11 dezembro 2022

maria do rosário pedreira / nada entre nós tem o nome da pressa

 



 

 

Nada entre nós tem o nome da pressa.
Conhecemo-nos assim, devagar, o cuidado
traçou os seus próprios labirintos. Sobre a pele
é sempre a primeira vez que os gestos acontecem. Porém,
 
se se abrir uma porta para o verão, vemos as mesmas coisas –
o que fica para além da planície e da falésia; a ilha,
um rebanho, um barco à espera de partir, uma palavra
que nunca escreveremos. Entre nós
 
o tempo desenha-se assim, devagar.
Daríamos sempre pelo mais pequeno engano.
 
 
 
maria do rosário pedreira
a casa e o cheiro os livros
gótica
2002
 




10 dezembro 2022

miguel serras pereira / limiar

 
 
Não sei se volta a ti ou de ti parte
onde começa te começa ou traz enfim
a leve linha de altos choupos brancos
que lágrimas de ninguém estreitam ainda
 
 
 
miguel serras pereira
á tona do vazio & reprise
cinquenta anos de poesia de miguel serras pereira 1969-2019
corça 1982
barricada de livros
2022





09 dezembro 2022

pier paolo pasolini / e surpreendia-me que a indiferença

 
 
E surpreendia-me que a indiferença
fosse tão parecida com a angústia.
O mesmo candor consistia no acreditar
e no não acreditar. Nunca terei eu
mudado? Se por mim não fores pensado, Tu
em mim não podes? E eu nada posso
fazer para tornar humana a minha vida?
Posso ao menos esperar que na diversidade
do Teu ser, o meu ser único
que me é inútil Te seja necessário?
 
 
 
pier paolo pasolini
a poesia é uma mercadoria inconsumível
poemas e recensões
trad. joão coles
sr teste edições
2022




08 dezembro 2022

manuel de freitas / pastelaria




                          

Sim, deve ser Outono. Começaram
a destruir a cidade (prioridades
automóveis, dizem) e o cu do Duque
da Terceira resigna-se fechadamente
ao rigor dos novos eléctricos.
 
Estou à tua espera – enredo banal,
cigarrilhas. Um novelo de fumo
abraça a espanhola que se
contorce no balcão para apagar um traço
mínimo de chocolate (pouco importa,
meus senhores, se ela leu ou não Pessoa).
 
Chegam depois as primeiras putas num cais
sem marinheiros. Abafado pelo trânsito,
o protesto de um negro mal fodido. E bares
de esquina, lulas fritas, anzóis de vários
feitios – há quem que o amor, também.
 
Encostada aos bolos da véspera,
a estória irremediavelmente fútil
do casalinho louro que nunca pôde
ter filhos. Lisboa adormece e é Outono,
no peso de um «caralho!» um pouco
mais sonoro, vindo do telefone público.
 
E os empregados, hirtos e dominicais,
passeiam o bigode, o brandy mortal
dos dias sempre assim. Enquanto
(vamos supor) te espero sentado
e o poema se escreve aberto sobre o Tejo.
 
Quanto custa a carne, aqui?
Barcos que apesar de tudo
comprometem estas coisas
e seguem para índia nenhuma
ou para a américa geral de todos
(massacre ao domicílio, pois
fumar provoca doenças cardiovasculares).
Vamos falar limpo, agora.
 
Sim, deve ser Outono, pela calamidade
dos sorrisos que esperam um nome
mais amplo ou um deus
transitável que subscreva a dor
e invente este mundo falso.
 
Mas eu estou de facto à tua espera,
com a metafísica no cinzeiro
ao lado e os testículos debicados
por uma pomba entediada (Francesco
Provenzale by Florio). Entardece aqui,
deveras. Como uma canção já velha.
 
Deve ser Outono, Inverno, pernas
de gazela fria que acalentam trapos
numa reza. São Paulo
lhes valha esta noite, pois não são
esperadas como tu, meu amor,
e hão-de receber o dízimo com um sorriso
profissional, facas de fingir nos bolsos.
 
O Outono já deu que falar, suponho.
Uma reforma pequena que nos surpreende
vivos, encostados a ninguém, palitando
os dentes da tarde. sim,
essa moral da estória: não haver.
 
Enquanto se acumulam bandeiras
e insígnias torpes. Ou gestos suburbanos,
sob um ecrã de cinza que espanca
qualquer ressentimento. Quantas horas
morreste, bem feitas as contas?
– pergunta o herói siderúrgico
à rapariga do quiosque em frente
(que não se chama Liberdade,
segundo fontes fidedignas).
 
Comboios que vão partir, Laforgue,
jornais por ler. Ou as palavras
cariadas que o haxixe tornou
mais sábias: «eu, a bem dizer, não existo».
Sombras de lodo a revirarem-se
de novo nas paredes do léxico
que nos coube em sorte. Este
azar profundo, quando às sete e meia
da tarde Herberto Helder descia
paulatinamente a rua do Alecrim
numa pose de cidadão (desconfiar
das aparências, eis o inferno. Aqui.).
 
Sim, deve ser Outono. Em Pequim,
Lisboa ou Belfast. Começaram
a destruir a cidade e a segredar infâmias
no intervalo dos tremoços. Há uma certeza
de rastos que não vem quando a chamamos.
 
Por outras palavras, amo-te.
 
 
 
manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002


 


 

07 dezembro 2022

isabel de sá / farrapos de magia

 
 
 
Utilizar palavras num contexto sabiamente explorado, pode destruir a inibição e dar prazer. Se ao despir uma palavra me atrai o seu encanto é porque o erotismo faz parte do livro. Sou, assim, um duplo ser obedecendo a um impulso interior sem que isso traga consigo a decadência.
 
Não se trata já de manter relações com a escrita, o seu conteúdo, mas de possuir e dominar as palavras, esses farrapos de magia.
 
 
 
isabel de sá
semente em solo adverso (poesia reunida)
o duplo dividido 1989
officium lectionis edições
2022
 



06 dezembro 2022

marguerite duras / vaidade das vaidades

 




 

 
10 de fevereiro, depois, na mesma tarde

 
Vaidade das vaidades.
Tudo é verdade e perseguição do vento.
Estas duas frases dão toda a literatura da terra.
Vaidade das vaidades, sim.
Estas frases só por si abrem o mundo: as coisas,
os ventos, os gritos das crianças, o sol morto durante
estes gritos.
Que o mundo se precipite para a sua perda.
Vaidade das vaidades.
Tudo é vaidade e perseguição do vento.
 
 
 
marguerite duras
é tudo (c´est tout)
trad. joão costa
livros do brasil
1999




05 dezembro 2022

joão pedro grabato dias / dai ao morto o espaço que merece

 
 
Dai ao morto o espaço que merece, na memória.
Nunca no coração porque ele toma-o todo.
(… as flores de plástico não são talvez as mais belas
mas são por certo mais inocentes e duráveis…)
Dai ao morto o espaço que pretende.
Ele flanca os marcos na nossa estima
e é conveniente não desapontá-lo.
Qualquer pequeno gesto é já o ritual esperado.
Toca a embarcar o rebanho das memórias
a emparelhar toda a emoção diversa
a acasalar as antigas intenções nunca expressas
na grande arca, que, salva ao dilúvio das lágrimas
há-de pairar; parar, poisar, logo, amanhã, depois
quando o luto real começar.
 
 
 
joão pedro grabato dias
odes didácticas
o morto, ode didátctica 1971
tinta da china
2021





 

04 dezembro 2022

michael dylan welch / os miúdos iraquianos

 



 
O miúdo iraquiano a bater a bola
no pátio da escola
nada sabe sobre o vento
que as bombas criam ao caírem.
 
Muito novo para conhecer o preço bruto do petróleo,
não se lembra
da libertação que lhe custou
as vidas e os membros dos tios.
 
Espero que possa morrer
apenas de velhice
e viver para comprar aos netos
as suas bolas de borracha encarnadas.
 
 
 
michael dylan welch
afagando a face de lorca
uma antologia
trad. francisco josé craveiro de carvalho
companhia das ilhas
2020
 




03 dezembro 2022

henri michaux / o capataz

 



 

 
«Enquanto eles sofrem o último suplício, eu equilibro-me no trapézio. Porquê? Não sei. Uma exuberância voltejante, uma exaltação, o júbilo que enfim me faz suportar o coração no meu peito, a sua carícia como um novo toque, enquanto ele bate em sístoles profundas, meditadas, que me mantêm alerta e arquejante sob a ameaça.»
 
«E giro, giro infatigavelmente à volta da barra, fingindo, como posso, com os meus pobres meios, ser o astro que gravita imperturbável na noite dos séculos.»
 
 
 
henri michaux
liberdade de acção (1945)
antologia
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
1999
 




02 dezembro 2022

irene lisboa / quando morrer

 



 

 
QUANDO morrer ninguém dirá (e isso que me podia importar já!) fez… disse… era… etc.
 
Porque eu não digo, nem faço, nem sou. Ninguém me deu tempo nem espaço para as revelações. Dona de nada… sem autoridade… passando ao lado de pobres e de ricos que dizem: aqui estou!
 
Mas eu não estou, nem sou. Algumas vezes, poucas, me interroguei e a resposta era sempre confusa: deixar que os outros sejam…
 
 
irene lisboa
velhas notas ressuscitadas (1944 a 1949)
solidão II
portugália editora
1966





 


01 dezembro 2022

william carlos williams / el hombre




 
Estranha é a coragem
que me dás, estrela antiga:
 
Brilha sozinha na aurora
para a qual nada representas!
 
 
 
william carlos williams
antologia breve
tradução josé agostinho baptista
assírio & alvim
1993




 


 

30 novembro 2022

josé maría alvarez / jovem amado por kavafis

 
 
                                                                     Yo estaba solo, vagando por entre aquellas
                                                                     ruinas
 
                                                                                                    Guy de Maupassant
 
                                                                  … una imagen que fuera la memoria de aquel
                                                                                                             príncipe muerto
 
                                                                                                              Walter Pater –
 
                                                                                                           Para Carme Riera
 

 
Ele sentava-se aí – e apontou, sem olhar,
um canto com uma máquina
de tabaco – . Não. Então era diferente, havia
uma
mesa com um candeeiro; e não existia essa janela.
Não era bonito. Mas
tinha um não sei quê, e comigo sempre
foi tão generoso… – O velho levantou os olhos
(como água suja), – Não se importa
– disse – que peça outro café?
Sim – disse depois de uma pausa – , não era bonito.
Às vezes íamos, aí, perto,
a uma casa que alugava quartos.
Ainda me lembro dos seus beijos.
 
Eu olhava aquele corpo
devastado pelos anos. O coto de uma alma
que tinha unido a sorte da sua carne
ao obscuro prazer de Alexandria.
O olhar já morto, os lábios
– lábios aquela greta arroxeada? – secos,
as mãos como garras e a pele com o brilho
dessas lapelas dos fatos muitos gastos
mil vezes passadas a ferro.
                                                Tentei imaginar
como seria esse corpo quando atraiu Kavafis.
Como foi, jovem, aquele rosto. Que graça irradiou um dia.
A seda adolescente, a embriaguez do cheiro jovem,
os anéis de cabelo negro sobre a testa. Como
foram aqueles lábios
quando o amor os humedecia, com que fogo queimavam
aqueles olhos, já apagados.
 
Teria vivido aquele homem
a imagem que viu Kavafis quando sonhou com Mebes?
A sedução do jovem empregado numa loja?
Aquele despojo
de cinemas, urinóis de estação, de ruelas portuárias
era o rosto divino de Tamides
ou o jovem de Antioquia tão amado por Balas?
 
Pensei pedir-lhe uma fotografia
que me deixasse averiguar a sua juventude.
 
Quando a porta do lugar se abriu, e entrou um rapaz
de notável formusura. Os olhos daquele velho
brilharam de desejo. E então dei-me conta
de que sim, bem pôde ser ele
o modelo de Miris ou o jovem do espelho,
pois que se tudo já tinha morrido
naquele corpo – memória, orgulho, dignidade –
as brasas do amor continuavam a arder
e o mais ligeiro sopro tornava-as incandescentes,
e aqueles olhos, ainda que por um instante,
de novo eram belíssimos, e esses lábios
outra vez húmidos de amor, e aquelas mãos
outras vez se dispunham a servir o Desejo.
 
Entendi. Paguei e fui-me.
 
 
 
josé maría alvarez
poesia espanhola de agora vol. I
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997
 




29 novembro 2022

per aage brandt / uma coluna cúbica de nuvens

 



 
 
*
uma coluna cúbica de nuvens num céu sem peso
uma fachada de casas cujas janelas nada exprimem
um guiso sem bobo pousado sobre um soalho que range
um corpo nu de mulher pintado e emoldurado no ouro da
                                                                  [intimidade
                                                                    (magritte)
 
*
 
 
 
per aage brandt
livro da noite
trad. maria joão reynaud
poetas em mateus
quetzal
2004