16 agosto 2022

fernando pinto do amaral / regressando a casa

 
 
Ninguém quis festejar o dia dos meus anos.
Já estou habituado, é bem melhor
render-me ao sabor quente da penumbra
nesta sala onde cada objecto respira
como se aqui estivesses. As cortinas
continuam corridas e lá fora
julho é um mês vazio, sem destino
para quaisquer palavras – só me fica
um absurda inveja de ser como eles,
jogar os mesmos jogos, rir das mesmas coisas,
mas não há ciência que adiante nada.
 
Pois é, não há ciência capaz de entender
o som do piano que me desenhaste
ali, numa parede, em trompe-l´oeil,
mas não em trompe-l´âme, como tudo
ou quase tudo o que me intoxicou
nestes últimos dias. sofri
outros lugares, outras pessoas; pude
fingir que as almas se substituem
e, no entanto, por alguns momentos
esteve entre as minhas mãos o mundo! Apetecia-me
ter jogado com ele um jogo de bilhar,
enfiá-lo num buraco onde ninguém o visse
e deixá-lo em silêncio, assim como
deixámos esta casa e este bairro
tão degradado, cheio de minorias.
 
A minha minoria sou só eu,
agora que morreste ou ainda pior,
agora que ao meu lado as sombras recomeçam
a abraçar-me às escura, desenhando
na solidão do tecto animais ou plantas,
pequenos barcos pra me conduzirem
a mais um sonho, desses onde a vida
parece ficar presa até ao fim.
 
Ah, como odeio telefones! Só queria
enroscar-me a um canto e dormir,
esquecer-me de quem sou e acordar
no meio de um jardim ou mesmo de um
poema
que ao menos uma vez não falasse da morte.
 
 
 
fernando pinto do amaral
seis projecções e uma despedida
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000




15 agosto 2022

fernando alves dos santos / à beira da estrada

 
 
Os dois à beira da estrada
junto ao poste dum destino de Hermes
seiva das novas sílabas
da palavra virtude.
São impossíveis as ruínas do amor
porque apertamos contra o corpo os lençóis
cumprindo o relógio do mar
enquanto um bando de gaivotas esvoaça
à beira da estrada inacabada
com o outono aos nossos pés.
Repousámos os nossos lábios no silêncio
e logo partimos,
as mãos na intimidade sobrevivente da luta,
húmidas as palavras
cheirando ao ninho azul do céu,
de punhos cerrados e brancos,
brancos como as flores junto ao poste
à beira da estrada.
 
 
 
fernando alves dos santos
diário flagrante [poesia]
edição perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
2005





 

14 agosto 2022

joaquim manuel magalhães / dos meus versos

 
DOIS
 
Comprei-lhe requeijão durante vários dias.
No último enganou-se nos dinheiros
fez o embrulho num papel errado.
Ri-lhe o primeiro convite. Riu-se em trocos.
Continuei por entre os corredores
do resto do supermercado achando
a cada espaço vazio de caixotes
seu olhar a seguir as minhas compras.
Quando estava prestes a curvar-se
para pesar um frango, uma morcela,
coelhos bravos, queijos ou fiambre
sorria-lhe de novo. Erguia logo
o corpo alertado turvavam-se-lhe as mãos
hesitava pelo ar refrigerado do balcão
até estender os seus produtos
à primeira mulher e às que se seguiam.
Com a cesta de metal quase já cheia
deve ter visto o adeus dado nas coisas
de comer durante muito tempo
veio depois duma qualquer desculpa
fingir que levava fardos para dentro.
Fui atrás por alguns segundos
soube que eram horas de sair
vim esperar depois de tudo pago à porta.
Os carros iam de regresso às casas,
o ar toldado de novembro avermelhava-se
a um sol que vem antes da chuva,
nos autocarros iam por detrás dos vidros
rostos que doía ver passar.
Chegou metendo um pente à algibeira,
a sacola que fora matinal ao ombro,
atravessou comigo o quadrado
da praça quando o trânsito parou.
À última luz do dia via-lhe o cabelo
com o pó do dia de trabalho.
Por agora dizia-me o seu nome
entre dentes rasgados pelas cáries
mas sorrindo tanto sob a pele escura
que eu fechava os olhos para perdurar
até tirar-lhe a camisola, as meias
trocar o meu hálito de dentífricos
pelo seu cansado de erva doutras formas
dir contra os horários as coisas do dinheiro
os outros a dizer-lhe o que devia ser.
De mim havia de ir para uma paragem
à espera do bus de que sairia
num dos caixotes de arrabalde,
o corpo satisfeito mas fendido
do prazer combinado para outro dia
que podia voltar ou não voltar a haver.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
antónio palolo
a regra do jogo
1978




13 agosto 2022

fernando lemos / o meu peito é um tecto

 
 
O meu peito é um tecto
Quando os olhos se me fecham
pouso as mãos ao acaso do meu túmulo
Mapa dos meus sentidos
 
Do amor tenho tudo
a dor e o ódio
Há um sossego em saber-me
com uma morte guardada no bolso
 
Do passado fica-me um golpe
que não é mortal mas derrama
todo o seu sangue nos forros da roupa
Estou apertado
 
Estou apertado e suspenso
O meu peito é um tecto
 
 
fernando lemos
poesia
porto editora
2019




12 agosto 2022

edith södergran / decisão

 
 
 
Sou uma pessoa muito madura,
mas ninguém me conhece.
Os meus amigos têm uma falsa imagem de mim.
Eu sopesei a docilidade nas minhas garras de águia
                                                           e conheço-a bem.
Oh, águia. Que doçura no voo das tuas asas!
Vais ficar em silêncio como tudo?
Queres talvez escrever? Mas não escreverás mais.
Cada poema será a perversão de um poema,
não poema, mas garras de águia.
 
 
      Framtidens skugga, 1920
 
 
 
edith södergran
o mundo adormecido espera impaciente
antologia de poesia finlandesa
trad. amadeu baptista
contracapa
2021




 
 

11 agosto 2022

charles simic / III

 
 
Sou o último soldado napoleónico. Quase duzentos anos passados, estou ainda em retirada de Moscovo. A estrada é ladeada por bétulas e a lama chega-me aos joelhos. A mulher com um só olho quer vender-me um frango e eu estou completamente nu.
Os alemães vão para um lado, eu para o outro. Os russos vão ainda para outro e dizem adeus. Comigo tenho um sabre de gala. Uso-o para cortar o cabelo, que está com um metro e vinte.
 
 
 
charles simic
o último soldado de napoleão
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018




10 agosto 2022

jack gilbert / um tipo de coragem

 
 
A pastora da quinta além foi
tirada da escola agora que tem doze anos, e a sua vida acabou.
Arranjei um trabalho de Verão nos moinhos ao meu brilhante irmão
e ele lá ficou toda a vida. Vivi quatro anos com uma
mulher que mais tarde enlouqueceu, fugiu do hospital.,
atravessou a América à boleia, aterrorizada e na neve,
sem casaco. Foi violada pela maioria dos homens que lhe deram
boleia. Dou um pouco à manivela do coração e ele revira-se.
Paira alto no sol sobre continentes e erupções
de mortalidade, entre ventos e imensidões de chuva
que cai por quilómetros. Até que todo o mundo seja superado
pelo que sobe e em nós sobe, contudo, cantando e
dançando e lançando flores lá para baixo.
 
 
 
jack gilbert
deixem-me ser ambos
trad. leonor castro nunes e marcos pereira
destrauss
2020



09 agosto 2022

paul bowles / noites

 
 
Tempos houve, aqui ou além,
em que o murmúrio das palavras não era suficiente.
 
Em alguma estante da memória jaz um Verão perdido,
um que não guardámos para saborearmos um dia.
certamente acabou depressa, com inesperados nevoeiros,
com o vento a deslizar pela incomensurável escuridão.
 
Nenhuma voz podia ser suficiente, aqui ou além,
e as horas caindo velozmente.
 
                                                            1977
 
 
 
paul bowles
poemas
trad. josé agostinho baptista
assírio & alvim
2008
 



08 agosto 2022

josé alberto mar / um rosto uma ilha

 
 
Um rosto, uma ilha de aparências
separada pelas águas
onde é breve a mão antiga
do sono
vivo por dentro
lembrando a amarga inocência
dos olhos na distância.
 
 
Dez./87
 
 
 
josé alberto mar
hífen 4 abr/ set 89
cadernos semestrais de poesia
viagens
1989



 

07 agosto 2022

fernando luís / desviou o rosto

 
 
Desviou o rosto. Sabia
como ninguém suster
a conduta dos instintos.
Estonteante, sob as águas,
fechou-se à tempestade.
 
O céu esfolava os corpos
e as palavras
reacendiam a trovoada de junho.
 
Caminhava, em todos os seus
movimentos era invisível
o estilhaço do prazer
e das afeições.
 
Um inábil vigor tornara-o
esquivo, encarcerado entre
extremos de suspeita, o nublado
mundo das suas mãos.
 
Não pedia senão silêncio,
flores fechadas.
 
 
 
fernando luís
hífen 4 abr/ set 89
cadernos semestrais de poesia
viagens
1989




06 agosto 2022

eduardo pitta / no enredo dos caminhos

 
 
1.
 
Os cães eram mudos e deu com eles por
acaso, farejando relógios de areia.
Naquela terra árdua havia ainda o enigma
dos homens e do seu alfabeto traído.
 
Podia pensar-se num simulacro. Era apenas
método. A obstinada construção de uma vontade
sem objecto.
Teria voltado fosse como fosse.
 
2.
 
Antes de nós outros tentaram.
Muitos não sabem que viagem alguma
se repetirá. Toda a demanda é vã.
Aquele muro não está ali
 
por acidente. Sequer a gosto de qualquer
feitor com inclinações pré-rafaelitas.
A manhã tinha ficado parecida com um pedaço
de vidro e era nítida a evidência de desastre.
 
 
3.
 
As coisas são como são.
Sempre haverá uma mão senhora de exemplar
desprendimento, atenta ao sufoco
e à deslocação da alma.
 
Assim foi, por socalcos de tabaco,
o enredo dos caminhos, ardente
magia. Pouco importa saber
que toda a paisagem mente.
 
 
4.
 
Gente propensa a ver a luz por um funil
a vê-la assim em corredores,
esplendidamente ignorante das forças vitais,
de qualquer alegoria. Esse sentido
 
mediúnico, três vezes milenário, de fabular
a perversa mudez dos animais.
Contudo eles estão onde os encontramos.
E estão simplesmente calados.
 
 
 
eduardo pitta
hífen 4 abr/ set 89
cadernos semestrais de poesia
viagens
1989




 

05 agosto 2022

emanuel jorge botelho / viagem, (estudos)

 
 
1.
 
que golfinho cortou a pele da água,
o mapa embuçado
nas esquinas do medo?
 
quem sarou a morte do sal?
 
 
2.
 
há uma âncora de fogo
no porão dos anjos
 
na fuligem dos trevos, a sorte da viagem
 
 
3.
 
levavas no bolso um limão de oiro
 
o tigre e o fruto
do pomar dos remos
 
 
(versões, talvez provisórias, para
o livro LADAILHAS)
 
 
 
emanuel jorge botelho
hífen 4 abr/ set 89
cadernos semestrais de poesia
viagens
1989





 

04 agosto 2022

al berto / regressa do túmulo dos mares do sul

 
 
regressa do túmulo dos mares do sul
enterra os dedos na penumbra que separa o dia
da noite das cidades recorda o restolhar das serpentes
a seiva lívida do loureiro estremecendo ao sentir
o rosto da criança que foste contra o tronco
 
na tua memória já não existem paisagens de ossos
nem pássaros nem punhais de luz dentro da insónia
a criança que em ti morreu crescendo
usou sapatos com atacadores e gravata
pela primeira vez foi ao cinema sozinha
com olhar turvo de melancolia anda por aí
à procura de quem a queira
 
 
 
al berto
hífen 4 abr/ set 89
cadernos semestrais de poesia
viagens
1989