02 junho 2023

octavio paz / madrigal



 

Mais cristalina
que essa gota de água
entre os dedos da trepadeira
meu pensamento estende uma ponte
de ti mesma a ti mesma
                                   Vê-te
mais real que o corpo que habitas
imóvel no centro de minha fronte
 
Nasceste para viver numa ilha
 
 
octavio paz
antologia poética
iniciação (1964-1968)
trad. luís pignatelli
publicações dom quixote
1984


 



01 junho 2023

martín lópez-vega / junho

 
 
                             Vai donc, e si-t prec del chan
                             Que no-l peiurs.
 
                             Giraut de Borneth

 
 

Conduzíamos rumo a Piran
enquanto um melro
bicava uma cereja
e deixava dentro a sua canção.
 
Passeámos junto ao mar.
Invejámos os adolescentes que riam
seminus e se semidesnudavam
uns aos outros apenas com o olhar.
O tempo nunca faz o caminho de volta,
pensámos todos, mas ninguém o diz.
Nem faz falta, escapou-se-me em voz alta.
Comemos peixe defronte à Croácia.
Sonhámos ser amigos das velas.
A Casa de Giuseppe Tartini estava fechada
mas escutámos um violino tocado
quem sabe se pelo sue fantasma.
 
Já de volta
detivemo-nos no caminho
para comprar fruta recém-colhida.
A primeira cereja que comi
estava bicada por um pássaro,
e agora trago dentro a sua canção.
 
 
 
martín lópez-vega
a eterna qualquercoisa
tradução de jorge melícias
officium lectionis edições
2022




31 maio 2023

rui diniz / carta



 
Escrevo-te da noite girassolada dos trópicos. A riviera é
Um velhíssimo meeting de gerações de ébrios. As raparigas,
em Madrid, foram muito amáveis. Mas tenho razões para
voltar a barcelona, talvez no verão. Viajei no comboio
de Paris onde conheci alguns escritores refugiados. Um poeta
das astúrias ria com vinho escorrendo-lhe dos lábios.
Tenho a impressão que em alguns minutos te descrevia
O amor quente que me tomou em Almalfi, onde me lembro
de sebastian. Subitamente, num outono escuro, em Pádua de
que já falei, estive toda uma tarde a ler os teus poemas e
a chorar. Fazia um vento azulado e áspero e as mesas de
metal emitiam dolorosos sons ao longo da vazia esplanada.
Dos jardins queimados em Toledo não te direi nada. Ríamos.
Éramos um grupo estranho, talvez por um sopro azulado de
Nêsperas ter feito curvar os rostos até aos livros, numa
praia. Era o algarve, extenso, com a doce cal e os terraços
de choro nocturno, com o céu claríssimo do sul sacrificando
o que nos era possível criar, escrever, amar. Regressei
a portimão quando as flores de pesca se alongavam
pela margem. Alguém me escrevera de um café em Lagos
e eu conhecia mesmo vários poetas em badajoz, onde me
lembro de hemingway indo às touradas. Escrevo-te
pois, de um snack-bar, em pleno setembro, com um
rosto lindíssimo afundado numas nuvens, e destilando
o seu cinzento choro, com a guerra civil cantando
à minha volta os hinos roucos das ruas, suaves como
casacos de montanha, com a sua maquillage
de sangue e de crianças. Tudo são preparativos para uma
expedição que desconheço, mas lentamente em mim
apercebo-me de que também eu irei nela e verei os
aviões sobrevoando os vestidos escuros das mulheres,
onde os lábios desmanchados compõem ao som das
fogueiras nocturnas e nos vasos áticos do repouso,
as amadas flores de sal, os beijos ardentes que receberão
os poetas presos no Bósforo.
 
 
 
rui diniz
ossuário
(ou: a vida de james whistler)
& etc
1977



 

30 maio 2023

luís miguel nava / os nervos

 



 
Começaram-se-lhe os nervos, um dia, a reproduzir com uma violência inusitada, abrindo-lhe por fim a pele, por fora da qual, como a hera nas paredes, rapidamente se espalharam, sobrepondo-se aqui e acolá à própria roupa, com que deixou de poder dissimular o acontecido. Não havia, além disso, peça de vestuário que, depois de a ter vestido há algumas horas, o seu espírito já quase não houvesse totalmente devorado. O mesmo sucedia com os óculos. À nudez que o espírito lhe impunha, vinha-se juntar assim uma espécie de cegueira, entre as quais não tardou a haver quem encontrasse afinidades.
 
 
 
luís miguel nava
o céu sob as entranhas
poesia
assírio & alvim
2020




29 maio 2023

rui costa / a selva é redonda

 



 

Os macacos comem bananas porque
era a fruta que tinham mais à mão.
Se tivessem mais à mão morangos, os
macacos comeriam na mesma bananas,
porque os morangos são muito difíceis de
descascar. As bananas são comidas por
macacos porque são os animais com mais
mãos que têm ali à mão. As bananas não
têm mãos mas têm casca, que é uma espécie
de mão à volta da banana. As bananas prefe-
riam ter mãos mas saiu-lhes antes casca.
Ser casca não deve ser fácil, passar a vida
a ser deitado fora. Os árbitros de futebol
têm duas mãos, uma para cada cartão.
Os macacos também arbitram as bananas,
Comendo-as. Os macacos não mostram
os cartões às esposas. Preferem seduzi-las
usando da inteligência. Não sei como vim
parar à selva. Talvez tenha corrido demais
atrás da bola.
 
 
rui costa
«se uma estrela me falha, agarro numas nuvens»
mike tyson para principiantes
antologia poética
assírio & alvim
2017
 


28 maio 2023

pedro homem de mello / o rapaz da camisola verde

 
 
É com histórias que se conta a vida
E a minha história é breve de contar.
Mas a palavra bela e proibida
Tem da noite os silêncios e o luar…
 
Podia eu vir, a meio do caminho,
Juntar-me à Cruz, cantando para erguê-la.
Mas o segredo, amigos, é meu vinho
E minha estrela.
 
Podia, com os braços, destruir
A trajectória deste coração.
Mas sou de Alcácer Quibir
De El-Rei Dom Sebastião.
 
E assim, como em manhã de nevoeiro
– Manhã de Outono quando não de Abril –
Aqui vos deixo, oculto mas inteiro,
O meu perfil…
 
 
pedro homem de mello
o rapaz da camisola verde (1954)
poesias escolhidas
imprensa nacional-casa da moeda
1983




27 maio 2023

rui lage / brasserie

 



 

Remexia cerveja, recordava vinho
E lâminas de claridade retinta
Feriam-me nesta inércia de linho
Quando ela entrou, drapeando a cinta
 
A flamenga… tudo o mais era moldura:
Um baixo-relevo de óleo estático
E a luz da lamparina cozedura
De sombra, de ar, de lume dramático.
 
Eu só aplaudia o seu desfile rosado
Como um papel-de-parede ruidoso
(E nos seus cabelos sentia-me usado)
 
Como se lágrimas, palavras jorrando
Na suspensão de ela ser me sentasse
E já desde o fim do olhar me olhasse.
 
                                     
                                               Bruxelas
 
 
 
rui lage
antigo e primeiro
quasi
2002
 



26 maio 2023

vasco graça moura / mão

 



 

como a palma da mão
aberta e livre
com cinco dedos lisos     escorridos
é tépida e saudável
 
na sombra dum recanto se desenha
incólume diurna
ou franca e disponível
avança e auxilia
 
com pequenas nervuras     leves sulcos
levemente tensa     levemente côncava
moldada para molde
 
é tímida e segura
mesmo pobre
 
 
 
vasco graça moura
modo mudando
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007
 


25 maio 2023

manuel antónio pina / calo-me

 



 

Calo-me quando escrevo
e assim as palavras falam mais alto e mais baixo
Nada no poema é impossível e tudo é possível
Mas não arranjo maneira de entrar no poema
e de sair de mim e por isso a minha voz é profunda e rouca
e por isso me calo (e como me calarei?)
No entanto ninguém é tão falador como eu
Nem há palavras que não cheguem para não dizer nada
 
E vós também: não me faleis de nada, ou falai-me.
Porque não sabeis o que dizeis.
 
 
 
manuel antónio pina
ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde (1969)
algo parecido com isto, da mesma substância
poesia reunida 1974-1992
afrontamento
1992
 



24 maio 2023

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

 



 

V

Nos teus dedos nasceram horizontes
e aves verdes vieram desvairadas
beber neles julgando serem fontes.
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000





23 maio 2023

federico garcia lorca / encruzilhada

 




 
Vento do Leste,
uma lanterna
e o punhal
no coração.
A rua
tem um tremor
de corda
em tensão,
um tremor
de enorme moscardo.
Por toda a parte
eu
vejo o punhal
no coração.
 
 
 
federico garcia lorca
poemas
trad. de eugénio de andrade
assírio & alvim
2013
 



22 maio 2023

walt whitman / canto de mim mesmo

 




I
 
Celebro-me e canto-me,
E aquilo que assumo tu deves assumir,
Pois cada átomo que a mim pertence a ti pertence também.
 
Vagueio e convido a minha alma,
À vontade vagueio e inclino-me a observar a erva do Verão.
A minha língua, cada átomo do meu sangue, composto deste solo, deste ar,
Aqui nascido de pais aqui nascido de outros pais aqui nascidos, e dos seus
           pais também,
Eu, aos trinta e sete anos, de perfeita saúde começo,
Esperando que só a morte me faça parar.
 
Suspensos os credos e as escolas,
Retiro-me por certo tempo, deles saturado mas não esquecido,
Sou o porto do bem e do mal, e seja como for falo,
Natureza sem obstáculos com a sua energia original.
 
 
 
walt whitman
canto de mim mesmo
trad. de José agostinho baptista
assírio & alvim
1999



21 maio 2023

samuel beckett / sânie II

 
 
Havia uma terra de felicidade
o American Bar
na Rue Muffetard
havia lá ovos vermelhos
tenho um sujo quero dizer hemorróidas
regressando do banho
o vapor o deleite o refresco de sumo de frutas
a pena do velho corpo
magrizela, indolente feliz
à larga no meu velho fato
navegando indolente até Puvis a dupla fileira
                                                 [de tulipas
açoitem-me açoitem-me com tulipas amarelas
baixarei as minhas velhas calças
o meu amor coseu as algibeiras vivas vivas olé
                  [pois fê-lo dizendo que era melhor
e então imaculado deslizando dentro dos
                                       [farrapos castanhos
fresco e livre subindo o fiorde de ovos pintados
                                                        [e sinos
desapareço não sabias na taberna
as cavalas jogam bilhar gritam os pontos
a Barfrau produz grande impressão com o seu
                                            [enorme traseiro
estão lá Dante e a bem-aventurada Beatriz
antes da Vita Nuova
as bolas espadanam pouca sorte camarada
estão lá Gracieuse Belle-Belle pia abaixo
Percinet de botas com a sua queixada de
                                                        [cobalto
beijocam-se à lufa-lufa
sugar não é sugar que altere
lo Alighieri retira-se ao revoir a isso tudo
não consigo reprimir um risinho de despeito
escuta
silêncio terrível no salão
um frémito convulsiona Madame de la Motte
percorre sonoro as suas carnes
o grande traseiro silencia-se em espuma
depressa depressa as bengalas de cipó de
              [cavalete para o desconexo palavrório
vivas puellas mortui incurrrrrsant boves
oh súbito súbito antes que ela se recomponha
               [a golilha de bambu para a bastonada
uma fessade à la mode de lua amarga
oh Becky poupa-me não te fiz nenhum mal
                                          [poupa-me maldita
poupa-me boa Becky
manda às tuas víboras que parem Becky que
                          [eu te darei larga recompensa
Senhor tem misericórdia de
Cristo tem misericórdia de nós
 
Senhor tem misericórdia de nós
 
 
 
samuel beckett
poemas escolhidos
tradução de jorge rosa e armando da silva carvalho
dom quixote
1970