22 janeiro 2023

pedro homem de mello / rua do paraíso

 
 
De dia
Como seria?
 
Alguém me disse: - Era estreita…
Mas por mim julgo: - Era larga.
 
Tanta saudade hoje a enfeita,
Bela e amarga!
 
Cumpriu-se nela a promessa
Da raiz do coração.
 
Era uma rua de Leça,
Onde os outros nunca vão.
 
– A Rua do Paraíso…
 
E aquele nome foi posto,
No meu peito e no meu rosto,
Com água do teu sorriso.
 
 
 
pedro homem de mello
grande, grande era a cidade… (1955)
poesias escolhidas
imprensa nacional-casa da moeda
1983




21 janeiro 2023

paul éluard / aurora

 



 

Do sol que corre sobre o mundo
Estou tão certo como de ti
O sol deu à luz a terra
 
Um sorriso a raiar as noites
Sobre o rosto despojado
De uma adormecida a sonhar a aurora
 
O grande mistério do prazer
Esse estranho torneio de brumas
Que nos leva a terra e o céu
 
Mas nos deixa um ao outro
Feitos um para o outro eternamente
Ó tu que arranco ao esquecimento
 
Ó tu que eu quis feliz
 
 
 
paul éluard
últimos poemas de amor
roupeiras ligeiras
trad. maria gabriela llansol
relógio d´água
2002





20 janeiro 2023

vergílio ferreira / o nada é impensável

 



326 – Não o perguntes. Basta pensar no que se perdeu não de há muito tempo até hoje. Ídolos das artes e letras, do futebol, da política, do que parecia bem ou mal. Tens razão, agora é diferente. Porque o que se sente no vento, o que se percebe na voz inaudível de um incerto aviso de morte não tem que ver com o mais e o menos, o que sobra do que se eliminou, mas com tudo o que se imaginou de toda a ordem da vida. Um homem novo está a nascer e não traz sinais do nosso sangue, do modo de se ser humano como limite de tudo o que se precisa imaginar. Será possível conceber-se um ser humano que nada tenha a ver com o ser-se homem? Um homem que se reconheça numa ordem de ser pensante e sensível? Hoje já não precisa de saber a tabuada para fazer contas, de saber ler e escrever para existir o livro e a carta, de haver amor ou simples atracção para produzir humanidade, de quaisquer regras para a consciência existir, se saber o que é isso de consciência para haver culpa ou remorso. O que se segue é ininteligível para um modo de haver entendimento das coisas. O que se segue começa no nada e o nada é impensável. Pois. Mas não te faças perguntas sobre um nada a começar. E acaba tu nos limites do que te foi pensar e sentir o justo e o injusto e tudo o mais que te ordenou o seres vivente na ordenação de tudo o que te coube. Porque amanhã nada te existe e o mundo terá portanto acabado. Não te canses a perguntar. E sê inteiro para quando a morte chegar cumprir o seu dever e tu o teu para não chegar em vão.
 
 
 
vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001




19 janeiro 2023

marianne moore / poesia

 



 
Eu cá também não gosto: há outras coisas importantes além deste
                                                                             desconchavo.
     Quando, porém, a lemos, desdenhando-a por completo.
                                                                   achamos, apesar de
     tudo, nela um lugar genuíno.
          Mãos prestes a agarrar, olhos
          prestes a dilatar, cabelo prestes a eriçar,
               se for o caso, são coisas importantes não por via
 
de uma interpretação sonante que as possa moldar mas por via de
                                                                                       serem
     úteis. Quando se tornam tão derivativas que ficam
                                                                              ininteligíveis,
     o mesmo se aplica a todos nós, que
          não admiramos o que
          não podemos entender; o morcego
               que se sustém de cabeça para baixo ou que procura algo que
 
comer, os elefantes a querer passar, um ginete a rebolar, um lobo
                                                                                        incansável
     debaixo de uma árvore, o crítico impassível a crispar a pele
                                     como um cavalo mordido por pulga, o adepto
     de baseball, o estatístico –
          e não vale
               discriminar contra “documentos empresariais e
 
manuais escolares”; são todos fenómenos importantes. Há que
                                                                                          distinguir
     porém: quando enaltecidos pelos semi-poetas, o resultado não é
                                                                                             poesia;
     será só quando os poetas entre nós puderem ser
          “literalistas da
          imaginação” – sobre
               a insolência e a trivialidade, só quando puderem apresentar,
     a exame, jardins imaginários com sapos de verdade, é que ela será
          nossa. Entretanto, quando se exige, por um lado,
          a matéria-prima da poesia em
               bruto, a cru e,
               por outro, aquilo que é
                    genuíno, então é porque sempre interessa a poesia.
 
 
 
marianne moore
o pangolim e outros poemas
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
2018


18 janeiro 2023

robert rius / um dia renitente chega ao fim

 
 
Um dia renitente chega ao fim
depois de assassinado há uma semana
morre sobre o mesmo telhado
e nesse lugar jaz
enquanto dura a sombra duma agonia
como o corpo duma amante desejada
que o feixe genealógico da árvore ilumina
todas as noites sobrecarregada de mais um braço
pois assim pode prestar-lhe homenagem
através da sua própria história
que o deixa destilar o suspiro da montanha
deitando-se do lado oposto
à memória dum moribundo
 
 
 
robert rius
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021




 
 

17 janeiro 2023

jorge de sousa braga / plano para salvar veneza

 



 
O meu século não chegou a andar de gatas. Com oito anos já se arrastava pelas minas de carvão, pouco tempo depois combatia nas trincheiras. E as únicas lágrimas que lhe vi chorar foram as dos gases lacrimogéneos.
 
Picasso morreu antes que pudesse levar a cabo o seu sonho, um único fresco que ocupasse não a abóbada da Capela Sixtina mas a abóbada celeste.
 
Fernando Pessoa morrera muitos anos antes numa clínica lisboeta completamente ignorado, depois de ter colocado um padrão com a cruz das quinas num dos areais de areia mais fina do universo.
 
Talvez o meu século seja uma comédia banal, embora filmada por homens de talento, onde algumas estrelas se passeiam com tanto à vontade como se fosse na Via Láctea e de que a generalidade dos participantes desconhece o argumento.
 
 
 
jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991
 



16 janeiro 2023

herberto helder / teoria sentada

 
III
 
A minha idade é assim – verde, sentada.
Tocando para baixo as raízes da eternidade.
Um grande número de meses sem muitas saídas,
soando
estreitos sinos, mudando em cores mergulhadas.
A minha idade espera, enquanto abre
os seus candeeiros. Idade
de uma voracidade masculina.
Cega.
Parada.
Algumas mãos fixam-se à sua volta.
 
Idade que ainda canta com a boca
dobrada. As semanas caminham para diante
com um espírito dentro.
Mergulham na sua solidão, e aparecem
batendo contra a luz.
É uma idade com sangue prendendo
as folhas. Terrível. Mexendo
no lugar do silêncio.
Idade sem amor bloqueada pelo êxtase
do tempo. Fria.
Com a cor imensa de um símbolo.
 
Eu trabalho nas luzes antigas, em frente
das ondas da noite. Bato a pedra
dentro do meu coração. Penso, ameaçado pela morte.
E uma raiz séca, canta-se
no calor. É uma idade cor de salsa.
Amarga. Imagino
dentro de mim. Trabalho de encontro à noite.
Procuro uma imagem dura.
 
Estou sentado, e falo da ironia de onde
uma rosa se levanta pelo ar.
A idade é uma vileza espalhada
no léxico. Em sua densidade se quebram
os dedos. Está sentada.
Os poentes ciclistas passam sem barulho.
Passam animais de púrpura.
Passam pedregulhos de treva.
É para a frente que as águas escorregam.
 
Idade que a candura da vida sufoca,
idade agachada, atenta
à sua ciência. Que imita por um lado
as nações celestes. Que imita por um lado
as nações celestes. Que imita
por um lado a terra
quente.
Trabalhando, nua, diante da noite.
 
 
 
herberto helder
poesia toda
teoria sentada
assírio & alvim
1996





15 janeiro 2023

bernardo soares / o governo do mundo começa em nós mesmos.

 



 

O governo do mundo começa em nós mesmos. Não são os sinceros que governam o mundo, mas também não são os insinceros. São os que fabricam em si uma sinceridade real por meios artificiais e automáticos; essa sinceridade constitui a sua força, e é ela que irradia para a sinceridade menos falsa dos outros. Saber iludir-se bem é a primeira qualidade do estadista. Só aos poetas e aos filósofos compete a visão prática do mundo, porque só a esses é dado não ter ilusões. Ver claro é não agir.
 
s.d.
 
 
 
fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982




14 janeiro 2023

samuel beckett / dieppe

 



 

*
viva morte minha única estação
lírios brancos crisântemos
ninhos vivos abandonados
lama das folhas de abril
dias felizes pardos de geada
 
1947
 
 
 
samuel beckett
trad. manuel portela
relâmpago nr.13
10/2003 alexandre o’neill
revista de poesia
fundação luís miguel nava
2003





13 janeiro 2023

helder macedo / 3 poemas de viagem de inverno

 



I
 
Tantos
tão desarticuladamente tantos
passos fundos na estrada congelada.
 
Na estação que passou
também passei.
 
Mas foi já noutro tempo
mas foi noutro país
quando o gelo chegou antes do frio.
 
 
II
 
Olhei
e só vi nada
se nos passos que vi
perdi quem me seguia
ou seguiria
enquanto não olhasse
a sombra indecifrada
desta não sei se selva
ou estrada
ou talvez praia.
 
 
III
 
Encruzilhado
me vejo reunido
restituído ao corpo que prevejo
despedido
na bifurcada ausência
do rumo sem regresso
em que transgrido
a transparência nua
da pele em que te teço
ou reconheço
nessa rasgada lua
nesse mar vão de sangue renovado.
 
 
 
helder macedo
hífen 4 abr/ set 89
cadernos semestrais de poesia
viagens
1989







12 janeiro 2023

mar becker / à pouca voz

 
 
estou recolhida há semanas. crisálida, noviciada. sinto que agora
posso cantar a vida das coisas inorgânicas, de longa duração. o
sono das pedras, intacto; as árvores retorcidas
 
posso ver que o centro do fogo é intransponível. estagiar em
todos os corpos minha expatriação. posso menstruar
um sangue claro
 
sonhar também – com o instante em que eu e o mar ainda
éramos um mesmo projeto: o ir e o vir, o inspirar e o expirar, os
batimentos, que gradativamente se lentificam e cessam. dizem
que é um estado semelhante ao sono, à eternidade do sono. para
mim, tem algo de resgate: amar o tempo que nas coisas antecede
o tempo. amá-las e crer que antes houve dias e noites
quando só o rumor habitava as pias batismais
 
 
 
mar becker
wladimir vaz (fotografia)
a mulher submersa
urutau
2021




11 janeiro 2023

mikhális katsarós / o meu testamento

 
 
Resisti
ao que ergue uma casinha
          e diz: estou aqui bem.
Resisti ao que volta para casa
          e diz: Deus seja louvado.
Resisti
ao tapete persa das casas aos andares
ao homenzinho do escritório
à firma de importação-exportação
à educação do Estado
ao imposto
e até a mim que vos narro.
 
Resisti
ao que saúda da tribuna horas
          sem fim os desfiles
à beata que reparte
imagens de santos incenso e mirra
e até a mim que vos narro.
 
Resisti ainda a todos aqueles a quem chamam grandes
ao presidente do Supremo resisti
às públicas músicas às paradas
a todos os congressos que falabaratam
bebem cafés congressistas conselheiros
a todos os que escrevem arrazoados sobre a época ao borralho do
          Inverno
aos votos de adulação às imensas vénias
aos escribas servis para os seus sábios chefes.
 
Resisti aos serviços de estrangeiros e passaportes
às horríveis bandeiras dos Estados e à diplomacia
às fábricas de material de guerra
aos que chamam lirismo às palavras bonitas aos cantos marciais
às canções delicodoces com os prantos
à assistência
ao vento
a todos os indiferentes e aos sábios
aos demais que fazem de vossos amigos
a até a mim, mesmo a mim que vos narro
          resisti.
Poderemos então talvez seguros seguir para a
          Liberdade.
 
 
de Contra os Saduceus, 1971
 
 
 
mikhális katsarós
a grécia de que falas …
antologia de poetas gregos modernos
trad. manuel resende
língua morta
2021




 

10 janeiro 2023

adonis / ararat



 
Ararat – poeiras otomanas espalham-se todos os dias sob os
          teus pés
Diz sim à luz esse nobre profeta que brota das tuas entranhas
          para iluminar as trevas da História.
 
                                      *

Tempo suspenso sinos e chocalhos no pescoço dos ventos
Um sino diz: mata as tuas recordações antes que elas te matem
Um outro diz: não retenhas a memória senão para a transfor-
          mar em fontes
Inventando o teu presente tu inventas o caminho para o que
          irá acontecer
 
 
 
adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016