31 março 2020

hans-ulrich treichel / o desmentido de sísifo


Sou saudável.
Barbeio-me todos os dias.
Visto uma camisa engomada.
Disto não abdico.
Só o pó me dá que fazer.
Tudo o resto é falso:
O monte onde vivo
não é tão alto como pensam.
Nem monte chega a ser.
E a pedra em breve
já só era o resto de uma pedra.
Há uns anos deixei-a
escorregar pelo cano abaixo.
Desde então aqui estou
a fazer declarações públicas.
Tudo o resto é falso.



hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994






30 março 2020

harold pinter / previsão do tempo



O dia vai nascer nublado.
Vai estar bastante frio
Mas à medida que o dia avançar
O sol abrirá
E a tarde será seca e quente.

À noite a lua brilhará
E será bastante luminosa.
Haverá, é verdade,
Um vento cortante
Mas que abrandará pela meia-noite.
Nada mais acontecerá.

Esta é a última previsão.

Março 2003



harold pinter
guerra
trad. pedro marques, jorge silva melo e francisco frazão
quasi
2003





29 março 2020

bernardo soares / milímetros (sensações de coisas mínimas)


Como o presente é antiquíssimo, porque tudo, quando existiu, foi presente, eu tenho para as coisas, porque pertencem ao presente, carinhos de antiquário, e fúrias de coleccionador precedido para quem me tira os meus erros sobre as coisas com plausíveis, e até verdadeiras, explicações científicas e baseadas.

As várias posições que uma borboleta que voa ocupa sucessivamente no espaço são aos meus olhos maravilhados várias coisas que ficam no espaço visivelmente. As minhas reminiscências são tão vívidas que (...)

Mas só as sensações mínimas, e de coisas pequeníssimas, é que eu vivo intensamente. Será pelo meu amor ao fútil que isto me acontece. Pode ser que seja pelo meu escrúpulo no detalhe. Mas creio mais — não o sei, estas são as coisas que eu nunca analiso — que é porque o mínimo, por não ter absolutamente importância nenhuma social ou prática, tem, pela mera ausência disso, uma independência absoluta de associações sujas com a realidade. O mínimo sabe-me a irreal. O inútil é belo porque é menos real que o útil, que se continua e prolonga, ao passo que o maravilhoso fútil, o glorioso infinitesimal fica onde está, não passa de ser o que é, vive liberto e independente. O inútil e o fútil abrem na nossa vida real intervalos de estática humilde. Quanto não me provoca na alma de sonhos e amorosas delícias a mera existência insignificante dum alfinete pregado numa fita! Triste de quem não sabe a importância que isso tem!

Depois, entre as sensações que mais penetrantemente doem até serem agradáveis, o desassossego do mistério é uma das mais complexas e extensas. E o mistério nunca transparece tanto como na contemplação das pequeninas coisas, que, como se não movem, são perfeitamente translúcidas a ele, que param para o deixar passar. É mais difícil ter o sentimento do mistério contemplando uma batalha — e contudo pensar no absurdo que é haver gente, e sociedades e combates delas é o que mais pode desfraldar dentro do nosso pensamento a bandeira de conquista do mistério — do que diante da contemplação duma pequena pedra parada numa estrada, que, porque nenhuma ideia provoca além da de que existe, outra ideia não pode provocar, se continuarmos pensando, do que, imediatamente a seguir, a do seu mistério de existir.

Benditos sejam os instantes, e os milímetros, e as sombras das pequenas coisas, ainda mais humildes do que elas! Os instantes (...) Os milímetros — que impressão de assombro e ousadia que a sua existência lado a lado e muito aproximada numa fita métrica me causa. Às vezes sofro e gozo com estas coisas. Tenho um orgulho tosco nisso.

Sou uma placa fotográfica prolixamente impressionável. Todos os detalhes se me gravam desproporcionadamente [a] haver um todo. Só me ocupa de mim. O mundo exterior é-me sempre evidentemente sensação. Nunca me esqueço de que sinto.

s.d.

fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982






28 março 2020

gonçalo m. tavares / guerra, inferno



Uma certa indumentária clássica: os sapatos mantêm-se
Indispensáveis mesmo depois da guerra.
Uma progressiva intimidade com o inferno não
Modifica conceitos estéticos e necessidades orgânicas:
Quais os índices do desejo em dias de bombardeamento?
Há números importantes para perceber a razão por que certas
Palavras se introduziram em todas as línguas,
Do Oriente ao Ocidente. Palavras más.




gonçalo m. tavares
1 poesia
relógio d´água
2004






27 março 2020

joão habitualmente / a minha primeira bicicleta



Foi nela que visitei o sol

E a praia. E o sal
levou-me também até às primeiras raparigas


A minha bicicleta
era o sol – e a própria viagem astral




joão habitualmente
um dia tudo isto será meu
(uma antologia)
porto editora
2019






26 março 2020

filipe marinheiro / escuridões



sozinho, amplio desde início o medo dos erros e equívocos. desato
a alastrar os medos para outras moradas. no entanto, tento permear essas
vertigens, os amores e as nobres sensações espalhando-as nas folhas de
papel brancas como a tinta que vai escrever a um poema e cura a doença
e a vegetação dos textos.
deixo de ter medo preso ao corpo: vou-me curando.



filipe marinheiro
escuridões
âncora
2018









25 março 2020

rui costa / faca de incêndio



8
O diabo tem a mesma cara que tu

Era branco cor do leite quando temos
medo. Medo: quatro agulhas nos olhos
à entrada da árvore, os tecidos regenerando
o ar da praia e à luz fosca que segue a perda
da memória. Eles escondiam-na nas pedras,
até na água, homem e mulher – os peixes agitados
pelo movimento da duna, cidade – altíssima!
trabalhavam na cozinha, construindo cedo –
recuperando a tristeza, segando os legumes.
tacteando – à procura do olhar que retomava
o ponto de entrada, as mãos distribuídas pelo pão.
vamos ver as plantas que pesam ainda sobre a mesa,
as facas, pedaços cortados pela flor quando a terra
abriu, quem falou de alma? não era alma, usa
o meu nome. Este sou eu. Esta sou eu, Eu sei,
Eu sei. Mas a alavanca que os recuperou da queda
dispunha os mesmos dedos pela duna.
Quiseram deitar-se nos lábios das urtigas –
Permanecer.



rui costa
«se uma estrela me falha, agarro numas nuvens»
mike tyson para principiantes
antologia poética
assírio & alvim
2017





24 março 2020

antónio josé forte / grande écran


desenho de Aldina


No grande écran
a festa do homem lobo do homem
e a sua mulher de bicicleta
até que um século de furor
abra a cratera donde irrompe o rosto do poeta
as suas mãos borboletas gigantes
os seus pés peixes voadores
a sua boca asa de fogo branco
e outro século
erga a pirâmide de palavras
que se derramem docemente
de anel em anel
até ao último século




antónio josé forte
caligrafia ardente
hiena
1987





23 março 2020

ernesto sampaio / janela



Na janela levada pelo vento
o castelo de cartas
entre maciços de coral

Considerando o abismo
de séculos e gestos
tudo o que importa
passa-se na outra vertente
mais bela que a cor
desta luva esquecida no mar
onde o tempo
como um crepúsculo
se dispersa na noite
com todos os segundos a arder



ernesto sampaio
feriados nacionais
fenda
1999








22 março 2020

gil nozes de carvalho / linhas da mão



I

Há uma lei, esta.
Primeiro apodrece a órbita
seguem-se os cavalos a coragem
e o rio, que nos homens, conduz
o eclipse à foz do sangue.


gil nozes de carvalho
alba
gota de água
1982










21 março 2020

josé gomes ferreira / e se fôssemos imortais?



XXVI

(«Morte e Transfiguração» de Strauss. Deixo
de ouvir, de súbito preocupado com a minha
morte.)



E se fôssemos imortais?
– silêncio complicado com o bafo dos homens nas estrelas.

Se houvesse repartições e escrita,
mangas-de-alpaca nas pedras e nos astros,
livros de Deve e Haver especiais,
carimbos com caveiras,
horas de morte registadas,
fabricação constante de espectros
para entrarem e saírem do Abismo
misturados com as nuvens
dos alçapões do dia?

Ó Strauss sem misticismo
– que burocracia!



josé gomes ferreira
sala de concertos 1951-1952-1953, etc… pelos anos fora
poesia IV
portugália
1971






20 março 2020

nuno júdice / acalmia



O vento sopra no vazio da pele,
quando a abandona o desejo; levanta
as palavras caídas, ergue-as
até às nuvens, onde as vejo misturarem-se
com as aves embranquecidas do ocaso.

O vento deita-se nas equimoses do espírito,
abrandando a dor de quem ama sem
objecto nem eco. Ouço-o por dentro das veias
rápidas de um luxo de emoções, como
se gritasse por um tropel de troncos.

O vento morre nos braços de florestas
petrificadas, saudando um degelo de re-
soluções. Respiro o ar imóvel com um odor
de folhas calcinadas – como se pisasse o teu
corpo, terra lívida do meu abraço.




nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997





19 março 2020

vasco graça moura / do tempo que passa



nós que vivemos graves junto da madeira
velha de nossas casas mastigando
alguns talos de couve mal cozida
e pano de lençol com dentes já usados

nós que transcrevemos as manchas e rasgamos
rascunhos muito antigos e alguns novos projectos
recuperando móveis e faianças
e todas as maçãs onde habitámos

nós que temos cimento ferramentas greves
e um pouco de corelli e um sistema
respiratório e caracteres de imprensa
e um plano geral de arruamentos

e que temos livros e que estamos vivos
podemos construir alguma coisa




vasco graça moura
noite
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007