30 novembro 2022

josé maría alvarez / jovem amado por kavafis

 
 
                                                                     Yo estaba solo, vagando por entre aquellas
                                                                     ruinas
 
                                                                                                    Guy de Maupassant
 
                                                                  … una imagen que fuera la memoria de aquel
                                                                                                             príncipe muerto
 
                                                                                                              Walter Pater –
 
                                                                                                           Para Carme Riera
 

 
Ele sentava-se aí – e apontou, sem olhar,
um canto com uma máquina
de tabaco – . Não. Então era diferente, havia
uma
mesa com um candeeiro; e não existia essa janela.
Não era bonito. Mas
tinha um não sei quê, e comigo sempre
foi tão generoso… – O velho levantou os olhos
(como água suja), – Não se importa
– disse – que peça outro café?
Sim – disse depois de uma pausa – , não era bonito.
Às vezes íamos, aí, perto,
a uma casa que alugava quartos.
Ainda me lembro dos seus beijos.
 
Eu olhava aquele corpo
devastado pelos anos. O coto de uma alma
que tinha unido a sorte da sua carne
ao obscuro prazer de Alexandria.
O olhar já morto, os lábios
– lábios aquela greta arroxeada? – secos,
as mãos como garras e a pele com o brilho
dessas lapelas dos fatos muitos gastos
mil vezes passadas a ferro.
                                                Tentei imaginar
como seria esse corpo quando atraiu Kavafis.
Como foi, jovem, aquele rosto. Que graça irradiou um dia.
A seda adolescente, a embriaguez do cheiro jovem,
os anéis de cabelo negro sobre a testa. Como
foram aqueles lábios
quando o amor os humedecia, com que fogo queimavam
aqueles olhos, já apagados.
 
Teria vivido aquele homem
a imagem que viu Kavafis quando sonhou com Mebes?
A sedução do jovem empregado numa loja?
Aquele despojo
de cinemas, urinóis de estação, de ruelas portuárias
era o rosto divino de Tamides
ou o jovem de Antioquia tão amado por Balas?
 
Pensei pedir-lhe uma fotografia
que me deixasse averiguar a sua juventude.
 
Quando a porta do lugar se abriu, e entrou um rapaz
de notável formusura. Os olhos daquele velho
brilharam de desejo. E então dei-me conta
de que sim, bem pôde ser ele
o modelo de Miris ou o jovem do espelho,
pois que se tudo já tinha morrido
naquele corpo – memória, orgulho, dignidade –
as brasas do amor continuavam a arder
e o mais ligeiro sopro tornava-as incandescentes,
e aqueles olhos, ainda que por um instante,
de novo eram belíssimos, e esses lábios
outra vez húmidos de amor, e aquelas mãos
outras vez se dispunham a servir o Desejo.
 
Entendi. Paguei e fui-me.
 
 
 
josé maría alvarez
poesia espanhola de agora vol. I
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997
 




29 novembro 2022

per aage brandt / uma coluna cúbica de nuvens

 



 
 
*
uma coluna cúbica de nuvens num céu sem peso
uma fachada de casas cujas janelas nada exprimem
um guiso sem bobo pousado sobre um soalho que range
um corpo nu de mulher pintado e emoldurado no ouro da
                                                                  [intimidade
                                                                    (magritte)
 
*
 
 
 
per aage brandt
livro da noite
trad. maria joão reynaud
poetas em mateus
quetzal
2004
 



28 novembro 2022

antónio maria lisboa / recusa

 



 

                                  I
 
É muito possível durante os primeiros meses
uma importante viagem à Asia – essa
é uma das consequências
secretas
em que não se tomaram quaisquer resoluções finais
e ambas chegaram igualmente
 
  
                         II
 
ainda um cu marinho de agonia onde eu
sou um copo de aguardente francesa e tu
uma gaivota que passa rente ao barco que me leva
 
 
                         III
 
          – Eu sou uma coisa qualquer
          eu sou uma qualquer coisa
          sou uma qualquer coisa eu
          uma qualquer coisa eu sou
          qualquer coisa eu sou uma
          coisa eu sou uma qualquer
EU NÃO SOU UMA COISA QUALQUER
     – eu sou uma cidade
     – eu sou ZANONI de Bulwer Lyton
     – eu sou uma errata
     – onde está a minha vida deve-se ver a nossa vida
     (…)
     – onde está Deus deve-se ver o Diabo
     – onde está o Amor deve estar o Grande Amor Mágico Amor Meu
     – onde estou Eu deves estar Tu
     – onde estão os lábios da nossa vida HÁ uma porta secreta minúscula
 
                                   O-AMOR
                                 MEU AMOR    
 
 
 
antóno maria lisboa
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998





27 novembro 2022

manuel antónio pina / transforma-se a coisa escrita no escritor

 



 
Isto está cheio de gente
falando ao mesmo tempo
e alguma coisa está fora de isto falando de isto
e tudo é sabido em qualquer lugar.
 
(Chamo-lhe Literatura porque não sei o nome de isto;)
o escritor é uma sombra de uma sombra
o que fala põe-o fora de si
e de tudo o que não existe.
 
Aquele que quer saber
tem o coração pronto para o
roubo e para a violência
e a alma pronta para o esquecimento.
 
 
manuel antónio pina
aquele que quer morrer
todas as palavras, poesia reunida
assírio & alvim
2012
 




26 novembro 2022

joaquim manuel magalhães / pelos caminhos da manhã

 




SEGUNDO
 
Regresso a estas marcas de neve.
As cinzas dos frutos, a poalha das larvas,
as vozes vão pelos pinheiros
são as almas, os regougos dos corpos a morrer,
os latidos do mar lavam a luz.
Os soturnos passos das ovelhas
correm pelo granizo,
o calor do corpo encosta-se, adormece,
não encontra a não ser nos sonhos
a outra boca e os outros dedos.
 
O espaço onde andava o minotauro
as ervas das flores cobriam-no,
as pedras do destino farejadas pelas nuvens,
a sombra do sol espelhada nas ribeiras,
os covis grudados às viscosas neblinas.
As fendas aterradas dos granitos
cuspiam os moscardos, as sibilinas formigas,
as carnívoras aranhas dos abismos.
 
As chamas dos corvos escureciam o dia.
Trabalhando a pedra preta para o sangue,
o aço pronto à purificação maligna
havia de descer sobre essa energia,
vibrar a torrentosa lâmpada da testa
contra o chão coalhado de vilezas.
Nas landes de tojo o touro desenhava
labirínticos rastos donde o roubaria.
 
O relâmpago das penas cavalgou-o,
a ternura esquecida, sangradas pelos céus.
Os cornos cantavam o vento o lume
que era novo o mar que fugia.
Jorravam do esperma negras ilhas
sorvidas pelo mar, as constelações
traziam ao corpo corpos soterrados,
cercavam-no as sete irmãs uivando,
varrendo a neve, amordaçando os lobos.
Voltava o touro ao pacífico plâncton
do mar donde ganhara os sortilégios.
 
A lanterna que cavalgo é outro templo.
As três mãos molhando-me no ventre
matam a matéria.
O touro é um cavalo, um monstruoso farol
renovando-me até às proporções,
até à harmonia duma praça
onde a canção de um sino me adormece.
O coração estoura, o ritmo e a unidade
fazem sete, fazem onze, fazem um.
Sou uma ave na sela deste touro,
o meu suor cai-lhe sobre um ombro,
as plêiades cercam minhas asas,
erguem-nas à luz do sol central
em torno de que gira o próprio sol.
A sétima plêiade perdida
ganha um corpo de luz e melodia.
 
Do seco labirinto dos terrenos,
dos vazios da terra voo salvo,
o infinito rio dos astros
traz as almas à incarnação.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
pelos caminhos da manhã
arcádia
1977




25 novembro 2022

carlos de oliveira / look back in anger

 



 
Podia ser a névoa habitual da noite, os charcos cintilantes, o luar trazido por um golpe d evento às trincheiras da Flandres, mas não era. Quando acordou mais tarde num hospital da rectaguarda, ensinaram-no a respirar de novo. Lentas infiltrações de oxigénio num granito poroso, durante anos e anos, até à imobilidade pulmonar das estátuas.
 
Hoje, um dos seus filhos sobe ao terraço mais obscuro da cidade em que vive e olha o passado com rancor. O sangue bate, gota a gota, na pedra hereditária dos brônquios e ele sabe que é o mar contra os rochedos, a pulsação difícil das algas ou dos soldados mortos nessa noite da Flandres.
 
As imagens latentes, penso eu, porque sou o homem na armadilha do terraço difuso, entrego-as às palavras como se entrega um filme aos sais de prata. Quer dizer: numa pura suspensão de cristais, revelo a minha vida.
 
 

carlos de oliveira
sobre o lado esquerdo
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1982




24 novembro 2022

pedro homem de mello / cabra-cega

 



 

 

À volta de incerto fogo
Brincaram as minhas mãos.
… E foi a vida o seu jogo!
 
Julguei possuir estrelas
Só por vê-las.
Ai! Como estrelas andaram
Misteriosas e distantes
As almas que me encantaram
Por instantes!
 
Em ritmo discreto, brando,
Fui brincando, fui brincando
Com o amor, com a vaidade…
 
– E a que sentimentos vãos
Fiquei devendo talvez
A minha felicidade!
 
 
 
pedro homem de mello
jardins suspensos (1937
poesias escolhidas
imprensa nacional-casa da moeda
1983




23 novembro 2022

jorge roque / pouca terra

 



 
I

Rosto anónimo, esbatido pelo movimento, olha para o exterior do comboio, mas não observa nada em particular, tem o olhar parado na contínua viagem ou então perscruta a noite interior, reconstitui a casa que não chegou a conhecer, cada um dos quartos, átrio, corredor, a sombra dos móveis estendida no soalho, o trabalho secreto dos ruídos contra o fundo de silêncio, percorre vagarosamente as raízes que se estendem sinuosas escuro adentro, segue-as ao correr dos dedos, o seu curso interrompe-se abruptamente, há um corte, uma falta, e ele olha-as nesse preciso momento, e o que vê são as mãos vazias. A fotografia, recortada de um convite, não tem referência ao autor ou à exposição a que pertencia. Atrás, a suportar a fotografia, o candelabro de sete braços. Atrás, a história do candelabro de sete braços. Atrás, o grito desde o primeiro homem, vibrado por vozes que se repetem e extinguem. Olha-me de cada vez que passo pela mesa do telefone. Olha-me e não me vê, esquece-me sem nunca me ter visto. Está ali para não me lembrar nada. Está ali para me esquecer de ti nos gestos que, dia a dia, te apagam.
 
 
 
jorge roque
nervo/16
colectivo de poesia
os comboios são meros pensamentos
outubro 2022
 






22 novembro 2022

ángél gonzález / o inverno



 

O Inverno
de largas luas e pequenos dias
está sobre nós. Há tempos
era eu uma criança e nevava muito,
muito. Recordo-o
ao ver a terra negra que repousa,
apenas pelo gelo
de um charco iluminada.
 
É incrível: mas tudo isto
que hoje é terra dormente sob o frio,
amanhã vai ser, com o vento,
trigo.
             E rubras
papoilas. E vergônteas…
 
Sem esperança:
a terra de Castela está à espera
– crescem os rios –
e tem certezas.
 
 
 
ángél gonzález
para que eu me chame ángel gonzález
uma antologia
selecção e tradução de miguel filipe mochila
língua morta
2018
 




 

21 novembro 2022

jorge luís borges / amorosa antecipação

 



 
Nem a intimidade da tua fronte clara como uma festa,
nem o hábito do teu corpo, ainda de menina e misterioso e tácito,
nem a sucessão da tua vida assumindo palavras ou silêncios
serão favor tão misterioso
como olhar o teu sono envolvido
na vigília dos meus braços:
Virgem milagrosamente outra vez, pela virtude absolutória do sono,
serena e resplandecente como a alegria que a memória escolhe,
dar-me-ás essa margem da tua vida que tu própria não tens.
Entregue à serenidade,
divisarei essa praia última do teu ser
e ver-te-ei acaso pla primeira vez
como Deus te verá,
já dissipada a ficção do Tempo,
sem o amor, sem mim.
 
 
jorge luís borges
obras completas 1923-1949 vol. 1
lua defronte  (1925)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998




20 novembro 2022

josé saramago / outono

 



 
Não é agora verão, nem me regressam
Os dias indiferentes do passado.
Já primavera errada se escondeu
Numa dobra do tempo amarrotado.
É tudo quanto tenho, um fruto só,
Sob o calor de outono amadurado.
 
 
 
josé saramago
os poemas possíveis
porto editora
2018





19 novembro 2022

fernando namora / disjunções

 



 
O espaço abre-se
quando os olhos se fecham.
As águas extinguem-se
no fogo que as habita.
No arco da ponte
desviam-se os rios
convergentes.
 
 
 
fernando namora
nome para uma casa
livraria bertrand
1984





 


18 novembro 2022

laureano silveira / imperfeição

 



 

não é preciso voltar o rosto
para a transparência dos olhos que passam
porque as coisas renunciam ao mistério
e à louca exaltação das personagens.
 
Como se nada houvesse inviolável
nem branco nem silêncio nem imagens
crescem corpos queimados de insónia
e em seu soberbo abismo há claridade.
 
Onde porém subir ao pensamento
àquele que deseja, àquele que arde
e iluminar a face da inocência
enchê-la de pavorosa insubmissão?
 
Como perder a boca nessa espuma
e com ela as palavras invisíveis
e ser-se ainda inabitável corpo
cabeça faca espelho idioma?
 
Não é preciso voltar o rosto
quando o próprio rosto é excessivo
os olhos se espantam em remoinhos e tumultos
e os espelhos se enchem de gritos
 
 
 
laureano silveira
hífen 3 out 88 mar 89
a poesia / as outras artes
cadernos semestrais de poesia
1988