01 dezembro 2023

joão miguel fernandes jorge / primeiro de dezembro

 




 
O Primeiro de Dezembro é um café pobre. O dono
se reconhece a sua casa neste verso
não vai gostar. Que posso fazer? Recordo a sala ampla;
deu lugar a várias divisões – salas de restaurante e
café – o espaço de soalho carcomido; estremecia ao
passo dos clientes. Cheiro a café de saco bem quente
servido em copo. E o vinho que bebiam ao balcão, Gaeiras
de reduzida colheita de lavrador, quando a luz incidia,
brilhava como telha vermelha magoada de luar.
 
A vila – se alguma coisa de qualidade em
Portugal deixasse um dia de ser pobre – tem hoje arre-
medos de casinha de chocolate.
Fico-me pela esplanada no desvão do largo irregular e
perfeito. Em frente, o portal da ermida de São Martinho;
dois túmulos prendem-se à estreita frontaria. À direita, a
parede lateral da igreja de São Pedro; ao lado esquerdo,
armas plenas do reino, coroadas, dão corpo ao edifício da
câmara. Buganvílias crescem na diferença do vermelho e do roxo.
 
Cimeira à ermida, uma velha casa aluga quartos. Um dia
hei-de fazer de turista e alugar a divisão fronteira à mesa
em que, por hábito, me sento. Não é golpe narcisista
para ver o lugar da minha ausência. Vou querer abrir e
fechar a empenada janela de guilhotina e voltar a abri-la
para assim permanecer toda a noite.
Hei-de sentar-me na cama, despir-me com o vagar dos gestos
de quem nunca teve um ombro onde pousar a cabeça; de
súbito, quando já for madrugada, hei-de ouvir
 
vozes alegres, risos, chamamentos, respostas
joviais, hei-de chegar à janela, hei-de ver
os mortos de Óbidos
abandonados nas posições mais cruéis.
Feira de cadáveres e de porção de ossos; e uma festa ao mesmo
                                                                                 tempo
com um tilintar de campainhas a carruagem de não sei que
capitão de praça vai passar pelo meio dos despojos
levada por um cavalo branco. E na boleia, os gémeos
que conheci na casa logo abaixo da Misericórdia. O mais bonito
segurava as rédeas e o chicote. O que não era tão bonito –
  leitura difícil, rosto e corpo genuinamente iguais – tocava
                                                                  o serpentão.
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
invisíveis correntes
relógio d´água
2004



30 novembro 2023

joaquim manuel magalhães / columbário

  
 
Cada ano que passa traz-me lenha.
São já muitos quando a camioneta chega
com as três ou quatro toneladas de mistura.
Assim chama às várias espécies derribadas
que chegam para cada Inverno que lhe pago.
Agora já digo ao Sr. Antunes: mais um ano.
E ele ignora-me. Que se gasta a lenha
mas é um conforto. Que é um pecado lamentar.
Com o seu santo na medalha pendurado
nem lhe digo que também por cada ano,
mais que a lenha, ardemos e ardemos.
 
Jardins abertos. Em várias ruas
ao longo do anoitecer
distinguia-se quem lançava rápidos sinais
e para um outro lado nos dispunha.
Ainda nem eram precisos bares.
Um autocarro, o metro, qualquer mesa
de um café
ensinava-nos o caminho de elevadores,
as janelas de onde se via,
depois,
a cidade adormecida.
 
Um holofote amarelo contra o quarto que me alberga,
toda a noite uma sobreluz de hotel que demolia
as tentativas de sono detrás do tempo sem blackout.
Só na segunda noite me lembrei de pendurar
edredões das sanefas e o escuro me recuperou.
Ouvia no rádio postos que não sei que transmitiam,
de vez em quando devia cair no torpor dos barbitúricos
que nenhum efeito tinham já. O ar
abafado e seco pelas tubagens que não desligavam,
as pernas entumesciam com as alergias cutâneas
debaixo de tecidos talhados com acrílicos.
 
Atira os troncos cortados contra a parede
da arrecadação, os pequenos toros caem
com um baque, tropeçam uns nos outros,
julgamos que repousam.
Mas depois vamos buscá-los para a segunda morte,
além da árvore donde os abateram
e nunca mais um pássaro lhes cantará.
Também vai às outras árvores que me serra,
algumas quase rente ao chão. Fazem
sombra de mais, começam a ficar
secas e com musgo. Parece que tudo
fica límpido quando tombam e as leva
para um sumidouro que não sei.
 
Nesse tempo o receio era tão pouco.
Bastava estar atento ao mover dos olhos,
à qualidade do sorriso, e todos éramos
a grata euforia da entrega,
a ejaculação que parecia nunca mais findar.
Sempre outro corpo mais
connosco seguiria. Jardins abertos.
Chuveiros com o mais forte abraço,
um odor diferente em cada alegria.
Talvez nos julgassem clandestinos
mas não findavam
as viagens súbitas para um novo leito.
 
A noite despeja-me na noite, semi acordado,
semi adormecido, num entre estado sem nome,
como devem estar
os cães encostados aos sem abrigo nos recantos
com os faróis contínuos do trânsito nocturno.
Levanto-me no rumor de todos os ares condicionados
atirados do hotel para o seu saguão, e lembro
a moto-serra do Sr. Antunes a desbravar o jardim fechado,
a deitar por terra o vento que batia nos ramos,
ficava tudo coalhado de um serrim pacífico
e os arbustos atrofiados pela capa sombria
logo se sentiam reerguer, alargar,
ao contrário desta noite que pesa cada vez mais.
Horas abauladas, procuro fugir-lhes no terror
das imagens nocturnas que numa outra luz
podem subir ao cérebro para despedaçá-lo.
 
Mais tarde haverá novos rebentos, demoram algum tempo,
vou-os arrancando a um por um
nos sítios onde não quero que mais nada cresça.
Outros sobem de novo cada vez mais alto, marcam
com os seus dias os meus dias
num sem retorno que também sou eu.
 
Depois nem já clandestinos.
A música dos novos bares
atenuava um pouco
a pretérita euforia das ruas.
Pareciam barcas donde se ouvia
clamores,
a corrente fulgurava entre a sombra
de cada corpo
e da margem acenavam-nos
com caminhos felizes
que podiam ser logo abandonados.
Ninguém já perseguia?
Um clarão fulminante
cruzava o céu de cada peito.
 
O terreiro agora ficou sem os ramos
piores, os de folhagem que enlameia a relva,
partiu a camioneta tão enchida
desses sítios que já tiveram ninhos
que só com muitas aselhas nos cordames
se consegue rebaixar, pequenos braços
vigorosos, resistem, não querem
enterrar-se uns pelos outros, procuram
permanecer, divago eu, como nós
ao deus inútil tanta vez pedimos.
Mas depois da nuvem de gasóleo da partida
logo me recolho e penso que na felicidade
é que julgamos inútil o que nos ajuda.
 
Mesmo assim os sonhos do passado morto
(morto, alguma vez morre tudo aquilo?)
um por um vêm e calcam com a sua verdade inteira,
persistem nos pequenos rolos de cérebro derramado,
seguem a sua astuta reconstituição, da infância
para cima, de mais tarde para baixo,
até conspurcarem todo o terreno parado do presente,
sem ameaça, só com a certeza do que não volta atrás,
do que ficou definitivamente assim.
A lenha precisa ainda de secar, repetia o Sr. Antunes,
durante um ano, são árvores de seiva matreira, todas
feitas para a falsidade, abrem um oco dentro da copa,
só na extremidade fazem bolas de verdura opaca,
fingem ser paisagem, amarelecem verdes ainda,
morrem sem dor, com uma longuíssima resignação,
tão longa que parece apenas um esquecimento.
 
Jardins abertos. Ninguém
os atravessa agora. Bares para o aturdimento
de músicas. Tudo passou a história.
Hoje há o cuidado. E se o amor
ultrapassa o prazer, restam
os testes e as suas repetições.
Só quis lembrar esta barra de fogo
apagada.
A vã duração do tempo.
 
Escrevo estes versos de memórias
alheado já.
Cada palavra mistura-se com todas.
Mas lembra-te que pensei sempre,
leitor, jardim aberto,
de algum modo em ti.
Deixa estar por uns segundos contigo
estas histórias. Dá-lhes
algum cuidado. Havia o Sr. Antunes. Pode ser
que voltes um dia a ter um tempo
para de novo te sentares com elas.
Dei-lhes o meu pensamento ameaçado
por um holofote tenaz.
Se encontrares nisso algo que te sirva
recorda-o no teu espírito
mesmo que nada se possa repetir.
 
Eu digo para mim que é esta
a utilidade da poesia,
a lembrança.
E que podes ainda, se parecem vãos
todos os meus efeitos,
largá-la de ti e haver proveito
em não seguires comigo todos os caminhos
onde ressoam passos do meu precipício.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
alta noite em alta fraga
relógio d´água
2001
 



29 novembro 2023

fernando pinto do amaral / sete degraus para a escada de jacob

 




 

2
 
Leve cresce uma sombra, a vã glória
de conquistar o inverno – sensação
fulgindo entre a folhagem. Um silêncio
no lusco-fusco, as vozes tão banais
ao longo da ruela. Anoitecida,
regressa a minha alma, o preto-e-branco
dos vultos infelizes retomando
os passos nos passeios, as conversas
que em vento se desfazem. Não importa
descrever a paisagem, ficar preso
a tudo o que nos fala, a este «dia
de inúteis agonias». Aqui estou,
horíssimas à espera, mãos nos bolsos,
como se alguém viesse. Ah, não, pra quê
o enigma de um amor em cada imagem?,
os êxtases da vida?, o choro?, o riso?,
a própria arte? De um ou de outro corpo
me fogem os versos, um incêndio. Tu
serás apenas isso, a tentação
de haver nos dedos chamas, outro céu
a desejar ainda. O que se afasta
do meu olhar são essas poucas luzes,
inanimadas frases prolongando
a silhueta efémera de um rosto
– agora?, há muito tempo? Sem resposta,
estrelas gerando estrelas, um negrume
vivendo-me certezas e receios,
o sabor de um destino ou, simplesmente,
um sonho iluminando-se de lágrimas,
um resto de horizonte nos meus olhos.
 
 
 
fernando pinto do amaral
sete degraus para escada de jacob
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000


28 novembro 2023

nuno casimiro / manifesto

 



 
Falo de um sorriso alastrando-se entre
As mãos,
preenchendo-me de uma ponta à outra do sangue.
Uma tatuagem nos olhos. A fita
suspensa no céu no momento em que recusou cair.
Um corpo esquivo.
 
Palavra que queima.
 
Falo do sal
que me seca os ossos.
Esse sorriso feito gente que eu
amo
mais que às palavras.
 
Falo de ti.
 
 
 
nuno casimiro
apeadeiro, revista de atitudes literárias
nr. 1 primavera 2001
quasi
2001
 




27 novembro 2023

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

  
 
V
Nos teus dedos nasceram horizontes
E aves verdes vieram desvairadas
Beber neles julgando serem fontes.
 
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000


26 novembro 2023

joan margarit / o primeiro frio

 

Miguel Blay Fàbregas, The First Cold 1892



Acompanhei-te ao museu do parque.
Era uma manhã de Inverno. Parámos
diante d’O primeiro frio, uma escultura
de mármore cinzento: um velho que, despido,
enquanto o vento arrasta folhas mortas,
fita à distância.
Não são diferentes, a arte e a vida, disseste.
Mas eu via apenas um mármore frio,
e até retórico, e pensava em raparigas.
Entre aquele dia e agora, como um mar,
alastrou a minha vida.
E vêm, sulcando este mar cinzento,
as minhas memórias, cascos negros de navios.
Volto ao museu nesta manhã de Inverno,
e penso em ti ao atravessar o parque,
fitando a distância e cercado
de folhas mortas arrastadas pelo vento.
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020



25 novembro 2023

georg trakl / no outono




 
Junto à cerca, os girassóis e seu brilho,
Doentes sentados ao sol, sem alento.
No campo, as mulheres cantam no trabalho,
Ouvem-se ao longe os sinos do convento.
 
Os pássaros contam lendas de encantar,
Ouvem-se ao longe os sinos do convento.
Há um violino no pátio a gemer.
E já o vinho escuro vão recolhendo.
 
Todos parecem felizes, libertos.
E já o vinho escuro vão recolhendo.
Os jazigos dos mortos estão abertos,
Pintados pelo sol que vai entrando.
 
 
 
georg trakl
a alma e o caos
100 poemas expressionistas
trad. joão barrento
relógio d´água
2001
 


 

24 novembro 2023

jorge velhote / bolonha, chuva e menina

 




 
                                                   para Mário Cláudio
 
 
 
No seu peito colegial, coberto de rumorosos plátanos de verona,
abriguei os dedos, a caruma das estrelas,
brancas pombas.
 
A claridade do dia findara; o odor da terra húmida
entardecia coalhando o azul de uns olhos que vindimavam
o sangue, o irisado da alma:
 
chovia. Pelo curriculum do vento partimos, misturando o amargo linho
                                                                                   [dos segredos,
A verdade dos sorrisos.
Por furtivos pomares, inquietos canaviais,
o corpo escondemos, os relâmpagos,
mágoas de silêncio –, prudentíssimas labaredas.
 
Embora chovesse, e muito, o corpo imitava o sol, secava
a erva. Penumbras de sombra a cada passo setembro
mordia de luz, modulava a ternura, intensamente.
Pelos campos, entre o íntimo perfume das vozes, um arado de loucura,
uma lágrima de engenhar sulcos, sementes, folhas, gomos de água,
galhos de melancolia,
 
gerações de chuva, secretos tanques enredando a noite,
a literária morte: o labirinto fulgurante de um versátil estilo
de aprendizagem desmedida.
 
Seduzida, na mão
um ramo de chuva, um jardim
de macerados lábios
 
dedicados.
 
 
 
jorge velhote
colóquio letras nr. 90
março 1986
fundação calouste gulbenkian
1986
 



23 novembro 2023

josé agostinho baptista / regresso

 




 
Há muito que parti.
Abandonei as searas onde nunca vi os
desígnios de deus.
Abandonei a fé.
Caminhei sem destino,
procurei a árvores secreta dos irmãos,
e, com saudade e desvario, abandonei as casas.
 
Escondi-me.
Escondi o último verso numa noite sem fim.
E hoje escrevo para ti que às vezes me escreves,
do outro lado das terras.
Conhecerei um dia as falésias onde o garajau
paira,
quando chegar, pelas madrugada,
às portas do teu sonho?
 
De pé, sobre o promontório,
olhas para longe, para os meus barcos que
naufragaram.
 
 
 
josé agostinho baptista
quatro luas
assírio & alvim
2006
 


22 novembro 2023

emily dickinson / que nunca há-de alguma vez voltar

 




 

 

Que nunca há-de alguma vez voltar
É o que faz tão doce a vida.
Acreditar naquilo que não acreditamos
Não faz vibrar.
 
Porque se fosse, seria em seu melhor
Um bem ablativo –
Isso o que instiga um apetite
Justamente inimigo.
 
 
 
emily dickinson
duzentos poemas
trad. ana luísa amaral
relógio d´água
2014
 



21 novembro 2023

konstandinos kavafis / o espelho na entrada

 




 

A casa rica tinha no vestíbulo
um espelho enorme, imenso, muito antigo,
comprado há pelo menos oitenta anos.
 
Um perfeito rapaz, aprendiz de alfaiate –
e aos domingos atleta amador –
chegou com um embrulho. Entregou-o
a alguém da casa que o levou p’ra dentro
por causa do recibo. O mandarete
ficou sòzinho à espera ali na entrada.
E foi até ao espelho e começou a ver-se
e a ajeitar a gravata. Uns minutos depois,
trouxeram-lhe o recibo, e foi-se embora.
 
Porém o espelho antigo que já vira,
nos tantos anos em que fora espelho,
milhares e milhares de imagens várias,
ficou contente enfim, cheio de orgulho,
pois recebera em si, dentro de si,
inteira, tal beleza, por instantes.
 
(1930)
 
 
 
constantino cavafy
90 e mais poemas
trad jorge de sena
edições asa
2003


20 novembro 2023

saint-john perse / amargos

 




 

 
1
 
E vós, Mares, que ledes nos mais vastos sonhos, deixar-nos-eis uma noite sobre os rostros da cidade, entre a pedra pública e os pâmpanos de bronze?
 
Mais larga, ó multidão, a nossa audiência nesta vertente de uma idade sem declínio: o Mar, imenso e verde como uma alvorada a oriente dos homens,
 
O Mar em festa nos seus degraus como uma ode de pedra: vigília e festa nas nossas fronteiras, murmúrio e festa à altura de homens – o próprio Mar nossa véspera, como uma promulgação divina…
 
O odor fúnebre da rosa não mais assediará as grades do túmulo; não mais a hora viva das palmas calará a sua alma de estrangeiro… Amargos, os nossos lábios de viventes alguma vez o foram?
 
Vi sorrir aos fogos do largo a grande coisa feriada: o Mar em festa dos nossos sonhos, como uma Páscoa de erva verde e como festa que se festeja,
 
Todo o Mar em festa dos confinas, sob a sua falcoaria de nuvens brancas, como bens de domínio público ou terras de mão morta, como província de erva louca e que foi jogada aos dados…
 
Inunda, ó brisa, o meu nascimento! E que o meu favor se lance no circo de mais vastas pupilas!... as zagaias do Meio-Dia vibram às portas do júbilo. Os tambores do nada cedem aos pífaros de luz. e por toda a parte o Oceano, calcando aos pés o seu peso de rosas mortas,
 
Sobre os nossos terraços de cálcio ergue a cabeça de Tretarca!
 
 
 
saint-john perse
antologia poética
amargos
tradução de carlos cunha e alfredo margarido
guimarães editores
1961
 




19 novembro 2023

jorge luís borges / insónia

  
 
De ferro,
de encurvadas vigas de enorme ferro tem de ser a noite,
para que não a rebentem e a desentranhem
as muitas coisas que os meus olhos repletos já viram,
as duras coisas que insuportavelmente a povoam.
 
O meu corpo enjoou as passagens de nível, as temperaturas, as luzes:
Em vagões de longos caminhos-de-ferro,
num banquete de homens que se enfastiam,
no fio amolgado dos subúrbios,
numa abafada quinta com estátuas húmidas,
na noite repleta onde abundam os cavalos e os homens.
 
O universo desta noite tem a vastidão
do esquecimento e a precisão da febre.
 
Em vão desejo distrair-me do corpo
e dos desvelos de um espelho incessante
que o dissipa e o espreita
e da casa que repete os seus pátios
e do mundo que continua até ao degradado arrabalde
de barro torpe e de becos onde o vento se cansa.
 
Em vão aguardo
as desintegrações e os símbolos que antecedem o sono.
 
Prossegue a história universal:
os minuciosos rumos da morte nas cáries dentárias,
a circulação do meu sangue e dos planetas.
 
(Odiei a água libertina de um charco,
cansei-me ao entardecer com o canto dos pássaros.)
 
As fatigadas léguas sem fim do subúrbio do Sul,
léguas de pampa imunda e obscena, léguas de execração,
não querem ir-se embora da lembrança.
Lotes alagadiços, barracas amontoadas como cães, charcos de prata fétida:
Sou a entediada sentinela desses paradeiros imóveis.
 
Arames, desaterros, papéis mortos, restos de Buenos Aires.
 
Creio esta noite na terrível imortalidade:
nenhum homem morreu no tempo, nenhuma mulher, nenhum morto,
porque esta inevitável realidade de ferro e de barro
tem de atravessar a indiferença dos que estão adormecidos ou mortos
– mesmo que se escondam na corrupção e nos séculos –
e condená-los a uma assombrada vigília.
 
Toscas nuvens cor de borras de vinho hão-de inflamar o céu;
Amanhecerá nas minhas pálpebras apertadas.
 
 
Androgué, 1936
 
 
 
jorge luís borges
obras completas 1952-1972 vol. II
o outro, o mesmo (1964)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998