01 agosto 2023

carlos bessa / em defesa do campismo selvagem

 




 
Passei a infância a fazer campismo selvagem.
Mal via um livro acampava logo.
Um dia li não sei onde que o campismo
selvagem era mau para as minorias e fiquei triste.
Coitadas das minorias. Que seria delas sem
um pouco de comiseração? Mas como nunca
fui de igrejas, continuei a acampar onde
me apetecia. O pior é que, aos poucos,
acampar assim deixou de ser banal
e tornou-se assunto doutras minorias.
E eu, pobrezinho, lá tive que ou ficar
em casa ou passar a dormir na pensão.
 
 
 
carlos bessa
telhados de vidro n.º 11
novembro 2008
averno
2008
 
 

 

 

 


31 julho 2023

eugénio de andrade / o copo de água

 



 

Devia ser nos começos do verão, os inumeráveis jacarandás de Jerez de la Frontera estavam em flor. Nos pátios da luxuosa vivenda onde me haviam instalado (que o Governo confiscara a um riquíssimo produtor de vinhos da região por fraude fiscal, agora destinada a hospedar gente da cultura), os repuxos erguiam os seus irisados fios de água para logo os deixar cair molemente na face doutras águas cativas em grandes taças de mármore, onde já flutuavam uma ou outra flor de jacarandá. Aquele rumor, a que se misturava às vezes algum canto de ave, parecia-me então a música do paraíso.
 
Durante aqueles dias, eu ficava por ali sentado toda a manhã com os meus papéis e um copo de água, que o caseiro me punha em cima da mesa, um copo de cristal com grinaldas de flores gravadas na parte superior, poucas coisas haverá tão bonitas como um copo de água fresca no verão, mesmo quando o vidro não tem a o brilho e a transparência do cristal. O caseiro, cuja voz vinda doutro pátio me prendia a atenção com cantares andaluzes muito ornamentados, também colocava cuidadosamente à noite, na minha mesa de cabeceira, um copo de água em tudo semelhante àquele de que falei. E como lhe referisse a beleza, ele ofereceu-me, ao partir, o que estava no meu quarto, como lembrança da minha passagem pela casa. É esse copo que, desde então – e já lá vão tantos anos! – tenho à cabeceira, e sempre com água fresca, como se o verão e a luz dos jacarandás durassem eternamente.
 
 
Foz do Douro, 24.3.2001
 
 
 
eugénio de andrade
inimigo rumor número 14
1º semestre 2003
livros cotovia
2003
 




30 julho 2023

josé maría zonta / tsiang lin e a tempestade

 
 
Passo bem com a tempestade
 
embora esteja claro que, no final, me destruirá
e terei que reconstruir-me com o que restar na praia, madeira,
caracóis, fogueiras apagadas
 
e animais que já não sabem se são da terra, do ar ou do mar.
 
Já não seria eu, é claro, terias que ter um pouco de paciência,
poderias descarrilar-me com um beijo
 
ou engasgar-me com um rolo de sushi. Nada de grave: o pior
que poderia acontecer era não me lembrar que me amas.
 
Porque nenhuma tempestade me fará esquecer que te amo.
 
 
 
josé maría zonta
tradução de élia calvo
nervo/1
colectivo de poesia
janeiro/abril 2018




 
 
 

29 julho 2023

dennis cooley / eles sofrem de má circulação

 



 
já alguma vez vos escutastes a vós mesmos
é verdade que nunca escutais ninguém
          mas por que não tentais para variar
ficar acordados e ver o que acontece para variar
 
 
vós nessas vossas celas monásticas nessa vossa comunhão de antos
alguma vez vos ocorreu como sois onanistas
como sois dados a poupanças poupar isto poupar aquilo
o quanto sois guiados por lucros pregais a re
tenção de depósitos esse cu forreta essa economia de sangue
quero dizer tendes já montes de hemorroidas & isso não chega
é preciso ter mais até onde chega essa sede de sangue
vós & a vossa pena capital
 
 
sofreis de má circulação varizes
incham essas barrigas de sapo de juros tingidos de sangue azul
claro que há mau sangue entre nós que é que
quereis vós e a vossa má língua como fazeis estalar
o porta-moedas os lábios apertados púrpuros & presumidos
quase gritam há uma terrível
obstipação precisais de soltar-vos
vós & as vossas luas cintadas
essa persistência parva & presa com ligas
 
 
precisais de pôr as coisas em circulação estais a morrer
gangrenados do coração envilecido & cartilaginoso
precisais de comer o meu corpo para vos fortificardes
mais cedo ou mais tarde havereis de comer
as minhas palavras minhas senhoras & meus senhores palavra
da forma que comeis dos outros as suas escudelas de sangue
 
 
apenas pode significar uma coisa os pequenos espíritos vis
que amealhais fazem-vos temer a inflação a maré vermelha
o raide vermelho quando fingindo ser uma flor
de parede sois reconhecidos como o banco de sangue
ambulante que na verdade sois sujeito a levantamentos
adiantamentos nacionalizações impostos a sin
taxe de renovação todas as purgas não temais
alinhai comigo eu hei-de salvar-vos
de vós mesmos caros cidadãos
 
 
 
in Seeing Red. Winnipeg: Turnstone Press, 2003, pp. 115-116
 
 
 
dennis cooley
tradução de manuel portela
relâmpago
revista de poesia
nr. 17/10 2005
a tradução de poesia
fundação luís miguel nava
2005




28 julho 2023

alexandre sarrazola / café mounir

 
 
em torno da praça e de seu solitário cedro em círculos cegos
          caminhavam os velhos
a sineta de um mendigo e a obstinada fuga à palavra (seus
          eufemismos todos);
na mesa do Café Mounir, hoje à chuva, o lugar-comum do meu chá
          por beber
um engulho no telefonema breve: a voz do teu filho a dizer-me que
          quiseste ficar
no lugar em que a terra se te encostou ao peito largo de cedros faias
          e aveleiras
 
 
coxeavam em círculos ainda assustados, sempre de mãos dadas, pela
          praça do minarete
engalanada com reclames luminosos em línguas nazarenas; um cão
          cego à minha beira
submergiam do aquário índigo das ruas (olhos ao alto) e cegos
          jamais se perdiam
– sob as luzentes águas da montanha – de mãos dadas andavam;
          um cão à tua beira
 
 
eu pousava o auscultador e o fumo subia da minha boca para um
          retrato de Hayworth
pendurado em frente ao pórtico da esplanada, por detrás da
          teleboutique e das revistas:
e tu com ele para o canídeo dorso do céu – só esta noite – órfão
          de estrelas
 
 
 
alexandre sarrazola
resumo, a poesia em 2013
assírio & alvim
2014
 




27 julho 2023

ricardo gil soeiro / visita nocturna



 
Às vezes, em navegáveis noites de
luar, acordo dentro dos teus sonhos.
E se assim te invado, sem desculpa,
nem pudor, a intimidade violada,
é para dizer-te num sussurro que
sou bem real, não essa imagem
gasta de boneco alado, viajando
em imperceptíveis caudas de cometas.
Com passos de veludo, para não ser grande
o sobressalto, percorro em câmara lenta
os corredores da tua alma adormecida,
plantando a semente de promessas adiadas.
De tudo me sirvo: deixo postais de viagem,
triviais fotografias e até ridículas cartas de amor.
Em vão procuro convencer-te de que existo,
à margem silenciosa da história dos humanos.
Terminada, porém, a noctívaga expedição,
a verdade é que tudo fica na mesma:
e já que assim te esqueces de mim,
apressar-me-ei a apagar sem remorsos
os vestígios da breve passagem sonâmbula.
Quando, esquecido, regressares das estrelas
mais tardias, reconhecerás, afinal, que terei
sido sempre eu a fiel morada que buscavas.
Então, e só então, perdurarei eu, mortal e
imperfeito, no rasto de cinza que deixares.
 
 
 
ricardo gil soeiro
voo rasante
antologia de poesia contemporânea
mariposa azual
2015
 


 

26 julho 2023

robert pinsky / exílio

 
 
Ao fim de pouco tempo mudas-te
De uma cidade para outra
Como se tivesses de encenar este ritual.
Quadros para pendurar e mobília,
 
Caixotes de livros para arrumar –
E aqui, embrulhados no jornal,
Os símbolos mortais da memória, tesouro
De uma vida desenterrada:
 
Nuvem melíflua, espasmos
De desespero, e paixão,
Boas ou más noites,
Dias de vitórias menores e cicatrizes
 
Sabendo a prata ou ferro,
Tacto, perda, gritos, artes,
Gestos, sussurros,
A violência desesperada de sensações
 
Como chuva fustigando uma janela –
Depois o estrépito do relâmpago, o corpo cego
Por restituição ou desastre,
O que não te é dado saber,
 
Depurado por lágrimas e trovão.
Agora começas. Por um momento
Tudo te confirma
Que o longo exílio acabou.
 
 
 
robert pinsky
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
tradução de josé alberto oliveira
assírio & alvim
2001
 



25 julho 2023

zetho cunha gonçalves / no meu ombro

 
 
Repousa
no meu ombro
a tua insónia:
 
– A noite
é o grande poema.
 
E vai
até de madrugada.
 
 
 
zetho cunha gonçalves
noite vertical
poemas reunidos 1979-2021
maldoror
2021




 

24 julho 2023

luís veiga leitão / prisioneiro

 



 

O prisioneiro é como navio
preso ao cais. Amarras de desterro
com ferrugem de noites a fio
e redes de ferro.
Do casco que um vento negro impele
caiu-lhe a pintura, o próprio nome.
Mas o mar está dentro dele
e não há força que o dome.
 
 
 
luís veiga leitão
ciclo de pedras
portugália
1964
 




23 julho 2023

antónio franco alexandre / cartão-postal

 




 
um moço, em Olinda, amava a palavra «ter»;
«eu acho bonito, ter». Como não tinha nada,
era livre de dar às palavras;
 
nalgumas não-bocas a palavra «ser»
dá vontade de morrer, já disseram.
Só essa
 
é a força formal das palavras.
esta não é a estória de um encontro.
foi a laboriosa a tarde, no ruído
 
de passos e gritos, e o som
de exactos motores. através dos dedos escorre
a relva, como a ignorância de um sonho;
 
o teu corpo deitado tem
um sabor raro a coisas certas
vê: a terra arada cheia de
 
guerra, uma coisa eu odeio mesmo
é a guerra, falou:
escrever deus ensina mas voz
 
homem só inventou.
 
 
 
antónio franco alexandre
cartão-postal
poemas
assírio & alvim
1996
 



22 julho 2023

harry martison / a impotência

 
 
Certa vez encontrei um machado cravado na terra
até ao ferro.
Era como se alguém tivesse querido cortar o mundo
inteiro em dois
bocados de um só golpe.
A vontade não tinha faltado, mas tinha-se partido o cabo.
 
       Gräsen i Thule, 1958



harry martison
o destino da árvore é
transformar-se em papel
antologia de poesia sueca
poemas vertidos para português por
amadeu baptista
contracapa
2021





 
 
 

21 julho 2023

daniel faria / zaqueu

 



 
A árvore foi a forma de te ver
E desci para abrir a casa.
De me teres visitado e avistado
Entre os ramos
Fizeste-me passagem
Da folha ao voo do pássaro
Do sol à doçura do fruto.
Para me encontrares me deste
A pequenez.
 
 
 
daniel faria
poesia
se fores pelo centro de ti mesmo
quasi
2003
 




20 julho 2023

josé gomes ferreira / melodia

 



 

IV
De súbito, acordei
perto das coisas distantes
com a vaga tentação
de dar um salto na sombra
até chegar ao coração da Morte.
 
Mas fiquei de olhos fechados
a cair dentro de mim
noutra sombra ainda mais densa
– onde dorme à minha espera,
tão ignorante de abismos,
a minha morte, só minha,
que nunca apagou estrelas
nem adormeceu raízes…
 
 
 
josé gomes ferreira
melodia 1932
poesia I
portugália
1972