16 abril 2024

rui diniz / ao poeta nuno júdice

 
 
 
Ó penumbra cálida que num marulho escrituras:
vem do vento já terno da última era
uma linhagem que nenhum viajante itera
– os sábios lendo com melancolia as nuas conjecturas
da despedida e, no entanto, com errática
necromância, voando uma imperfeita pitonisa,
gnose ulissipada pela palidez êxul e fática
da «iniciação» que na mente delida heleboriza:
«para os evos, siderais! Para os evos, siderais!»
 
Foi sem fim, meu amigo, que nos reunimos
sem estrangeiramente cumprirmos os ritos sepulcrais.
Tanto os crisóis da arte – poemas d’aves, d’imos –
como o burburinho amado dos cafés meridionais,
como a ressurreição de uma esplanada suave
onde esculpimos e imaginámos – pura língua e actos –
me guardam a tua memória. A imortal chave
da amizade reabre o mágico reino dos contactos.
 
                                                             XII.85
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022





15 abril 2024

fernando lemos / de quantas facas se faz o amor

 
 
 
De quantas facas se faz o amor
de quantas pedras se faz o vício
de quantos homens se faz o medo
de quantas noites se faz a morte
de quantas vidas se faz uma criança
de quantas ternuras se faz o tédio
de quantas horas
será feira a esperança que guardo
com sons de corpo arrastado
de quantas grutas será feita
esta humilde nas veias
que me acordam
de quantos poros será feito o mistério
de quantos gritos será feita uma religião
de quantos ossos será feita
a maldade
de quantos crimes será feita
esta lua que mal começou
e já me deixou no hábito de apurar
os sentidos
 
 
 
fernando lemos
poesia
porto editora
2019




14 abril 2024

henrique risques pereira / os pássaros cruzam o espaço

 
 
 
Os pássaros cruzam o espaço
As árvores levantam os braços para os céus
Os ares cheios de canções
E as crianças dançam.
Não esqueças.
 
 
Ouve a floresta
O arfar da terra profunda
Sente o vento nos teus cabelos
Cheira o odor do futuro
Não olhes para trás.
 
 
 
henrique risques pereira
transparência do tempo
(poesia)
edição de perfecto e. cuadrado
quasi
2003




13 abril 2024

fernando alves dos santos / druidas

 
 
Vós que joeirais os segredos
que habitam as latências das palavras,
joeirai o meu coração uterino
atravessado pelo mar.
Vós que joeirais as gotas de chuva
espremendo os sonhos da mulher
em mim se derramando,
joeirai o trigo que pagamos
para lavar a cara da nossa ignorância.
Vós que joeirais os desenganos
com os quais havemos de morrer,
joeirai a terra onde se escrevem
as gotas de sangue das ruínas:
ajudai-nos a discorrer a liberdade.
 
 
 
fernando alves dos santos
diário flagrante [poesia]
edição perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
2005




12 abril 2024

federico garcia lorca / gazel do amor imprevisto

 
 
Ninguém compreendia o aroma
da escura magnólia do teu ventre.
Ninguém sabia que martirizava
um colibri de amor entre os teus dentes.
 
Mil potros persas adormeciam
na praça lunar da tua fronte,
enquanto eu enlaçava quatro noites
a tua cintura, hostil à neve.
 
Entre gesso e jasmins, o teu olhar
era um pálido ramo de sementes.
Procurarei, para te dar, no meu peito
As letras de marfim que dizem sempre.
 
Sempre, sempre: jardim desta agonia,
teu corpo fugitivo para sempre,
teu sangue arterial na minha boca,
tua boca já sem luz para esta morte.
 
 
 
federico garcia lorca
poemas
trad. de eugénio de andrade
assírio & alvim
2013





 

11 abril 2024

manuel bandeira / o último poema

 




 

 
Assim eu quereria o meu último poema
 
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos
                                                                intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais
                                                                            límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação
 
 
manuel bandeira
antologia poética
editora nova fronteira
2001



10 abril 2024

luiza neto jorge / 5 poemas para a noite invariável

 



 

I
 
Posso estar aqui
eu posso estar aqui perfeitamente pobre
um círio me acendi espora aguda
o vento ritmo negro assassinou-o
 
posso estar aqui
– o musgo é lento como a sombra –
e sei de cor a voz cega das canções
(viola de silêncio acorda-me)
 
que eu possa estar aqui perfeitamente pedra
insone
e um longo segredo impessoal
bordando a minha solidão
 
 
 
luiza  neto jorge
os sítios sitiados
poesia
assírio & alvim
1993
 



09 abril 2024

isabel meyreles / o livro do tigre

 
 
 
                       XXIV
 
Só existo
durante alguns segundos por mês
quando o meu senhor tigre
encontra tempo para pensar em mim
(o meu senhor tigre é tão distraído!)
o resto do tempo
sou uma espécie de máquina
enfrascada em drogas,
mal lubrificada,
um pouco enferrujada,
bastante rabujenta,
demasiado resmungona,
que finge existir
de olhos vazios e alma ausente
por detrás da máscara bronzeada
de alguém que vai frequentemente à praia,
uma máscara que tem um ar tão verdadeiro
que toda a gente se engana,
uma máquina que vai às compras
todas as manhãs
(quanto custa o quilo de mágoas?)
que conduz o carro
sem atropelar cães e gatos,
que apanha uma mão cheia de ar
em forma de telefone
e fala horas esquecidas,
que escreve cartas de água
com um estilete de carne
e que espera, espera, espera,
meus deus por quanto tempo ainda?
 
 
 
isabel meyreles
poesia
o livro do tigre 1976
tradução de isabel meyreles
quasi
2004
 


08 abril 2024

maria gabriela llansol / inquérito às quatro confidências

 



 

24 de Novembro de 1994
 
Foi a minha vez de fazer anos Tenho, de novo. Necessidade de me pôr em movimento, talvez mudar fisicamente de lugar, desfazer-me de móveis, de objectos, de roupas – aligeirar o sólido em proveito dos sinais e das imagens que o texto me trouxer. Afinal, o único lugar do corpo que verdadeiramente se move. Quando eu nasci, tudo estava relacionado com o espaço e o tempo.
A meio da vida, Vergílio falava do equilíbrio interior que exigia o absoluto do eu e a pergunta que continua sem resposta____saber se havia uma ponte do tempo sobre o espaço.
– Gabriela estará alguém à minha espera?
Não sei
«Se a pergunta é de saber», é o que hoje me respondo. – Vou nessa ponte sobre um burro carregado, o horizonte é vasto, o mar é interior e a vida, paradoxalmente, não sei se tem duração, ou não. Mas se a pergunta for de querer, de pujança então digo que paro o burro, deito os objectos às margens, ao fundo que os guarde, debruço-me na ponte, com o meu burro livre a meu lado,
Debruço-me sobre os meus membros e patas e vejo as imagens flutuando, a minha também, finalmente a desaguar no mar.
 
 
 
maria gabriela llansol
inquérito às quatro confidências
relógio d´água
1996
 


07 abril 2024

maria teresa horta / futuro

 
 
Contemplamos os anos
as coisas
e os homens
 
como nas noites o aço
ou a maneira mais simples
de dormir
 
Da consciente doença
das palavras
contemplamos daqui
 
o lento futuro que há-de vir
incompleto e breve
nas palavras
 
 
 
maria teresa horta
poesia reunida
jardim de inverno
dom quixote
2009
 




06 abril 2024

maria do rosário pedreira / sentaram-se na areia

 
 
 
Sentaram-se na areia e descalçaram os sapatos.
Puseram-se a contar pelos dedos os barcos
que faltariam para chegar o verão.
 
Nenhum deles falava. Tinham passado juntos
algumas noites, num quarto sem vista. E, embora
julgassem o contrário, não conheciam um do outro
muito mais do que isso.
 
Estavam ali sentados para ver se acontecia alguma coisa.
 
No verão
alguém viria forçosamente buscá-los.
 
 
 
maria do rosário pedreira
a casa e o cheiro os livros
gótica
2002




05 abril 2024

aleksandr blok / que difícil é andar entre a gente

 
 
Que difícil é andar entre a gente
A fingir que não se morre,
E neste jogo de trágicas paixões
Confessar que não se viveu ainda.
 
E, perscrutando o pesadelo nocturno, encontrar
Ordem no remoinho confuso dos sentimentos
Para que, no inexpressivo resplendor da are,
Se descubra o mortal incêndio da vida.
 
 
 
aleksandr blok
é por isso que a alegria é mais alta
poemas russos dos séculos vinte e vinte um
versões de luís filipe parrado
contracapa
2022
 



04 abril 2024

paul bowles / tudo o que se lamenta

 
 
 
Quando as raiadas serpentes rastejarem sobre nós
E os nervosos gritos dos pássaros
Calarem todas as fontes e os pomares e quando estes
Prenderem todas as asas
Que esvoaçam no céu
Então uma e outra vez
Arrancarei sorrisos aos passeios do jardim
Transformando as carpas em falcões
As tarântulas e as abelhas
Então uma e outra vez
Destruirei tudo o que se lamenta.
 
 
                                          1929


paul bowles
poemas
trad. josé agostinho baptista
assírio & alvim
2008