25 abril 2023
24 abril 2023
josé gomes ferreira / homens de outros séculos
invejai-me!
no Dia do Grande Ruído
quando se escancaram na terra
as Portas de Bronze
para todos os recomeços…
caminhos de garras
para obrigar as sombras dos homens a erguerem-se no êxtase
de morrer de pá!
nesta paisagem de bocejos
e estrelas estagnadas
onde só há cegos
presos na própria noite
aos tombos de declive…
– sem ao menos suspeitarem
de que anda uma nova Morte pelo mundo!
nesta primavera de cadáveres
tão contentes de terra
que até beijam as raízes
para que as flores dos outros
nasçam mais límpidas
nas manhãs do sol múrmuro a espreguiçar-se no vento
das planícies…
poesia II
invasão 1940-1941
portugália
1962
23 abril 2023
joaquim manuel magalhães / grahams bond registered
Onde apareces chamo eu uma janela,
o que não sou eu, um rosto, essa palavra
com que digo o que despedaças,
uma rouca fachada,
um resto que lembro quando te vais embora,
uma coisa de prisão saindo da penumbra.
joaquim manuel magalhães
fotografias de jorge molder
os dias, pequenos charcos
editorial presença
1981
o que não sou eu, um rosto, essa palavra
com que digo o que despedaças,
uma rouca fachada,
um resto que lembro quando te vais embora,
uma coisa de prisão saindo da penumbra.
fotografias de jorge molder
os dias, pequenos charcos
editorial presença
1981
joão miguel fernandes jorge / vanitas
Quem lê não está morto.
Somente aproxima as palavras
da chama do tempo.
Quase foge. Quase se funde
na luz da vela.
Vem. Lê baixo, num murmúrio,
as palavras.
Último esforço ruinoso, as palavras
fecho de um mundo sem esperança.
A palavra
a última que puderes ler
reflecte na fundura da órbita
a causalidade de deus.
Irradia a última palavra
luz interior
a imagem incendeia a própria caveira
dessa palavra
vem
abre o livro
quem lê não está morto
/Mestre desconhecido, pintura italiana, séc. XVII/
joão miguel fernandes jorge
museu das janelas verdes
relógio d´água
2002
museu das janelas verdes
relógio d´água
2002
22 abril 2023
cesare pavese / tolerância
Chove sem ruído no prado do mar.
Nas ruas sujas não passa ninguém.
Do comboio desceu uma mulher sozinha:
por baixo do casaco comprido viu-se a combinação clara
e as pernas desaparecerem por uma porta escura.
Dir-se-ia uma aldeia submersa. O anoitecer
pinga, frio, sobre as soleiras das portas, e as casas
espalham na escuridão um fumo azulado. As janelas
acendem-se, avermelhadas. Acende-se uma luz
entre as portadas fechadas na casa às escuras.
Na manhã seguinte está frio e o sol brilha sobre o mar.
Uma mulher em combinação lava os dentes
na fonte e a espuma é rosada. Tem cabelos
louros arruivados, semelhantes às cascas de laranja
espalhadas no chão. De bruços na fonte, nota pelo canto do olho
um gaiato moreno que a fita encantado.
Mulheres feias abrem as portadas de par em par para a praça
– os maridos dormitam ainda, no escuro.
Quando volta a noite, a chuva recomeça
e crepita sobre as muitas lareiras. As esposas,
ao remexerem as brasas, deitam olhares à casa
às escuras e à fonte deserta. A casa
tem as portadas fechadas, mas lá dentro há uma cama,
e na cama uma loura ganha a vida.
Toda a aldeia descansa de noite,
toda, menos a loura que se lava de manhã.
cesare pavese
depois
trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997
Nas ruas sujas não passa ninguém.
Do comboio desceu uma mulher sozinha:
por baixo do casaco comprido viu-se a combinação clara
e as pernas desaparecerem por uma porta escura.
pinga, frio, sobre as soleiras das portas, e as casas
espalham na escuridão um fumo azulado. As janelas
acendem-se, avermelhadas. Acende-se uma luz
entre as portadas fechadas na casa às escuras.
Uma mulher em combinação lava os dentes
na fonte e a espuma é rosada. Tem cabelos
louros arruivados, semelhantes às cascas de laranja
espalhadas no chão. De bruços na fonte, nota pelo canto do olho
um gaiato moreno que a fita encantado.
Mulheres feias abrem as portadas de par em par para a praça
– os maridos dormitam ainda, no escuro.
e crepita sobre as muitas lareiras. As esposas,
ao remexerem as brasas, deitam olhares à casa
às escuras e à fonte deserta. A casa
tem as portadas fechadas, mas lá dentro há uma cama,
e na cama uma loura ganha a vida.
Toda a aldeia descansa de noite,
toda, menos a loura que se lava de manhã.
depois
trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997
21 abril 2023
julio cortázar / história verídica
Este homem fica contentíssimo e compreende que o acontecido é uma advertência amistosa, de maneira que vai a um oculista e compra imediatamente um estojo de couro almofadado com dupla protecção, para remediar o mal. Uma hora depois o estojo cai no chão e ao abaixar-se sem preocupações de maior descobre que os óculos se fizeram em fanicos. O homem demora um grande bocado a compreender que os desígnios da Providência são inescrutáveis e que na realidade o milagre ocorreu agora.
histórias de cronópios e de famas
material plástico
tradução de alfacinha da silva
editorial estampa
1973
20 abril 2023
leopoldo alas / com este sol
(a luz, a nitidez do céu,
esses aromas naturais
que desdenhei de há uns tempos até agora)
é fácil esquecer-me que o mal resiste
nos corações, nos olhares prudentes
dos homens cansados,
em tantos abismos das cidades,
nos dias que passam obscenos
sem se revoltarem,
tal como esses criados orientais
que, sem perder o sorriso, conspiram.
Com este sol que me descansa a alma.
poesia espanhola de agora vol. II
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997
19 abril 2023
josé tolentino mendonça / os incêndios
sob os umbrais de uma morada
nos carreiros que vão dar aos montes
sairás ainda em súplica
quando os incêndios ignorarem a ameaça
da tua vassoura de giestas
não retorna a mesma
longe não sabia
presença
1997
18 abril 2023
jorge de sena / «quem muito viu…»
mágoas, humilhações, tristes surpresas;
e foi traído, e foi roubado, e foi
privado em extenso da justiça justa;
os mundos e submundos; e viveu
dentro de si e o amor de ter criado;
quem tudo leu e amou, quem tudo foi –
em sorte como a todos os que vivem.
Apenas não viver lhe dava tudo.
será sempre sem pátria. E a própria morte,
quando o buscar, há-de encontra-lo morto.
arte de música (1968)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972
17 abril 2023
josé saramago / estrelas poucas
Que mais é que palavras apanhadas
No refugo das línguas e das bocas?
Os mistérios são pouco o que parece,
Ou não chegam palavras a dizê-los:
Na fundura do espaço estrelas poucas.
provavelmente alegria
caminho
1987
16 abril 2023
luis alberto de cuenca / sem medo nem esperança
com um fato de gala impressionante
que recorda o que Dale Arden usou
quando Ming, o cruel, foi derrocado.
Fitámo-nos ambos nos olhos como
se fosse o primeiro dia da História.
E bailámos, bochecha com bochecha,
trasladados a um mundo sem amanhã
nem ontem, ardendo numa fogueira
de plenitude, como anjos rebeldes
que acabam por levar a sua avante
perdendo a batalha, como sombras
que, na vitória do amor, sem silêncio
se dizem, sem medo nem esperança,
as palavras que nunca se disseram.
a vida em chamas
uma antologia
trad. miguel filipe mochila
língua morta
2018
15 abril 2023
ted hughes / horóscopo
Querias estudar
as tuas estrelas – as guardas que vigiavam
o pátio da tua prisão, o seu zodíaco. Os planetas
murmuraram na sua fala de poder babilónico –
como os ossos do feiticeiro. Tinhas razão em ter medo
do ruído que os ossos pudessem fazer,
da nitidez com que o ouvido podia ouvir
o que os ossos segredavam,
até mesmo os que estavam como estes, embutidos num corpo
quente.
Só que tu não tinhas necessidade de calcular
os graus para saberes que o teu ascendente perturbava
Carneiro. Não tinha qualquer significado certo – nada mais
do que um rosto com uma cicatriz,
segundo o livro babilónico. Até onde
é que um mágico podia espreitar por dentro da pele?
Só tinhas de olhar
para o rosto mais próximo de uma metáfora
tirada do teu guarda-vestidos ou do teu prato
ou do sol ou da lua ou do teixo
para veres o teu pai, a tua mãe, ou a mim
trazendo-te o teu Destino completo.
ted hughes
cartas de aniversário
trad. de manuel dias
relógio d´água
2000
as tuas estrelas – as guardas que vigiavam
o pátio da tua prisão, o seu zodíaco. Os planetas
murmuraram na sua fala de poder babilónico –
como os ossos do feiticeiro. Tinhas razão em ter medo
do ruído que os ossos pudessem fazer,
da nitidez com que o ouvido podia ouvir
o que os ossos segredavam,
até mesmo os que estavam como estes, embutidos num corpo
quente.
os graus para saberes que o teu ascendente perturbava
Carneiro. Não tinha qualquer significado certo – nada mais
do que um rosto com uma cicatriz,
segundo o livro babilónico. Até onde
é que um mágico podia espreitar por dentro da pele?
para o rosto mais próximo de uma metáfora
tirada do teu guarda-vestidos ou do teu prato
ou do sol ou da lua ou do teixo
para veres o teu pai, a tua mãe, ou a mim
trazendo-te o teu Destino completo.
cartas de aniversário
trad. de manuel dias
relógio d´água
2000
14 abril 2023
maria teresa horta / os outros
secamente
e devagar ficamos
enlaçados
no seu vento
procuramos a paz fora do tempo
e a ternura a meio da madrugada
deixou
uma certeza?
disse
encantamento?
leu
a nossa vida?
acendeu
o pensamento?
de regresso
de repor
não tomado
sem fragor
dos outros tarde
mas sedentos de esperança
sempre cedo
Suspeitos
Devassados
do nosso medo
poesia reunida
minha senhora de mim
dom quixote
2009
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