16 agosto 2021

gemma gorga / livro dos minutos

 
 
6
 
Está tudo pronto à espera que chegues para começar a existir: os pratos em cima da mesa, o brilho nocturno nas chávenas, o calor nas almofadas, a cera derretendo como açúcar pernas abaixo. A iminência é um penhasco por onde agora passeio em bicos dos pés, contendo a respiração, sabendo que de um momento para o outro se ouvirá a campainha e me precipitarei no puro presente de ti, como uma espada deleitada face ao dardo veloz. Mas ainda não. Apesar de andar de um lado para o outro, apesar de compor o cabelo, apesar da lentidão audível do relógio, apesar desta espera que poderíamos dizer quimicamente pura.
 
 
 
gemma gorga
livro dos minutos (2006)
o anjo da chuva
trad. miguel filipe mochila
do lado esquerdo
2021




 

15 agosto 2021

gil t. sousa / e eu, que sempre vi a luz

 
 
 
e eu, que sempre vi a luz
como um elemento de revelação
atento nestas mãos abertas
e anseio por tudo o que nelas
se esconde
 
espero tempestades e
veredictos sobre a antiquíssima
eternidade
persigo a sombra do rumor
que se semeia a si próprio
 
no campo da noite
e nos espera de faca na mão
sempre que o coração tropeça
ou a voz se perde
num corpo tão antigo
 
como o frio, escavando
poços por entre os pés
cortando as linhas de água
do nosso deserto
mais intimo e extenso
 
tinta queimada, esta pele
tambor surdo e cego
rente à estrada abandonada
do passado, rente ao mar
que nos salgou o desejo
 
 
 
gil t. sousa




 
 

14 agosto 2021

emanuel jorge botelho / testamento vital

 
 
 
                  para o Manuel de Freitas
 
 
 
estou cansado de andar a ir morrendo,
à espera que o tempo saia do meu nome.
 
trepar paredes não é risco a que dê gasto de alma,
e não tenho caligrafia
para cancelar o endereço.
 
ponho uma faca entre os dentes?
masco tília?
ou desenho a primeira sílaba de uma asa?
 
não faço nada.
não sou capaz de trair a minha morte.
 
 
                                       Agosto de 2013
 
 
 
 
emanuel jorge botelho
telhados de vidro n.º 19 . maio . 2014
averno
2014






 
 
 
 

13 agosto 2021

cesare pavese / virá a morte e terá os teus olhos

 



 

Virá a morte e terá os teus olhos –
esta morte que nos acompanha
de manhã até à noite, insone,
surda, como um remorso antigo
ou um vício absurdo. Os teus olhos
serão uma palavra inútil,
um grito reprimido, um silêncio.
Assim os vês todas as manhãs
quando sozinha te inclinas
diante do espelho. Ó cara esperança,
nesse dia saberemos nós também
que és a vida e és o nada.
 
Para todos a morte tem um olhar.
Virá a morte e terá os teus olhos.
Será como abandonar um vício,
como ver no espelho
ressurgir um rosto morto,
como escutar lábios fechados.
Mudos, desceremos ao abismo.
 
 
                                22 de Março de 1950
 
 
 
cesare pavese
virá a morte e terá os teus olhos
trad. rui caeiro
edições do saguão
2021





 


12 agosto 2021

pedro salinas / poema

 
 
Não te vejo. Mas sei
que estás aqui, por detrás
de uma frágil parede de ladrilhos e de cal, ao alcance
da minha voz, se te chamasse.
Mas não, não te vou chamar.
Chamar-te-ei amanhã,
quando, ao deixar de te ver,
me imagine que continuas
aqui ao pé, a meu lado,
e que basta hoje a voz
que ontem não quis pronunciar.
Amanhã… quando lá
estiveres, por detrás de uma
frágil parede de ventos,
de céus e de tempo.
 
 
 
 
pedro salinas
transversões
poemas reescritos em português
por zetho cunha gonçalves
contracapa
2021

 




11 agosto 2021

nuno júdice / um resto de insónia

 
 
A noite chegou até ele sem bater à porta;
devagar, instalou-se no sofá da sala, escureceu
os cantos, roubou a luz às lâmpadas. E
não abriu a boca: enquanto ele, sem nada
compreender, a empurrava para longe de si,
tentava abrir as janelas, acendia velas,
que ela soprava por trás. A noite chega,
assim, afirmando a sua presença. Não dá
descanso, a não ser que a aceitem como ela é:
mas não é fácil tê-la dentro de casa, nem conviver
com os seus gestos de treva. Talvez se possa,
apenas, murmurar esse nome que ela nos
roubou, um dia, e que só agora se nos torna
necessário lembrar; ou invocar uma protecção
ilusória, a deusa diurna, de cabelos iluminados
pelo ouro primaveril. Tudo inútil – e como ela
se ri!, a noite branca que o obriga a manter
os olhos abertos, fixando o último fio de luz,
como se também a sua vida escorresse por aí…
 
 
 
 
nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997





 

10 agosto 2021

tomás gonzález / passaram dias felizes

 
 
Onde
o optimista costume
de querer ser melhor?
Fiquem para primos afastados
as imperiosas buscas de dias felizes,
os derradeiros sorrisos de um futuro simpático.
 
Aqui já é esta hora.
Diferentes corações sofrem sem ânsias de consolo.
Outros redimem penas que não reconhecerão mais tarde.
 
Fique para o rico,
recaia sobre ele, como ganho imerecido,
a fortuna de viver.
Aqui já fomos muito felizes.
Aqui já é esta hora surda e cinzenta.
 
 
 
tomás gonzález
(espanha, 1940-1966)
o meu livro de cabeceira é um revólver
dezassete suicidas
trad. jorge melícias
língua morta
2020
 






 
 

09 agosto 2021

john ashbery / algumas árvores

 
 
Estas são notáveis: cada uma
Ligando-se à seguinte, como se a fala
Fosse uma representação imóvel.
Combinando por acaso
 
Encontrar-nos tão distantes esta manhã
Do mundo como concordes
Com ele, tu e eu
Somos de repente o que as árvores tentam
 
Dizer-nos que somos:
Que só o aí estar delas
Significa algo: que em breve
Poderemos tocar-nos, amar, explicar.
 
E contentes por não termos inventado
Um tal decoro, estamos cercados:
Um silêncio já cheio de ruídos,
Uma tela em que emerge
 
Um coro de sorrisos, uma manhã de Inverno.
Postos sob uma luz enigmática, e movendo-se,
Os nossos dias adoptam uma tal reticência
Que estas inflexões parecem a sua própria defesa.
 
 
 
 
john ashbery
auto-retrato num espelho convexo e outros poemas
tradução antónio m. feijó
relógio d’ água
1995

 





08 agosto 2021

manuella bezerra de melo / a cadela que fazia amizade

 
 
A cadela que fazia amizade
lambendo feridas e
não sabia abanar o rabo
teve a língua arrancada
                (adocicada)
servida com ovos moles
 
 
 
 
manuella bezerra de melo
volta para tua terra:
uma antologia antirracista/antifascista de
poetas estrangeiros em portugal
editora urutau
2021

 





07 agosto 2021

j. r. solonche / hoje vesti uma t-shirt

 
 
Hoje vesti uma T-shirt
com o focinho de um lobo.
Se a reencarnação existe mesmo,
eu gostaria de regressar
como um lobo. Um lobo
cinzento, um lobo vermelho ou
qualquer um da lista de
raças em perigo. Se
voltasse na minha próxima vida
como um lobo à beira da
extinção, podia fazer coisas
tais, podia fazer coisas
tais, digo-te, podia
fazer coisas tão maravilhosamente
horríveis que não consigo dizer-te.
 
 
 
j. r. solonche
afagando a face de lorca
uma antologia
trad. francisco josé craveiro de carvalho
companhia das ilhas
2020





 
 

06 agosto 2021

josé carlos barros / o vaso de plástico

 


 

trago para dentro de casa o vaso de plástico não
vá passar adriano entre as sombras da noite e
roubá-lo com a erva da fortuna para os
jardins da sua vila em
tivoli
 
 
 
 
josé carlos barros
estação
on y va
2020





 


05 agosto 2021

julio cortázar / sábio com buraco na memória

 
 
 
     Sábio eminente, história romana em vinte e três volumes, candidato certo ao prémio Nobel, grande entusiasmo no país. súbita consternação: rato de biblioteca em ‘full-time’ edita grosseiro panfleto denunciando omissão. Caracala. Relativamente pouco importante, de qualquer maneira omissão. Admiradores estupefactos consultam Pax Romana que artista esquece pessoas Vara devolve-me as minhas legiões homem das mulheres e mulher dos homens (atenção aos Idos de Março) o dinheiro não tem cheiro com este sinal vencerás. Ausência incontroversa de Caracala, consternação, telefone desligado, sábio não pode atender rei Gustavo da Suécia mas não é esse o rei que quer chamá-lo mas sim um outro que marca o número baldamente praguejando numa língua morta.
 
 
 
júlio cortázar
histórias de cronópios e de famas
manual de instruções
tradução de alfacinha da silva
editorial estampa
1973

 




04 agosto 2021

louis aragon / ar do tempo

 
 
Nuvem
Ergue-se um cavalo branco
E é madrugada na estalagem onde despertará o
                                       rimeiro que aparecer
Vais andar a vadiar no meio da gente a vida inteira
Semi-morto
Semi-adormecido
Não estás farto dos lugares comuns
As pessoas olham-te sem se rirem
Têm olhos de vidro
E tu passas
Perdes o teu tempo
Passas
Contas até cem e fazes batota para matar mais dez segundos
Estendes bruscamente o braço para morrer
Não tenhas medo
Mais tarde ou mais cedo
Só haverá mais um dia e a seguir um dia
E depois pronto
Nunca mais será preciso ver os homens nem esses abençoados
                         bichinhos que eles afagam de quando em vez
Nunca mais será preciso falar sozinho durante a noite
                          para não ouvir o lamento da lareira
Nunca mais será preciso abrir as minhas pálpebras
Nem lançar o meu sangue como um disco
Nem respirar sem ter vontade disso
Contudo não desejo morrer
O sino do meu coração canta em voz baixa uma
                            uma esperança muito antiga
Esta música
Bem sei
Mas a letra da canção
Que dizia a letra ao certo
Imbecil
 
 
 
louis aragon
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021