…all the fury, the anguish, the remors,
the voices, voices, voices, voices…
MALCOLM LOWRY, Lunar Caustic
1. LUNA PARK
Quando subiu a escada de corda sabia que. Do outro
lado pode haver uma barra, ou não. Do outro lado pode haver a mão à espera. Lançou-se
no trapézio, entre aplausos e música.
Quando caiu na pista ainda respirava. Nas espáduas
despontava uma ligeira plumagem. Como se fossem asas.
2. E UMA MOEDA NO BOLSO
Da arte de cultivar a rosa ele sabia.
Quando fechou as persianas, a porta, eram as
primeiras horas da manhã. Não deixou bilhetes, número de telefone, fotografias.
Um casal encontrou-o uns dias depois nas dunas. Morto, com um tiro na cabeça.
Na autópsia descobriram, incrustada no cérebro, em
lugar da bala, uma viçosa flor vermelha.
3. MÃE
Tinha deixado escrito, a letra miúda, o aparo de
ouro, a tinta violeta, no caderno de viagem – depois do deserto é o mar. quando
o rasto na areia húmida se dividiu, espantando as gaivotas. E caminhou para a
água, onda após onda, na memória do exílio, até à voragem.
4. VIAJANTE DE MUITOS ROSTOS
Quando encontrou o caçador de instantes a luz
reflectiu-se na lenta da câmara fotográfica. Apontada com cuidado, disparando
guardava imagens, não pensamentos nem afectos, instantâneos. Como um tiro numa
emboscada em áfrica.
A luz queimava o olhar. O duplo estava próximo,
focava a máquina. Devagar, sem ruído, arrastou-se para a sombra. Apertou a
navalha no bolso. Alguém murmurava: - morre-se quando a imagem da retina
encontra a imagem da película.
5. SALMO
Ela apagou a luz e queimou o incenso. Disse: - Para onde ir longe do teu espírito, como
ocultar-me da tua face?
Quando ele chegou descobriu as sete lâminas
dispostas sobre a mesa. Uma vela na penumbra alumiava-lhe o corpo coberto de
fios. Da vulva aos mamilos armadilhado, o cronómetro ao ritmo do pulso, a
granada sobre o peito. Escutou no clamor da música a voz indistinta – alma,
arma, ama.
6. O CADERNO QUEIMADO
Tinha comido as fezes, bebido mijo: fodera uma
cabra. Quando atravessou o rio, rasgou os pulsos, cobriu-se de terra. Leu: – se
tudo está escrito desaprender a falar é o que resta.
Acordou. Fez a barba, deu lustro aos dentes. Lá fora
as primeiras vozes, sirenes. E o coração apodrecendo contra as grades, contra.
antónio barbedo
hífen 6 fevereiro, 1991
cadernos semestrais de poesia
heresias
1991