10 novembro 2024

luís quintais / a imagem quase apagada

 
 
 
Dir-me-ás as certezas que não tenho
agora que o Inverno começou
 
e os dias, desamparados, celebram a luz
em perda, o mar que na sombra própria
 
se eclipsa, a noite, tela espessa
onde prometi escrever este poema.
 
A imaginação é meio caminho,
a realidade devora a metade restante.
 
Eu lembro-me de ti, és uma imagem
quase apagada no delicado álbum
 
dos dias felizes, o passado
deste futuro. As árvores – acácias –
 
são sopradas, o vento é imparável,
contradiz o afiado gume cm que retomo
 
a imagem quase apagada.
 
 
 
luís quintais
nocturama
assírio & alvim
2024




09 novembro 2024

nuno guimarães / arte que se desdobra sobre a mesa

 
 
 
Arte que se desdobra sobre a mesa
ao longo da toalha. Rigorosa
nas formas da madeira. No esforço
do linho semeado sobre a mesa.
 
Arte também do trigo que repousa
enérgico no pão sobre a toalha.
Negado à boca fria. E ao palato
sem poder de motor e já sem água.
 
Dobadoira que lavras a secura
do corpo de erosão. Que sem palavras
emigra a sua morte sobre a cama.
 
Dobadoira do pão e da pobreza
articulada à boca como um fruto
aberto e apodrecido sobre a mesa.
 
 
 
nuno guimarães
a carne
entre sílabas e lavas
poesia completa
assírio & alvim
2024
 



08 novembro 2024

josé emílio pacheco / a ilha




 

 
Chegámos à ilha. O Outono
abria caminho pelo ar, e no lago
as folhas encarnadas e amarelas flutuavam
como peixes mortos.
 
Só o crepúsculo me seguiu até à praia.
Águas cor de mar, pedras como ondas.
Por toda a parte
infinitas folhas caídas.
Eu e a ilha éramos
folhas também, e nunca o soubemos.
 
 
 
josé emílio pacheco
islas a la deriva (1973-1975)
a árvore tocada pelo raio
antologia poética
trad. miguel filipe mochila
maldoror
2024
 



 

07 novembro 2024

roger wolfe / noites de página em branco

 
 
 
Tu contra o mundo
e o mundo contra ti.
E nesta guerra só uma coisa
é certa:
vai haver
um morto.
 
 
 
roger wolfe
fazer o trabalho sujo
tradução de luís pedroso
língua morta
2020




 

06 novembro 2024

julio cortázar / instruções-exemplos sobre a maneira de ter medo

 
 
Numa aldeia da Escócia vendem-se livros com uma página em branco, página perdida num lugar qualquer do volume. Se o leitor der com essa página às três da tarde, morre.
 
Na Praça do Quirinal, em Roma, existe um ponto conhecido dos iniciados até ao séc. XIX e do qual, em noites d elua cheia, lentamente se vê mexer estátuas de Dióscuros que lutam com os seus cavalos encabritados.
 
Em Amalfi, ao findar a zona costeira, há um molho que entra pelo mar e pela noite. Ouve-se um cão a ladrar para lá do último candeeiro.
 
Um homem está a pôr pasta na escova dos dentes. De repente vê uma diminuta imagem de mulher deitada de costas, feita de coral ou talvez de miolo de pão colorido.
 
Ao abrir o armário para tirar uma camisa, um velho almanaque cai, que se desfaz, desfolha, que cobre a roupa branca com milhares de sujas borboletas de papel.
 
E um caixeiro-viajante a quem o pulso esquerdo começou a doer, mesmo debaixo do relógio. Ao tirá-lo, o sangue jorrou: a ferida revelava a marca de uns dentes muito finos. O médico acaba de nos examinar, ficamos descansados. A sua voz grave e cordial antecede os medicamentos cuja receita vai escrevendo, sentado à secretária. De vez em quando levanta a cabeça e sorri para nos animar. Não é nada de grave, numa semana já estaremos bons. Felizes recostamo-nos na poltrona, olhamos à volta, distraidamente. De repente, debaixo da secretária, na penumbra, vemos as pernas do médico. Tem as calças pelo joelho e usa meias de mulher.
 
 
 
júlio cortázar
histórias de cronópios e de famas
manual de instruções
tradução de alfacinha da silva
editorial estampa
1973




05 novembro 2024

fiama hasse pais brandão / barcas novas

 




 
                                        En Lixboa, sobre lo mar
                                        barcas novas mandei lavrar.
                                        Ai, mia senhor velida!
 
                                        En Lixboa, sobre lo ler
                                        barcas novas mandei fazer.
                                        Ai, mia senhor velida!
 
                                        Barcas novas mandei lavrar
                                        e no mar as mandei deitar.
                                        Ai, mia senhor velida!
 
                                        Barcas novas mandei fazer
                                        e no mar as mandei meter.
                                        Ai, mia senhor velida!
 
                                                               Joan Zorro

 
 
 
Lisboa tem barcas
agora lavradas de armas
 
Lisboa tem barcas novas
agora lavradas de homens
 
Barcas novas levam guerra
As armas não lavram terra
 
São de guerra as barcas novas
ao mar mandadas com homens
 
Barcas novas são mandadas
sobre o mar
 
Não lavram terra com armas
os homens
 
Nelas mandaram meter
os homens com a sua guerra
 
Ao mar mandaram as barcas
novas lavradas de armas
 
Em Lisboa sobre o mar
armas novas são mandadas
 
 
 
fiama hasse pais brandão
barcas novas (1967)
obra breve, poesia reunida
assírio & alvim
2017



04 novembro 2024

marcos foz / enublado dizes



 

[…]
 
«é sempre numa casa que estamos
sós» lembra-nos de raspão
rosto mal conhecido, desenhado
a linhas de carvão dos que não
se deixam conhecer; e o cultivo
do nosso dia, «modesto ameaçado
ajardinado» é mister dos que
caminham alheios a tudo, hagiografia
minada de gentis corruptelas – suaves
raparigas indomáveis rapazes,
degrau a degrau, entre síncopes e
bailaricos, enverdecido mergulho, actuando
nas formas que tombam para o lado
da noite, sagrada conspiração lusófona,
louvadas sejam as linha do que a mim
se encosta e respira, estafetas do recomeço
apontando a saída de emergência ao
longo do inominável, meus terraços a meia
altura, astrolábios necessários pajens
amantes do acaso, remendos
acrescentos, faúlhas que despertam o ouvido
deste vosso ridículo príncipe das nuvens
coroado a carências e sinais de faroleiro
 
[…]
 
 
 
marcos foz
enublado dizes
edição do autor
2024
 




 

03 novembro 2024

daniel faria / trago os instrumentos do fogo

 
 
 
Trago os instrumentos do fogo
Ponho-os na boca
Ponho-os no coração
 
Trago os instrumentos da respiração
– Uma montanha, uma árvores que lhe dá abrigo –
E suspendo-os nos ramos como pinhas que dão sombra
Um lugar fresco para os deportados de Sião nas margens
 
Trouxe também os instrumentos dos mineiros
Uma luz na cabeça voltada para o pensamento
Um olhar profundo
O modo prisioneiro de virem livremente para fora
 
E trago todos os instrumentos na circulação do sangue e na ocupação
                                                                                                     [permanente
Das mãos
Para o instrumento difícil
Do silêncio
 
 
 
daniel faria
poesia
homens que são como lugares mal situados
quasi
2003
 



02 novembro 2024

paul claudel / cem frases para leques

 
 
 
1
 
Tu
chamas-me Rosa
diz a Rosa
mas se tu soubesses
o meu verdadeiro nome
logo eu
me desfolharia
 
 
paul claudel
cent frases pour éventails (1927)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003
 



01 novembro 2024

edgar lee masters / cassius hueffer

 
 
 
Esculpiram na minha lápide as seguintes palavras:
«Foi gentil a sua vida, e de tal modo se combinaram nele os
     elementos
que poderia a natureza levantar-se e dizer ao mundo
este foi um homem.»
quem me conheceu sorri
ao ler esta retórica vazia.
 
O meu epitáfio devia ter sido:
«Não foi gentil com ele a vida,
e de tal modo se combinaram nele os elementos
que à vida moveu guerra
e nessa guerra foi assassinado.»
Toda a minha vida odiei a calúnia:
e agora que estou morto tenho que suportar um epitáfio
gravado por um asno!
 
 
 
edgar lee masters
spoon river
tradução josé miguel silva
relógio d´água
2003



31 outubro 2024

rui diniz / o moribundo consigo

 
 
 
Quero ainda contemplar a tarde e acreditar
nela. Quero ainda estar vazio de coragem
alguma. Vazio como sempre estive.
Agora que o sol no olhar me arde
desejo crer nele até vê-lo apagado
em mim.
Oh o murmúrio desta certeza que me enche
de ser inteiro como o mistério e claro
como qualquer reflexo do rio. Tudo pára
para ser contemplado por mim.
A minha dor já quase me não pertence.
Já quase me não reconheço falando de mim.
E a minha vida não se torna presente
na minha memória que o tempo esgotou.
Quero ainda contemplar o que não farei
de novo, medir o cansaço dos meus olhos
e do meu verso. Quero deixar que chegue a noite
e a luz que lhe é própria, que chegue
e outra tarde, que eu possa contemplá-la…
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022





30 outubro 2024

rui costa / breve ensaio sobre a potência

 
 
 
4
as plantas treinam a paciência
dobrando mais os braços. doem
por cima das pedras, caminham
vagamente como animais sem
asas. as plantas respiram imitando
os peixes. mais tarde ancoram-se
à terra e voam rasurando a luz.
 
 
 
rui costa
breve ensaio sobre a potência
(texto-ensaio composto por 31 fragmentos)
mike tyson para principiantes
antologia poética
assírio & alvim
2017




 

29 outubro 2024

egito gonçalves / inventário

 
 
 
O cidadão pacífico toma café e rói as unhas
enquanto os dias passam – o Sol, os cometas,
as searas, os Deuses, os fabricantes de calendários…
 
depois dos cafés o cidadão possui ainda os cinemas
e os namorados podem concorrer aos jardins miniatura
onde além da clássica relva e as 24 árvores
há ainda dois urinóis e três velhos próximos da noite.
 
Dos quinze em diante oferece-se uma mulher em decúbito dorsal
que alguns não aproveitam.
 
Depois morre-se e colocam-nos em cima
algumas plantas consideradas tristes.
 
 
 
egito gonçalves
o esperado fim do mundo já partiu
uma antologia
língua morta
2020