às vezes a febre vagueia ao anoitecer pelos subúrbios.
Às vezes há apenas uma montanha, meso por cima das nossas cabeças.
Ao meio-dia começa a chover. Os cavalos escondem-se entre as rochas,
e o mar idiota lá está.
De vez em quando preciso de ajuda.
 
«Naquele dia dois mil homens morreram nessa praia infinita.»
 
                Para nós: tubarões, estanho, água estagnada.
                Oito doenças à noite
                enquanto o escorpião se agarra ao tecto.
                Para nós: arame farpado, bocas abertas, sangue seco,
                as cabeças peludas das tarântulas
                e o constante olho cego
                do tempo, congelado no ar.
 
                O vento cai em pedaços
                pelos caminhos da montanha.
                Temos de gritar sem tréguas –
                aquele que pára está perdido.
 
 
                                                  1938

 
 
paul bowles
poemas
trad. josé agostinho baptista
assírio & alvim
2008
 



28 dezembro 2024

ilka brunhilde laurito / lamentação de natércia

 
 
 
III
 
Amor, amor, amor, um mal que ainda perdura
esta ferida grande, anónima, obscura,
esse beijo letal que vai da boca ao útero,
esta esperança vã, o desespero inútil.
 
Amor, amor, amor, meu ódio e meu horror,
amor, quisera não ter sangue, não ter corpo,
e te expulsar de mim como a falaz demónio
ou anjo que tingiu de fogo as asas brancas.
 
Chama voraz da vida incinerada em sonho,
Amor, por que me acordas para o dia novo
com promessas de voo, se me ardo em chão?
 
Ai, se me fora dado exorcizar-te, Amor…
(carvão posto em repouso, brasa alheia ao sopro)
… ai se me fora… – AMOR! AMOR! NÃO ME ABANDONES!
 
 
 
ilka brunhilde laurito
colóquio letras nr. 90
março 1986
fundação calouste gulbenkian
1986
 



27 dezembro 2024

diego doncel / o filósofo das ruelas

 




 

1
 
Diz-me tu, dor – perguntava aquele filósofo das ruelas dos subúrbios
sentado atrás de uma folha de papelão – se, agora que vou tão pobre e sem refúgio
e com os olhos velhos como a cor do céu,
não é tempo já de que te esqueças de mim?
 
Diz-me tu, que és a única forma de consciência
Pela qual penso as coisas, se não é inútil habitar este frio,
se não é inútil fugir constantemente do que julgo que sou
ou que não sou, talvez aquilo que seja um estado
da minha própria morte ou uma forma diferente de viver?
 
No papelão escrevera a história da sua vida com inverosímeis
incorrecções ortográficas e deixava adivinhar
o permeável das fronteiras entre ser e deixar de ser.
As lojas estavam adormecidas, as gentes rodavam das franquias comerciais
de comida rápida para os bazares de diversão a cheirarem a terra húmida.
Uma franja de nuvens atravessava os intermitentes semáforos amarelos
a uma velocidade ilegal.
 
 
2
 
Noutros dias ganhava umas moedas a predicar à porta dos restaurantes
e dos centros de estética o esoterismo de uma vida feliz:
– Quando se segue o curso da vida – aconselhava –
alimentar-se é um acto espiritual:
são comprimidos de proteínas, comprimidos de carboidratos,
comprimidos de fibras naturais, comprimidos de ácido fólico
e vitaminas C e E,
nem sal nem gorduras nem açúcar,
só meditações, busca interior, serenidade.
Quando se segue o curso da vida
é decisivo o rejuvenescimento celular,
a absorção de oxigénio, o prodígio
dos extractos vegetais. A mente limpa,
escutar a música do coração.
E as pessoas, tão ávidas de novos visionários,
de novas mitologias, de modernos sonhadores
achavam sensata a mensagem das suas palavras.
 
Mas não era um filósofo existencialista
nem um profeta da vida sã.
Ninguém sabia quem era nem porque representava aquilo:
aquelas metamorfoses interiores, aquelas mudanças
de personalidade, aquela consciência fugidia
que é tudo e nada ao mesmo tempo,
o sonho de tudo que ninguém sonhava.
Depois sentava-se junto de jovens ociosos
a beber whisky em copos de papel,
e o álcool uivava nas suas veias
como uma ambulância numa rua tranquila.
Procurava talvez para lá
dos rituais humanos carentes de algum juízo
umas formas acabadas e perfeitas de existência.
E o seu eu não lhe servia.
Não sou, porventura, dizia-se a si próprio, o engano
que vou criando ao viver?
Porventura não fujo do meu nome, de qualquer
nome, pelos passeios deste subúrbio
e vagueio por estas ruelas,
que as drogas e a morte amam,
para não saber de mim?
 
 
3
 
Esquecia o mal-estar consigo mesmo
ao esquecer o pensamento, as dimensões doentes da sua alma
ao dar-se uma nova oportunidade de estar ali,
de continuar a celebração daquele estado em que as coisas
mais correntes não se convertiam em terríveis metáforas,
em que as coisas e os seres não eram já seus inimigos.
 
Tinha medo dele, do que se escondia
dentro dele e aterrava-o a morte.
 
E naquela noite o frio e a cobiça dos gelos
lembram-lhe toda a sua fragilidade.
Olhou os pombos nos ramos nus das acácias
como farrapos de velha roupa. Andou sem rumo
e refugiou-se em qualquer sítio,
talvez só ao calor da sua respiração.
Nas escuridões últimas da noite, quando a neve
tinha ocultado já a extensão dos passeios e o vento se ria
entre as elevadas estruturas de apartamentos com humorísticas gargalhadas,
encontrou uma única ideia que lhe deu paz, simples como ele,
algo que o reconciliava.
E por entre os lábios a si se disse, como um murmúrio:
eu sou apenas uma sombra
que pede humildemente esmola a outras sombras
e que ao estender a mão que treme
(a mesma mão com que às vezes
reconheço as formas do meu rosto,
com que dou de comer aos pardais das ruas
e lhes construo pequenas casas de madeira,
com que me guio, antes de adormecer, na leitura
dos aforismos de Marco Aurélio)
encontro toda a claridade do mundo.
 
 
 
diego doncel
em nenhum paraíso
trad. joaquim manuel magalhães
averno
2007