21 janeiro 2024

álvaro de campos / insónia

  
 
Não durmo, nem espero dormir.
Nem na morte espero dormir.
 
Espera-me uma insónia da largura dos astros,
E um bocejo inútil do comprimento do mundo.
Não durmo; não posso ler quando acordo de noite,
Não posso escrever quando acordo de noite,
Não posso pensar quando acordo de noite —
Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!
 
Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer!
 
Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam —
Todas aquelas de que me arrependo e me culpo —;
Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam —
Todas aquelas de que me arrependo e me culpo —;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.
 
Não tenho força para ter energia para acender um cigarro.
Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.
Lá fora há o silêncio dessa coisa toda.
Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,
Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir.
 
Estou escrevendo versos realmente simpáticos —
Versos a dizer que não tenho nada que dizer,
Versos a teimar em dizer isso,
Versos, versos, versos, versos, versos...
Tantos versos...
E a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim!
 
Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir
Sou uma sensação sem pessoa correspondente,
Uma abstracção de autoconsciência sem de quê,
Salvo o necessário para sentir consciência,
Salvo — sei lá salvo o quê...
 
Não durmo. Não durmo. Não durmo.
Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma!
Que grande sono em tudo excepto no poder dormir!
 
Ó madrugada, tardas tanto... Vem...
Vem, inutilmente,
Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta...
 
Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste,
Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperanças,
Segundo a velha literatura das sensações.
 
Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança.
O meu cansaço entra pelo colchão dentro.
Doem-me as costas de não estar deitado de lado.
Se estivesse deitado de lado doíam-me as costas de estar deitado de lado.
 
Vem, madrugada, chega!
 
Que horas são? Não sei.
Não tenho energia para estender uma mão para o relógio,
Não tenho energia para nada, para mais nada...
Só para estes versos, escritos no dia seguinte.
Sim, escritos no dia seguinte.
Todos os versos são sempre escritos no dia seguinte.
 
Noite absoluta, sossego absoluto, lá fora.
Paz em toda a Natureza.
A Humanidade repousa e esquece as suas amarguras.
Exactamente.
A Humanidade esquece as suas alegrias e amarguras,
Costuma dizer-se isto.
A Humanidade esquece, sim, a Humanidade esquece,
Mas mesmo acordada a Humanidade esquece.
Exactamente. Mas não durmo.
 
27-3-1929
 
 
 
fernando pessoa
poesias de álvaro de campos
edições ática
1944



20 janeiro 2024

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

 
 
VI

Não canto porque sonho.
Canto porque és real.
Canto o teu olhar maduro,
o teu sorriso puro,
a tua graça animal.
 
Canto porque sou homem.
Se não cantasse seria
somente um bicho sadio
embriagado na alegria
da tua vinha sem vinho.
 
Canto porque o amor apetece.
Porque o feno amadurece
nos teus braços deslumbrados.
Porque o meu corpo estremece
por vê-los nus e suados.
 
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000




 

19 janeiro 2024

paul éluard / fresco

 
 
II
 
A mais humilde flor de Janeiro
Está em louvor do Inverno
 
Um sangue negro brilha no rosto
De um homem morto por ter tido frio
 
As belas rosas de Julho
Perfumavam o seio materno
 
Cuja morte conta o paradeiro.
 
 
 
paul éluard
a cama a mesa
tradução de luís lima
barco bêbado
2021




18 janeiro 2024

margaret atwood / dentro

 
 
De fora vemos uma contracção
mas de dentro, como sentido
pelo coração e respiração e pele profunda, quão diferente,
quão vasto   quão calmo   quão parte de tudo
quão escuro estrelado. O último suspiro. Divino
possivelmente. Talvez alívio. Os amantes presos
e selados dentro de uma caverna,
vozes levantadas num último dueto
oscilante, até a pequena vela
se apagar. Bom ainda assim
segurei a tua mão e talvez
tenhas segurado a minha
enquanto a pedra ou universo se fechava em
redor de ti.
Mas não em redor de mim. Eu ainda estou fora.
 
 
 
margaret atwood
afectuosamente
trad. joão luis barreto guimarães
bertrand editora
2021




17 janeiro 2024

ilka brunhilde laurito / lamentação de natércia

 
 
I
 
Os corpos dos varões idos e amados
que aportaram a esta praia solitária
vindos de navegar mulheres várias,
em naus de desventura naufragados,
não os cobrirei com a água dos meus olhos
para esculpir com sal estátuas mortas,
antes farei que ancorem na memória
onde meu canto lhes dá vida e volta.
 
E a todos chamarei AMOR, que o nome
é o anónimo cantar de um mesmo homem.
 
 
 
ilka brunhilde laurito
colóquio letras nr. 90
março 1986
fundação calouste gulbenkian
1986
 




 

16 janeiro 2024

ricardo vasconcelos / em louvor de ruy belo

 
 
Sempre que o leio
vem-me à boca o sabor virginal dos frutos de infância
o sabor da terra calcada ao fundo do quintal com botas de criança
O sorriso no pano de fundo de amargura
o Portugal onde nada acontece mas tudo dura o lado negro
claro Mas a pureza sim a pureza a criança
os filhos a mulher teresa
o amor belo a amante
o resistir
o existir
os outros poetas depois da morte era
o som da música herberto helder das essências em corrupio
o sopro da palavra um rodopio do ar em falta versos e
versos de comboios de sílabas sem pontuação sequer espanta
sempre só com letras grandes e ainda longe do final
a despedida demasiado longamente antecipada este desejo
em louvor do vento Que te dedico Com muito amor
A ti que gostaria de conhecer um dia melhor
de carne e pele ou osso e corpo e sobretudo
pelo sorriso ao olhar
agora vi-te a sorrir de novo vou despedir-me talvez quem sabe
não muito perto não muito longe
um dia chegue a te encontrar.
 
 
 
ricardo vasconcelos
apeadeiro
revista de atitudes literárias
nr. 1 primavera 2001
quasi
2001




15 janeiro 2024

eduarda chiote / o mal da morte

 



 

3
 
Falas-me do doce beijo envenenado
e dos prontos e preparados para morrer em qualquer idade
e da fraqueza dos miseráveis
e perguntas-me porque os silencio
e eu digo-te: porque de tudo desinteressada, salvo da grandeza
sem a qual nenhuma revolta vale a tentativa de irradiar
da terra o que dela se despoja
da mais vil razão de que. Por mais tempo que se viva,
jamais se entenderá a ironia desprovida de maldade;
de luz que necessita da noite para gerar no escuro
a alta claridade do sol – ao meio dia.
 
 
 
eduarda chiote
nervo/20 janeiro / abril 2024
colectivo de poesia
2024
 




14 janeiro 2024

paul celan / tübingen, janeiro

 
 
Olhos con-
vertidos à cegueira.
A sua - «um
enigma é puro
brotar» –, a sua
memória de
torres de Hölderlin à tona de água, no esvoaçar
de gaivotas.
 
Visitas de marceneiros afogados com
estas
palavras a afundarem-se:
 
Se viesse
se viesse um homem,
se viesse um homem ao mundo, hoje, com
a barba de luz dos
patriarcas: só poderia,
se falasse deste
tempo, só
poderia
balbuciar balbuciar
sempre, sempre,
só só.
 
 
 
paul celan
trad. joão barrento
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990




13 janeiro 2024

alex susanna / minotauro

 



 

 

Sobre nós cai a noite
e nada podemos fazer para nos determos
um ao outro:
tudo desliza suavemente, em silêncio
– mãos, vestidos, palavras –
e abraçamo-nos profusamente
nunca sabendo, no entanto,
quem é a praia e quem a onda,
quem é o vento e quem a casa,
quem é o ramos e quem a neve,
quando precisamente é o momento
em que tudo somos ao mesmo tempo.
 
 
àlex susanna
les anelles dels anys
tradução egito gonçalves
hífen 9 stembro 1995
cadernos semestrais de poesia
poesia hispânica
1995
 




12 janeiro 2024

nicanor parra / recordações da juventude

 
 
O certo é que eu ia de um lado para o outro,
Às vezes chocava com as árvores,
Chocava com os mendigos,
Abria passagem através dum bosque de cadeiras e mesas,
Com a alma num fio via cair as grandes folhas.
Mas tudo era inútil,
Cada vez me afundava mais numa espécie de geleia;
As pessoas riam-se dos meus arrebatamentos,
Os indivíduos agitavam-se nas suas poltronas como algas movidas
                                                                                                 pelas ondas
E as mulheres dirigiam-me olhares de ódio
Fazendo-me subir, fazendo-me descer,
Fazendo-me chorar e rir contra a minha vontade.
 
De tudo isto resultou um sentimento de asco,
Resultou uma tempestade de frases incoerentes,
Ameaças, insultos, juramentos que não vinham ao caso,
Resultaram uns movimentos desgostantes de ancas,
Aqueles bailes fúnebres
Que me deixavam sem respiração
E me impediam de levantar a cabeça durante dias,
Durante noites.
 
Eu ia de um lado para o outro, é verdade,
A minha alma flutuava nas ruas
Pedindo socorro, pedindo um pouco de ternura;
Com uma folha de papel e um lápis entrava nos cemitérios
Disposto a não me deixar enganar.
Dava voltas e voltas em torno do mesmo assunto,
Observava de perto as coisas
Ou num ataque de cólera arrancava os cabelos.
 
Desse modo fiz a minha estreia nas salas de aula,
Como um ferido por uma bala arrastei-me pelos ateneus,
Transpus o limiar das casas particulares,
Com o fio da língua procurei comunicar com os espectadores:
Eles liam o jornal
Ou desapareciam atrás de um táxi.
 
Para onde ir então?
Àquela hora o comércio estava fechado;
Eu pensava num pedaço de cebola que vira ao jantar
E no abismo que nos separa dos outros abismos.
 
 
 
nicanor parra
a tradução de poesia
relâmpago, revista de poesia nº 17
trad. albano martins
outubro 2005





 

11 janeiro 2024

christoph wilhelm aigner / scardanelli 1989

 
 
Um gato preto dorme no jardim
Fechado inacessível enrolado
A Torre afasta de si o tronco de um salgueiro
Os seus cabelos colam-se ao pescoço do Nécar
As nuvens correm por trás do sol
Holder o gato preto volta-se num esgar e troça
Lá dentro já não há quem resmungue atenciosamente
Aguardo devorar uma alma-alimento
 
 
 
christoph wilhelm aigner
três frases
salzburg. otto müller verlag, 1991
trad. maria teresa dias furtado
relâmpago, revista de poesia nº 17
outubro 2005
 



10 janeiro 2024

josé mário silva / a minha janela, aos 19 anos

 
 
 
Eu espreitava o limoeiro, a sua copa
larga ocupando o quintal que a minha
avó fechava à chave quando saía (por
causa das galinhas). Para trás do muro,
só havia telhados de zinco, portões com
ferrugem, traseiras de prédios com roupa
estendida, armazéns, carros ao abandono
e gritos no crepúsculo, das mães aflitas
chamando os filhos para jantar. Eu via
tudo aquilo, sentado à mesa com uma
folha de papel em branco, esperando
o que chega quando não se espera.
Às vezes apareciam versos sem norte,
palavras vagabundas, para murcharem
logo ali – ecos de ecos. E eu olhava o
céu, as nuvens perfeitas, o vento em
turbilhão através do quintal, aquele
limoeiro com melros nos ramos e
frutos acesos na tarde como sóis.
 
É tão difícil de esquecer, a melancolia.
 
 
 
josé mário silva
apeadeiro
revista de atitudes literárias
nr. 1 primavera 2001
quasi
2001




09 janeiro 2024

mário cesariny / estação

 




 

 
Esperar ou vir esperar querer ou vir querer-te
vou perdendo a noção desta subtileza.
Aqui chegado até eu venho ver se me apareço
e o fato com que virei preocupa-me, pois chove miudinho
 
Muita vez vim esperar-te e não houve chegada
De outras, esperei-me eu e não apareci
embora bem procurado entre os mais que passavam.
Se algum de nós vier hoje é já bastante
como comboio e como subtileza
Que dê o nome e espere. Talvez apareça
 
 
 
mário cesariny
pena capital
assírio & alvim
1999