15 novembro 2019

adonis / seis notas do lado do vento




4

                A poesia, nos nossos dias, expõe-se a um perigo que não vem dela, mas da palavra que se lhe refere. Ela é ofuscada por essa palavra. O leitor já não lê o poema, lê o poeta, as suas referências, as suas inclinações. Lê o que lhe declaram do poeta e da poesia. O poeta tornou-se para o crítico um meio de afirmar as suas opções, de expor as suas teorias, não de dar acesso ao poema enquanto tal. Trata-se aqui de uma crítica que decifra a poesia por intermédio do mundo. A verdadeira crítica é o seu oposto, desvenda o mundo através da poesia. Acede às energias da própria língua sem outro instrumento que não seja só a poesia.


adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016





14 novembro 2019

paul strand / elegia pelo meu pai



1 -  O CORPO VAZIO

As mãos eram tuas, os braços eram teus,
Mas tu não estavas lá.
Os olhos eram teus, mas estavam fechados e não iriam abrir.
O sol distante estava lá.
A lua envenenada no ombro branco da colina estava lá.
O vento em Belford Basin estava lá.
A luz verde pálida do inverno estava lá.
A tua boca estava lá,
Mas tu não estavas lá.
Quando alguém falava, não havia resposta.
Nuvens desciam
E enterravam os prédios pela água,
E a água estava silenciosa.
As gaivotas olhavam.
Os anos, as horas, que não te iriam encontrar,
giravam nos pulsos de outros.
Não havia dor. Tinha partido.
Não havia segredos. Não havia nada para dizer.
A sombra espalhara as suas cinzas.
O corpo era teu, mas tu não estavas lá.
O ar tremia contra a sua pele.
O escuro inclinou-se para os seus olhos.
Mas tu não estavas lá.




paul strand
apeadeiro
revista de atitudes literárias
nr. 2 primavera 2002
tradução josé luís peixoto
edições quasi
2002




13 novembro 2019

josé luis puerto / fecha



Fecha os olhos como se a morte
Viesse hoje buscar-te
E fecha a memória da luz
Para a levar com a tua obscuridade,
Nela está a forma das coisas,
A sorte, a ilusão dos sentidos,
O vaivém da temporalidade.
Leva contigo tudo
Nesse encerrar sobre ti
Que és fusão com o nada;
Há uma viagem de que não sabemos
Nem em que consiste
                                         nem se nos liberta
Deste desassossego de estar vivos
Pendentes da morte
Com a ameaça eterna do nada.
Fecha os olhos como se a vida
Tivesse sido uma ficção, um sonho
E vai-te retirando,
E vai-te despojando da matéria,
De dor, de consciência, de sentidos,
Dos restos amargos do amor,
E vai-te acostumando a não ser nada,
Nada, nada, tanto nada
Como se nunca tivesses
Do ser formado parte.
Esta é a suprema renúncia,
A maior que te falta cumprir.




josé luis puerto
trad. jorge melícias
apeadeiro
revista de atitudes literárias
n.º 2 primavera de 2002
quasi
2002






12 novembro 2019

josé carlos ary dos santos / pavana para uma burguesa defunta



A cabeça de vaca da minha tia mais velha
repousa em guerra lenta no cemitério maior.
Rói-lhe o bicho das contas a fímbria da orelha.
Rói-lhe o rato da raiva as narinas sem cor.

Repousa em paz Raposa que na toca
fareja a galinhola e o fricassé.
Já não mija mas cheira
já não vive mas ousa
ser a santa que foi  ser o estrume que é.

A cabeça de vaca de minha tia refoga
nas lágrimas burguesas da família enlatada
cozinha-lhe a memória um viúvo de toga
descasca-lhe a cebola uma filha frustrada.

A cabeça de vaca de minha tia meneia
o sim-sim i não-não dos outros semivivos
na família a razão de se morrer a meias
é a exalação dos suspiros cativos.

Se não fosse o desgosto  se não fosse a gordura
o retrato na sala  o buraco no ventre
se não fosse de força tinha feito a escritura
nem sequer houve tempo para o oiro dos dentes.

Minha tia mastiga  minha tia castiga
na saleta do inferno as almas dos criados:
– não me limpaste o pó  a campa tem urtigas
atrasaste o jantar dos condenados.

A cabeça de vaca de minha tia sem nome
coze no fogo brando do que é passar à história.
Dissolve-se na boca  resolve-se na fome
Do senhor que a devora em sua santa glória.




ary dos santos
vinte anos de poesia
insofrimento in sofrimento, 1969
círculo de leitores
1983






11 novembro 2019

nuno júdice / elegia



Demora-se o outono numa eclosão de frutos
secos: as taças onde puseste as mãos, sem
esperar que a chuva te molhasse os cabelos.
Ao fim da tarde, quando já parece noite,
as nuvens distraem-se com a falta de vento.
Esperam que lhes fales, como se as palavras
pudessem atravessar os limites da treva.
Ainda paras; e olhas para trás, onde os arbustos
te esperam numa hesitação de folhas. Depois
retomas o caminho. Deixo de te ver. É inverno.




nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997








10 novembro 2019

alexander search / entrevista com alberto caeiro



Entre as muitas sensações de arte que devo a esta cidade de Vigo, sou-lhe grato pelo encontro que aqui acabo de ter com o nosso mais recente, e sem dúvida o mais original, dos nossos poetas.

Mão amiga me havia mandado desde Portugal, para suavização talvez, do meu exílio, o livro de Alb[erto] Caeiro. Li-o aqui, a esta janela, como ele o quereria, tendo diante dos meus olhos extasiados o (...) da baía de Vigo. E não posso ter senão por providencial que um acaso feliz me proporcionasse, tão cedo empós a leitura, travar conhecimento com o poeta glorioso.

Apresentou-nos um amigo comum. E à noite, ao jantar, na sala (...) do Hotel (...), eu tive com o poeta esta conversa, que eu ansiei poder converter-se em entrevista.

Eu dissera-lhe da minha admiração perante a sua obra. Ele escutára-me como quem recebe o que lhe é devido, com aquele orgulho espantoso e fresco que é um dos maiores atractivos do homem, por quem, de supor é, lhe reconheça o direito a ele. E ninguém mais do que eu lho reconhece. Extraordinariamente lho reconhece.

Sobre o café a conversa pôde intelectualizar-se por completo. Consegui levá-la, sem custo, para um único ponto, o que me interessava, o livro de Caeiro. Pude ouvir-lhe as opiniões que transcrevo, e que, não sendo, claro é, toda a conversa, muito representam, contudo, do que se disse.

O poeta fala de si e da sua obra com uma espécie de religiosidade e de natural elevação que, talvez, noutros com menos direitos a falar assim, parecessem francamente insuportáveis. Fala sempre com frases objectivas, excessivamente sintéticas, censurando ou admirando (raro admira, porém) com absolutismo, despoticamente, como se não estivesse dando uma opinião, mas dizendo a verdade intangível.

Creio que foi pela altura em que lhe disse da minha desorientação primitiva em face da novidade do seu livro que a conversa tomou aquele aspecto que mais me apraz transcrever aqui.

O amigo que me enviou o seu livro disse-me que ele era renascente, isto é, filiado na corrente da R[enascença] P[ortuguesa] mas eu não creio...
- E faz muito bem. Se há gente que seja indigna [?] da minha obra é essa.
O seu amigo insultou-me sem me conhecer comparando-me a essa gente. Eles
são místicos. Eu o menos que sou é místico. Que há entre mim e eles? Nem
o sermos poetas, porque eles o não são. Quando leio Pascoaes farto-me de rir.
Nunca fui capaz de ler uma coisa dele até ao fim. Um homem que descobre
sentidos ocultos nas pedras, sentimentos humanos nas árvores, que faz gente dos montes e das madrugadas (...)É como um idiota belga dum Verharen, que um amigo meu, com quem fiquei mal por isso, me quis ler. Esse então é inacreditável.
- A essa corrente pertence, penso, a Or[ação] à L[uz] de Junqueiro.
- Nem poderia deixar de ser. Basta ser tão má. O Junqueiro não é um poeta. É um [...] de frases. Tudo nele é ritmo e métrica. A sua religiosidade é uma coisa. A sua admiração da natureza é outra coisa. Pode alguém tomar a sério um tipo que diz que é (...) da luz misteriosa juntinho ao altar de Deus. Isto não quer dizer nada. É com coisas que não querem dizer nada, excessivamente nada, que as pessoas têm feito obra até agora. É preciso acabar com isso.
- E João de Barros?
- Qual? O contemporâneo... A personagem não me interessa. Detesto-a, como o futuro e o destino. A única coisa boa que há em qualquer pessoa é o que ela não sabe.

s.d.


fernando pessoa
pessoa por conhecer - textos para um novo mapa
teresa rita lopes
estampa
1990





09 novembro 2019

abdul cadre / se quiseres imaginar um mundo





47

Se quiseres imaginar um mundo
sem conflitos nem contradições,
imagina-o à imagem e semelhança
da tua verdadeira essência.

Torna-te um prisma de cristal
que a luz atravessa sem constrangimentos.

Realiza da luz desejos e segredos,
explode de cor e silencia.



abdul cadre
a razão das palavras cortadas muito rentes
(ou algumas heresias)
editora urutau
2019






08 novembro 2019

josé gomes ferreira / e ainda hoje por lá ando a correr



IV

E ainda hoje por lá ando a correr
na superfície das manhãs paradas
a gastar-me com os mortos
– e a deixar cair invenções de sombras nas estradas.


Depois perdi as mãos
de tanto escrever no musgo da parede
por baixo dum desenho obsceno inocente:

«Futuro,
deixa-me continuar a ter sede.»


                                  («Futuro.
                                  deixa-me continuar a ter sede.»
                                  Vou mandar desenhar este lema na bandeira
                                  vermelha com o meu brasão.)




josé gomes ferreira
poesia V
memória – I (1957-1958)
portugália
1973




07 novembro 2019

natália correia / o livro dos amantes



IV
Dá-me a tua mão por cima das horas.
Quero-te conciso.
Adão depois do paraíso
errando mais nítido à distância
onde te exalto porque te demoras.



natália correia
poemas
antologia poética
dom quixote
2018











06 novembro 2019

amalia bautista / o baile



Tu sonhas-me enquanto sonho contigo.
Ambos num salão muito requintado,
abraçados, dançando, comovidos.
Com a vista brilhante e a pele arrepiada,
os olhos carregados de desejo.
Os sapatos altíssimos conseguindo o milagre
de eu juntar os lábios ao teu ouvido.
Não escutamos a musica, não vemos as pessoas,
não interessa nada além do reencontro.
Sentimo-nos felizes como crianças,
primários e excitados como animais no cio.
Quando a negra vida nos despertar,
a diferentes horas e em diferentes camas,
a ansiedade e a dor voltarão a apanhar-nos
e os nossos sonhos serão sonhos só.


amalia bautista
estou ausente
tradução de inês dias
averno
2013





05 novembro 2019

eli ríos / se calhar não é o tempo o que importa








Se calhar não é o tempo o que importa
também não a realidade
nem sequer o onírico
porque a poesia só é o absurdo;
é, só, a escrita das mentiras da
memória/ lembranças/ sonhos
tergiversando pelo esquecimento – olvido – do passado


                                                                                 Acaso,
                                                                 tu estavas,
                                            certamente,
                                        ali,
enquanto dormias?



eli ríos
se calhar não é o tempo o que importa
editora urutau
2019






04 novembro 2019

joão luís barreto guimarães / a solidão dos homens cansados



A
cada dia que passa me sinto mais fatigado. Um
homem procura ternura
no seu regresso a casa (um
homem não vê o instante em que despe
o ultraje) quando
sai de pés descalços pelo soalho da tarde em
busca de um
copo de olvido. Um homem conhece a casa
pelo gato à janela –
duas pupilas acesas sentam-se
à sua mesa
sentam-se à mesa da alma. E a casa recebe o homem
com uma noite sempre nova
(um homem entrega tudo a quem o
salve do exílio)
quem lhe aplaque a solidão que existe nos
homens cansados.




joão luís barreto guimarães
nómada  (2018)
o tempo avança por sílabas
poemas escolhidos
quetzal
2019






03 novembro 2019

ricardo reis / vou dormir, dormir, dormir,



                                Nirvana


Vou dormir, dormir, dormir,
Vou dormir sem despertar,
Mas não dormir sem sentir
Que estou dormindo a sonhar.

Não insciência e só treva
Mas também estrelas a abrir
Olhos cujo olhar me enleva,
Que estou sonhando a dormir.

Constelada inexistência
Em que subsiste de meu
Só uma abstracta insciência
Una com estrelas e céu.

20-2-1928


fernando pessoa
poemas de ricardo reis
imprensa nacional - casa da moeda
1994