16 dezembro 2022

josé amaro dionísio / solidão, sabe ela



 

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Solidão, sabe ela, e é uma jovem mulher entre cortinas de vento. Rica, muito rica. E ainda bela, realmente bela – ah, mas estas rugas na pele. Se chora? Por vezes esse momento em que te levantas, vais à janela, vês a barbárie do tanque sob as nogueiras e concluis que tudo é tão inútil. O nascimento dos animais, por exemplo, hora reconciliada sobre que as cicatrizes poderiam folgar. Mas que acontece?
 
Apenas o tempo
 
 
 
josé amaro dionísio
eduardo batarda
a sombra do sangue
livro de artistas
europalia 91
1991


 

15 dezembro 2022

robert desnos / às cinco horas

  
 
Às cinco horas da manhã numa rua nova
e vazia ouço o ruído de um carro a afastar-se.
Um alarme de incêndio tem o vidro partido
e os pedaços resplandecem na valeta.
Na calçada está uma poça de sangue
e uma ligeira fumaça dissolve-se no ar.
Olá! Olá! Contem-me o que se passou.
Acordem! Quero saber o que se passou.
Contem-me as aventuras dos homens.
 
 
 
robert desnos
luto por luto / poemas
trad. diogo paiva
sr teste edições
2022
 




14 dezembro 2022

martín lópez-vega / roscoe

  
Os gansos cruzam o céu tocando a sua cómica trombeta,
os gatos gémeos brincam e ronronam,
as vacas tramam as suas filosofias
e o vento leva pensamentos estranhos.
 
– Noutro dia, e ainda estava a nevar,
ia a atravessar a rua
quando um murmúrio me chamou a atenção.
A árvore nevada estava cheia de pintarroxos
enroscados no camarim da primavera.
E dizem que quem vê o primeiro do ano
terá a sorte de feição. Pois eu vi-os a todos!
 
Ele conta como neste inverno
os cardeais vinham alimentar-se
no comedouro que pende do telhado
e o vento balançava-os
como crianças enregeladas sob a espessa neve.
 
«Sei que deveria. Mas não quero partir», repete.
Não sabe o exato dia
mas logo o seu lugar será outro.
 
Sabe quem cuidará do gado,
quem atenderá à colheita,
quem velará pelos gatos
e quem manterá a casa em pé.
Mas não é isso. Envergonha-o confessar
que são os gatos quem o guarda,
que é o gado que vela o seu sono,
que é a colheita o que põe ordem nos seus dias
e é a casa que cuida dele.
 
 
martín lópez-vega
a eterna qualquercoisa
tradução de jorge melícias
officium lectionis edições
2022





13 dezembro 2022

louise glück / encruzilhada




 

 
Corpo meu, agora que não viajaremos juntos por muito mais tempo,
começo a sentir por ti uma renovada ternura, muito crua e
          desconhecida,
como aquilo que recordo do amor quando era jovem –
 
um amor que tantas vezes foi tolo nos seus objectivos,
mas nunca nas suas escolhas, nos seus ardores.
Demasiado exigido à partida, demasiado o que não pôde ser
          prometido –
 
A minha alma tem sido tão temerosa, tão violenta:
perdoa a sua brutalidade.
Como se fosse essa alma, a minha mão desliza cautelosa por ti,
 
não querendo ofender,
embora ansiosa, enfim, por conseguir expressar-se enquanto
          substância:
 
não é da Terra que irei sentir falta,
é de ti que irei sentir falta.
 
 
 
louise glück
uma vida de aldeia
tradução de frederico pedreira
relógio d´água
2021



 

12 dezembro 2022

josé mateos / em breve cairá a noite

 



 
O tempo leva afectos e amizades
e um vento cruel corrompe os nossos sonhos.
Até que um dia, por fim, nos damos conta
de que estamos sozinhos.
                                     Nada, nem os livros
que principiam a falar quando os abrimos,
nem os versos que fomos despertando
para adiar e fugir do nosso rosto
enchem um vazio, formam uma pátria.
 
Em redor de nós é tudo simples,
ou assim parece: o pássaro na antena,
a nuvem anónima no céu luminoso…
Para nós, porém, crescem as sombras,
ninguém para nós acende a luz.
 
Sem esperança, sem fé outra tarde morre.
E é esse o disco riscado da vida,
o frouxo amor, a idade do desencanto.
 
 
 
josé mateos
poesia espanhola de agora vol. II
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997




11 dezembro 2022

maria do rosário pedreira / nada entre nós tem o nome da pressa

 



 

 

Nada entre nós tem o nome da pressa.
Conhecemo-nos assim, devagar, o cuidado
traçou os seus próprios labirintos. Sobre a pele
é sempre a primeira vez que os gestos acontecem. Porém,
 
se se abrir uma porta para o verão, vemos as mesmas coisas –
o que fica para além da planície e da falésia; a ilha,
um rebanho, um barco à espera de partir, uma palavra
que nunca escreveremos. Entre nós
 
o tempo desenha-se assim, devagar.
Daríamos sempre pelo mais pequeno engano.
 
 
 
maria do rosário pedreira
a casa e o cheiro os livros
gótica
2002
 




10 dezembro 2022

miguel serras pereira / limiar

 
 
Não sei se volta a ti ou de ti parte
onde começa te começa ou traz enfim
a leve linha de altos choupos brancos
que lágrimas de ninguém estreitam ainda
 
 
 
miguel serras pereira
á tona do vazio & reprise
cinquenta anos de poesia de miguel serras pereira 1969-2019
corça 1982
barricada de livros
2022





09 dezembro 2022

pier paolo pasolini / e surpreendia-me que a indiferença

 
 
E surpreendia-me que a indiferença
fosse tão parecida com a angústia.
O mesmo candor consistia no acreditar
e no não acreditar. Nunca terei eu
mudado? Se por mim não fores pensado, Tu
em mim não podes? E eu nada posso
fazer para tornar humana a minha vida?
Posso ao menos esperar que na diversidade
do Teu ser, o meu ser único
que me é inútil Te seja necessário?
 
 
 
pier paolo pasolini
a poesia é uma mercadoria inconsumível
poemas e recensões
trad. joão coles
sr teste edições
2022




08 dezembro 2022

manuel de freitas / pastelaria




                          

Sim, deve ser Outono. Começaram
a destruir a cidade (prioridades
automóveis, dizem) e o cu do Duque
da Terceira resigna-se fechadamente
ao rigor dos novos eléctricos.
 
Estou à tua espera – enredo banal,
cigarrilhas. Um novelo de fumo
abraça a espanhola que se
contorce no balcão para apagar um traço
mínimo de chocolate (pouco importa,
meus senhores, se ela leu ou não Pessoa).
 
Chegam depois as primeiras putas num cais
sem marinheiros. Abafado pelo trânsito,
o protesto de um negro mal fodido. E bares
de esquina, lulas fritas, anzóis de vários
feitios – há quem que o amor, também.
 
Encostada aos bolos da véspera,
a estória irremediavelmente fútil
do casalinho louro que nunca pôde
ter filhos. Lisboa adormece e é Outono,
no peso de um «caralho!» um pouco
mais sonoro, vindo do telefone público.
 
E os empregados, hirtos e dominicais,
passeiam o bigode, o brandy mortal
dos dias sempre assim. Enquanto
(vamos supor) te espero sentado
e o poema se escreve aberto sobre o Tejo.
 
Quanto custa a carne, aqui?
Barcos que apesar de tudo
comprometem estas coisas
e seguem para índia nenhuma
ou para a américa geral de todos
(massacre ao domicílio, pois
fumar provoca doenças cardiovasculares).
Vamos falar limpo, agora.
 
Sim, deve ser Outono, pela calamidade
dos sorrisos que esperam um nome
mais amplo ou um deus
transitável que subscreva a dor
e invente este mundo falso.
 
Mas eu estou de facto à tua espera,
com a metafísica no cinzeiro
ao lado e os testículos debicados
por uma pomba entediada (Francesco
Provenzale by Florio). Entardece aqui,
deveras. Como uma canção já velha.
 
Deve ser Outono, Inverno, pernas
de gazela fria que acalentam trapos
numa reza. São Paulo
lhes valha esta noite, pois não são
esperadas como tu, meu amor,
e hão-de receber o dízimo com um sorriso
profissional, facas de fingir nos bolsos.
 
O Outono já deu que falar, suponho.
Uma reforma pequena que nos surpreende
vivos, encostados a ninguém, palitando
os dentes da tarde. sim,
essa moral da estória: não haver.
 
Enquanto se acumulam bandeiras
e insígnias torpes. Ou gestos suburbanos,
sob um ecrã de cinza que espanca
qualquer ressentimento. Quantas horas
morreste, bem feitas as contas?
– pergunta o herói siderúrgico
à rapariga do quiosque em frente
(que não se chama Liberdade,
segundo fontes fidedignas).
 
Comboios que vão partir, Laforgue,
jornais por ler. Ou as palavras
cariadas que o haxixe tornou
mais sábias: «eu, a bem dizer, não existo».
Sombras de lodo a revirarem-se
de novo nas paredes do léxico
que nos coube em sorte. Este
azar profundo, quando às sete e meia
da tarde Herberto Helder descia
paulatinamente a rua do Alecrim
numa pose de cidadão (desconfiar
das aparências, eis o inferno. Aqui.).
 
Sim, deve ser Outono. Em Pequim,
Lisboa ou Belfast. Começaram
a destruir a cidade e a segredar infâmias
no intervalo dos tremoços. Há uma certeza
de rastos que não vem quando a chamamos.
 
Por outras palavras, amo-te.
 
 
 
manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002


 


 

07 dezembro 2022

isabel de sá / farrapos de magia

 
 
 
Utilizar palavras num contexto sabiamente explorado, pode destruir a inibição e dar prazer. Se ao despir uma palavra me atrai o seu encanto é porque o erotismo faz parte do livro. Sou, assim, um duplo ser obedecendo a um impulso interior sem que isso traga consigo a decadência.
 
Não se trata já de manter relações com a escrita, o seu conteúdo, mas de possuir e dominar as palavras, esses farrapos de magia.
 
 
 
isabel de sá
semente em solo adverso (poesia reunida)
o duplo dividido 1989
officium lectionis edições
2022
 



06 dezembro 2022

marguerite duras / vaidade das vaidades

 




 

 
10 de fevereiro, depois, na mesma tarde

 
Vaidade das vaidades.
Tudo é verdade e perseguição do vento.
Estas duas frases dão toda a literatura da terra.
Vaidade das vaidades, sim.
Estas frases só por si abrem o mundo: as coisas,
os ventos, os gritos das crianças, o sol morto durante
estes gritos.
Que o mundo se precipite para a sua perda.
Vaidade das vaidades.
Tudo é vaidade e perseguição do vento.
 
 
 
marguerite duras
é tudo (c´est tout)
trad. joão costa
livros do brasil
1999




05 dezembro 2022

joão pedro grabato dias / dai ao morto o espaço que merece

 
 
Dai ao morto o espaço que merece, na memória.
Nunca no coração porque ele toma-o todo.
(… as flores de plástico não são talvez as mais belas
mas são por certo mais inocentes e duráveis…)
Dai ao morto o espaço que pretende.
Ele flanca os marcos na nossa estima
e é conveniente não desapontá-lo.
Qualquer pequeno gesto é já o ritual esperado.
Toca a embarcar o rebanho das memórias
a emparelhar toda a emoção diversa
a acasalar as antigas intenções nunca expressas
na grande arca, que, salva ao dilúvio das lágrimas
há-de pairar; parar, poisar, logo, amanhã, depois
quando o luto real começar.
 
 
 
joão pedro grabato dias
odes didácticas
o morto, ode didátctica 1971
tinta da china
2021





 

04 dezembro 2022

michael dylan welch / os miúdos iraquianos

 



 
O miúdo iraquiano a bater a bola
no pátio da escola
nada sabe sobre o vento
que as bombas criam ao caírem.
 
Muito novo para conhecer o preço bruto do petróleo,
não se lembra
da libertação que lhe custou
as vidas e os membros dos tios.
 
Espero que possa morrer
apenas de velhice
e viver para comprar aos netos
as suas bolas de borracha encarnadas.
 
 
 
michael dylan welch
afagando a face de lorca
uma antologia
trad. francisco josé craveiro de carvalho
companhia das ilhas
2020