07 outubro 2019

vicente huidobro / altazor ou a viagem em pára-quedas



canto I


[…]

O sol nasce no meu olho direito e põe-se no meu olho esquerdo
Na minha infância uma infância ardente como álcool
Sentava-me nos caminhos da noite
A escutar a eloquência das estrelas
E a oratória da árvore
Agora a indiferença neva na tarde da minha alma
Rompam-se em espigas as estrelas
Parta-se a lua em mil espelhos
Volva a árvore ao ninho da sua amêndoa
Só quero saber porquê
Porquê
Porquê
Sou protesto e arranho o infinito com as minhas garras
E grito e gemo com miseráveis gritos oceânicos
O eco da minha voz faz trovejar o caos

[…]



vicente huidobro
altazor ou a viagem em pára-quedas
trad. fdiogo fernandes
antítese
2018






06 outubro 2019

ricardo reis / para ser grande, sê inteiro: nada



Para ser grande, sê inteiro: nada
        Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
        No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
        Brilha, porque alta vive.


14-2-1933



fernando pessoa
odes de ricardo reis
ática
1946







05 outubro 2019

carlos ramos / notas para não esquecer




rever os modos de me aproximar à morte
deixar-me mais tempo nos teus braços
ser a ferida que se oferece ao teu corpo
congelar-me nos teus olhos e esperar que ardas.




carlos ramos
as mãos por dentro do corpo
edições fantasma
2015









04 outubro 2019

carlos eurico da costa / parábola quotidiana



Não quero as tuas hossanas prováveis
A tua face ou a Sodoma dos gritos
A tua presença o teu destino
De alquimista que descreve
Um santuário de neve
E do teu perfil irisado – eu falo
Na propícia penumbra ausente de olhares
Fixando o rumo dos navios que dispersos
Ajustam contrapõem e encobrem
O fulcro temporal das luzes nocturnas.
Não falo das cinzas dos cirurgiões ou dos cegos
Falo desta terra da corrente desobediente
Do estilhaço que à superfície das águas corre
Quando a maré vem e os barqueiros dormitam
Golpeando as gargantas deixando adivinhar
A língua de fogo o seu astro maldito.
Não falo desta oportuna parcimoniosa lamentação
Do que vem ou foge regressando no vento – os perfumes acres
O cheiro animal
Do homem que no cais fita a lua
Destes homens e mulheres de pastoril juventude
                dormitando vivendo gravitando vivendo  
Ah eu falo-te meu amor eu falo-te
E a tua imagem surge até na mais disforme poeira
Nos braços que lanço sobre o muro
Do que procuras antevês
E sempre distante entre a porta que rodeias
E o meu fantasma
Solta o grito o animal tresloucado.
Temos um vago desenhar de circunstância
Que não nos aproxima mas adivinha-nos
A parábola activa talvez a verdadeira força
O sangue que aflui
E a criança que vagarosamente sobe a escada
E em silêncio precipita-se no vácuo.



carlos eurico da costa
aventuras da razão
livraria morais editora
1965





03 outubro 2019

leonard cohen / a névoa



Assim como a névoa não deixa marcas
Na colina verde-escura
Também o meu corpo não deixa marcas
Em ti, nunca vai deixar

O vento e o falcão têm o seu encontro
E o que resta para guardar?
Também tu e eu após o nosso encontro
Nos viramos, depois dormimos

Assim como a noite consegue resistir
Mesmo sem lua e sem estrelas
Também vamos resistir
Quando um de nós partir para longe


leonard cohen
a chama
alerta azul
tradução de inês dias
relógio d´agua
2019






02 outubro 2019

maria sousa / depois da chuva




depois da chuva
ando devagar no escuro

para fazer de conta que estou à espera
acendo a luz por toda a casa

lá fora os cães ladram

mas o silêncio é o lugar da casa
e no soalho ficam os passos

o som das palavras que se dizem baixinho




maria sousa
não abras a porta a estranhos
do lado esquerdo
2019







01 outubro 2019

maria estela guedes / saudade







Esta saudade que nos chega
Melancolia difusa
Como se tivéssemos sido divindades
……………………………..Crianças num parque natural
……………………………..A soprar bolas de sabão
E a saltar de ramo em ramo
……………………………..Com araras e macacos.


Como se tivéssemos sido ledos bichos
Num Paraíso terrenal
Locus amoenus anterior
………………………………………À primeira glaciação
………………………………………A nostalgia
De uma pátria que já nos deixou
Em que éramos gigantes
Fortes e belas e indestrutíveis
Loucas do
………………………………………Diamante.

Esta saudade
…………………………….Do que sonhámos para nós
E cuja realização esperamos
Para além dos tempos e do fracasso
………………………………………..E muito para além
Da desilusão.

Esta saudade
Só o desejo a legitima
E para o futuro transporta
Flávia visão
………………………Linda serpente.
Ah, tal como na aurora dos tempos
……………………..No fim deles
………………………………………………….O Paraíso espera-nos.






maria estela guedes
clitóris clitoris
editora urutau
2019




30 setembro 2019

adolfo luxúria canibal / nós somos aqueles




Nós somos aqueles
Contra quem a televisão nos preveniu
Somos o lixo Os párias
Os deserdados da fortuna
As nossas armas são de plástico
E esguicham água suja
A nossa força é a fúria de viver
Nada temos de nosso porque tudo nos pertence
No assassínio e no roubo
Encontramos o prazer do jogo
As brincadeiras perdidas da nossa infância
A nossa liberdade
Está na medida da satisfação das nossas necessidades



adolfo luxúria canibal
no rasto dos duendes eléctricos
(poesia 1978-2018)
epístolas da guerra 1999
porto editora
2019






29 setembro 2019

bernardo soares / ouro de mim, sonhei-me em poeira,



Ouro de mim, sonhei-me em poeira, e o vento da realidade, erguendo-me, dourou do que eu fui as árvores e os casebres do caminho...

(Não te importe que isto assim fosse... Antes ser o ouro sobre os casebres que os casebres sob o ouro.)

s.d.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
presença
1990



28 setembro 2019

josep m. rodriguez / jardim







Depois da tempestade,
as folhas que caíram ao redor da árvore
começam a apodrecer.

Gotejam as roseiras:
são um quadro de Pollock
querendo desfazer-se.

A minha mãe contou-me
que a primeira vez que vi chover
comecei a chorar,
como se já na altura percebesse
que na beleza há algo de doloroso.

É Inverno. E há uma bruma leve,
fria,
como um véu de noiva na mesa de autópsias.

Diz-me,
o que julgas tu ter que já não tenhas perdido?





josep m. rodriguez
tradução de andré domingues
nervo/6
colectivo de poesia
setembro/dezembro 2019






27 setembro 2019

konstandinos kaváfis / veio ficar




Seria uma hora da noite
ou uma e meia.

Num canto da taberna,
por trás de um tabique de madeira.
Para além de nós dois, estava o local deserto,
mal iluminado por uma lâmpada de petróleo.
Na porta dormitava o empregado
cansado da vigília.

Ninguém nos podia ver. Mas já
tanto nos tínhamos excitado,
que não éramos capazes de precaução.

As roupas entreabriam-se – não eram muitas,
já que ardia o divino mês de Julho.

Da carne o prazer por entre
a roupa entreaberta:
breve nudez da carne – cuja imagem
percorreu vinte e seis anos; e agora veio
ficar neste poema.

1919



konstantinos kaváfis
konstantinos kaváfis, 145 poemas
tradução de manuel resende
flop livros
2017





26 setembro 2019

joão silveira / instruções para a descida




Devia existir um livro chamado
Instruções para a Descida
que começasse assim:


sem querer ser mais fraude
do que a fraude que sou,
e contra a falta de coragem
de nadar para zona sem pé,
fruto-granada
de cérebro em dificuldades elétricas
e de coração pouco bóia,
arrisco zona de naufrágio,
cirurgia de peito aberto,
má companhia para o jantar,
condutor numa viagem acidentada,
topógrafo do cataclismo
– seja para aclarar o peito de vertigens,
seja para dormir e apenas dormir,
sem imagens.




joão silveira
motores gerais
douda correria
2019







25 setembro 2019

alberto pereira / comícios do ego



I

Venho falar-te do fôlego dos cínicos,
da longa máscara que finge ter mastro,
desses requintados oradores de varizes gourmet.
Dos que descobrem na última curva dos gestos
que foram cítaras com gume.

Sou anzol que sai do útero do poema
para elevar o osso da fala até aos lírios.
Velho merceeiro de colisões.
Atalho entre a pólvora e um revólver.

Sou sede,
hospício a galope na dinamite.
Uma lâmpada muito nítida
que se acende em Victor Hugo.

Encerro o âmago
o oceano como Homero, o Cáucaso como Ésquilo,
Roma como Juvenal, o inferno como Dante,
o paraíso como Milton, o homem como Shakespeare.

Revolução,
atlas de um povo consumido
que explode na iniciática
viagem à carótida da pátria.

São sempre os loucos que calçam sandálias ao hino.



alberto pereira
como num naufrágio interior morremos
editora urutau
2019