06 janeiro 2023

ángel rupérez / quando me cansava

 



 

Dantes, quando me cansava, quando era velho,
via nos arvoredos oásis bem-aventurados
para morrer e sonhava chegar até eles
ainda que estivesse longe a meio da vida.
Agora já não me lembro dessas longas esperas
no deserto daquela velhice já esquecida.
Já cheguei ao arvoredo da minha juventude,
aí, junto da ponte, ao lado da corrente
do rio, e decidi apenas olhar e descansar.
Vejo o mesmo que via porque nada mudou.
O tempo não passou, tal como alguém disse
naquela tarde: «Não passará o tempo; não te preocupes».
E foi verdade aquele vaticínio. Nada mudou
e nem sequer o meu tempo, a idade estropiada,
a vida consumida em canseiras, todas as minhas viagens
e o meu profundo exílio, a minha eterna distância, me desgastaram.
Por isso sou jovem agora que já não tenho
idade para lembrar e por isso já não espero
no deserto como fazia antes, sem esperança.
 
 
 
ángel rupérez
poesia espanhola de agora I
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997
 
 


 


05 janeiro 2023

luis alberto de cuenca / só o silêncio salva

 



 
Só o silêncio salva, companheiro.
Só o silêncio salva. Se tiveste
uma noite gloriosa em que Afrodite
te sorriu e Baco te foi enchendo
o copo sem cessar, pensa que em breve,
quando se desvanecer o escuro,
os teus amigos forem para casa
e amanhecer de novo, só o silêncio
te há-de salvar, rapaz. Tem isso em conta.
 
 
 
luis alberto de cuenca
a vida em chamas
uma antologia
trad. miguel filipe mochila
língua morta
2018





04 janeiro 2023

reinaldo ferreira / eu, rosie, eu se falasse

 



 
Eu, Rosie, eu se falasse, eu dir-te-ia
Que partout, everywhere, em toda a parte,
A vida égale, idêntica, the same,
É sempre um esforço inútil,
Um voo cego a nada.
Mas dancemos; dancemos
Já que temos
A valsa começada
E o Nada
Deve acabar-se também,
Como todas as coisas.
Tu pensas
Nas vantagens imensas
Dum par
Que paga sem falar;
Eu, nauseado e grogue,
Eu penso, vê lá bem,
Em Arles e na orelha de Van Gogh…
E assim entre o que eu penso e o que tu sentes
A ponte que nos une – é estar ausentes.
 
 
 
reinaldo ferreira
um voo cego a nada (Livro I)
poemas
vega
1998





 


03 janeiro 2023

philip larkin / esquecer o que

 



 
Parar o diário
Foi aturdir a memória,
Foi um começo em branco,
 
Começo que já não cicatriza
Com tais palavras, tais acções,
Que tornaram inóspito o acordar.
 
Queria-as terminadas,
Despachadas para enterro
E rememoradas
 
Como as guerras e os invernos
Que faltavam para lá das janelas
De uma infância opaca.
 
E as páginas vazias?
Se vierem a preencher-se,
Que seja com a observação
 
De recorrências celestes,
O dia em que vêm as flores,
E quando partem as aves.
 
 
 
philip larkin
janelas altas
trad. rui carvalho homem
cotovia
2004
 



02 janeiro 2023

pia tafdrup / no espelho

 



 
No espelho
o olhar desaparece
 
às vezes desalojado
no meu próprio corpo
 
às vezes
angustiado
pela angústia
que rola
para lá e para cá como destroços
na rebentação
 
raspo com um dedo
o vidro
e ouço o mundo gritar.
 
 
 
pia tafdrup
ponto de focagem do oceano
trad. colectiva
mateus, junho 2002
quetzal
2004
 



01 janeiro 2023

toon tellegen / eu podia escolher

 



 

Não tinha ideia.
Escolhi a paz.
 
A verdade e a beleza
deixei-as ir,
e também a sageza e a nostalgia –
até o amor,
que tão embevecido me olhava,
negras nuvens com ele se deslocavam.
 
Paz, era paz.
E nos recônditos da minha alma
dançavam seres
de que nunca tinha sequer ouvido!
 
E no céu pendia um outro sol.
 
 
 
toon telegen
uma migalha na saia do universo
antologia da poesia neerlandesa do século vinte
trad. fernando venâncio
assírio & alvim
1997








31 dezembro 2022

egito gonçalves / é preciso saber esperar

 



 
É preciso saber esperar, ser paciente, decifrar com correcção os sinais de sangue nas janelas. O tear trabalha lentamente, cruza os fios coloridos nas difíceis geometrias que o futuro vai vestir. No fim do sulco estará, por certo, o filão que se procura, a ponta de navalha que abrirá a concha em que o sol se refugia.
 
 
 
egito gonçalves
o esperado fim do mundo já partiu
uma antologia
língua morta
2020







30 dezembro 2022

pedro tamen / nem esquecer o que tenho

 
 
 
Nem esquecer o que tenho
nem no que vens
se esfuma:
das ilhas continentes donde venho
em cada tens
ilustrações – é uma
apenas só viagem nossa,
quer siga eu aonde eu possa
ter memória de ti,
quer venhas tu de frente,
andando simplesmente
até aqui.
 
E assim dos nossos pés se fica em brasa
o chão do corredor da nossa casa.
 
 
 
pedro tamen
princípio de sol
circulo de leitores
1982





29 dezembro 2022

ana hatherly / 463 tisanas




236
 
Os grandes erros que se cometem na vida são erros recorrentes. Sempre repetimos os mesmos erros, isto é, o mesmo erro, e é esse erro que finalmente nos define, porque não se trata de um erro mas de uma situação-limite. Mas esta terminologia é absolutamente inadequada.
 
 
ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006





 

28 dezembro 2022

elio pecora / de poemas para a mãe



 
Eu não sabia, não, quando cantavas
– talvez em Abril, no quarto azul –
que tu eras a mãe, que eu era o filho.
 
Escutavam-te as montanhas e as planícies,
as andorinhas apaziguadas nas goteiras
e eu encantado na almofada branca.
 
No teu canto abriam-se as esperas
do confuso presente, as tristezas
de todos os improváveis futuros.
 
Compreendi então que eras a companheira
de uma viagem de agruras, de tormentos,
para lá das paredes e das portas.
 
Por muitas estações esse engano
dentro de mim criei e fingi-me aquele
que na noite anda à frente.
 
Esta noite dizes com voz de pranto
– sobe no céu a Lua de Agosto –
que andaste sozinha pelas ruas escuras.
 
 
 
elio pecora
poemas escolhidos
interlúdio (1987)
tradução de simoneta neto
quasi
2008
 


 



27 dezembro 2022

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

 
 
IV
Somos como árvores
só quando o desejo é morto.
Só então nos lembramos
que dezembro traz em si a primavera.
Só então, belos e despidos,
ficamos longamente à sua espera.
 
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000
 




26 dezembro 2022

antónio franco alexandre / dos jogos de inverno

 
 
3
 
hoje sonhei que vou morrer e via-te
confundida no mais amado rosto.
creio que te pedia para seres e para não seres
a amada, a que alimenta o sonho da vida.
deixei toda a aspiração da poesia
presa nas mãozinhas metálicas com que se estende a roupa,
lençóis brancos compridos imóveis ou
mergulhando devagar no vento; como se fora apenas
uma exacta confusão, uma troca de corpos e de nomes.
 
e uma vespa pousada e pobre Mrs. Poesy
avançassem para um lugar robusto: a mansidão
dos atletas no momento em que lançam
uma pequena pedra.
só eles aqui devemos imitar, aprendendo da sua perfeita
futilidade, uma paixão sem melancolia.
o ar virando, ao fim da tarde, vibra
nas surpresas folhas de pano,
como o leve cantar das máquinas sozinhas.
 
preso nas muitas palavras, o amor confia
vivendo de si,
e os cavalos soltam as crinas no dorso das
imagens,
uma voz pergunta, novamente, onde estás?
quero o meu coração limpo e desarmado
diante de ti, diante dos meus inimigos,
sei que não mereço, e procuro
a menor voz do salmo.
 
 
antónio franco alexandre
dos jogos de inverno
poemas
assírio & alvim
1996
 




25 dezembro 2022

s. kierkegaard / como me senti estranhamente melancólico

 



 
Como me senti estranhamente melancólico ao ver um pobre homem arrastar-se pelas ruas num sobretudo muito gasto, verde-claro, para o amarelado! Deu-me pena dele. Mas o que mais me comoveu, no entanto, foi que essa mesma cor do sobretudo tão vivamente me recordou as minhas primeiras criações de criança na nobre arte da pintura. Esta era precisamente uma das minhas cores preferidas. Não é mesmo triste que estas misturas de cores, em que ainda penso com tanta alegria, não se encontrem em parte nenhuma na vida? Toda a gente as acha berrantes, garridas, a empregar apenas nas figuras de Nuremberga. Se alguma vez, nos deparamos com elas, o encontro será sempre tão infeliz como este agora. Tem sempre de ser um fraco de espírito ou um desgraçado, em resumo, sempre alguém que se sente um estranho na vida e que o mundo não quer reconhecer. E eu que sempre pintei as vestes dos meus heróis com pinceladas deste verde amarelado eternamente inesquecível! Não acontece o mesmo com todas as misturas de cores da infância? O brilho que a vida então tinha torna-se pouco a pouco demasiado forte, demasiado berrante para o nosso olhar esvaído.
 
 
s. kierkegaard
diapsalmata
trad. de bárbara silva, m. jorge de carvalho,
nuno ferro e sara carvalhais
assírio & alvim
2011